Documentário abre as portas de uma cabeça genial e conturbada e mexe com o coração do coitado do espectador
Sabe, tenho que confessar que até bem pouco tempo atrás eu tinha uma relação pouco saudável com Kurt Cobain.
Nunca fui exatamente um fã do Nirvana. Para ser bem franco, eu prefiro, como crítico e como fã de rock, a sonoridade de outras bandas contemporâneas dos caras, como o Pearl Jam, o Soundgarden, o Alice in Chains (que, em comparação com as outras, chegou a flertar muito mais com o heavy metal) e até mesmo o Stone Temple Pilots – que se identificava inicialmente com a sonoridade mas não era, digamos, egresso da mesma cena.
Acabei, por conta do comportamento de alguns fãs bastante radicais e quase messiânicos, que não admitiam que alguém curtisse rock e não gostasse de Nirvana, pegando birra da banda — e, por tabela, do Kurt Cobain. Todo mundo falava bem então eu, metaleiro cabeça-oca, resolvi que ia falar mal.
“As três únicas coisas boas que o Nirvana já teve foram o Foo Fighters, a Courtney Love e a morte do Kurt Cobain”, dizia eu, todo cheio de sabedoria.
É, eu sei, é um comentário BEM escroto. E me arrependo de cada vez que o fiz. Hoje um sujeito mais maduro, do alto dos meus 35 anos, percebi o quão idiota estava sendo ao fazer uma afirmação assim – da mesma forma que um dos meus ídolos pessoais, Gene Simmons, o linguarudo do Kiss, foi um babaca ao dizer, indiretamente, que “não está satisfeito com a fama e com a garota gostosa? Me transfira toda a sua grana e está tudo certo”.
E eu ainda repeti a frase dele com orgulho, como se estivesse levantando um estandarte.
Não me orgulho desta merda. Ainda mais porque, com o passar dos anos, fui conhecendo mais e mais detalhes sobre a história de Cobain, entendendo quem ele era de verdade, seu diagnóstico de depressão, seu déficit de atenção e bipolaridade, sua dificuldade em lidar com seus próprios demônios.
Aí veio este Montage of Heck, documentário do diretor Brett Morgen e produzido por Francis, a filha de Kurt e Courtney. Maluco, foi um soco no meio da boca para garantir que, de fato, eu aprendi a lição.
Se você é do tipo que pensa que esse é um documentário no sentido tradicional, vai dar com os burros n’água. A intenção não é contar a história do músico ou mesmo do Nirvana de maneira cronológica. Na verdade, é retratar a sua trajetória de uma infância problemática para o estrelato, tornando-se uma espécie de porta-voz roqueiro da juventude dos anos 1990 que ele mesmo nunca almejou ser, mas guiando-se pelos seus próprios pensamentos.
Morgen conduz a história com inteligência, delicadeza e com uma agilidade que praticamente te transportam para uma mente que oscila do genial para o assustador em minutos.
Usando o delicioso recurso de animar os cadernos inéditos de anotações do músico, como se as letras fossem sendo escritas e os desenhos rabiscados à medida que estamos assistindo, vemos Cobain considerando as opções de nomes para o grupo (e, vejam só, Skid Row foi uma delas, ironia das ironias), rascunhando letras de canções, experimentando ideias para a capa do platinado Nevermind... e, claro, revelando a si mesmo. Seus sonhos. Suas angústias. As dores e delícias do relacionamento com Courtney. Sua relação tempestuosa com a imprensa e o ódio latente que sentia todas as vezes em que tinha que dar uma entrevista.
A grande joia de Montage of Heck está, contudo, na fita de mesmo nome (que significa, em português, algo como “colagem dos infernos”), um monte de áudios malucos nos quais Cobain comentava pessoalmente algumas passagens de sua vida, em tom melancólico, entre comentários aleatórios e experimentos remixados com outras canções.
Para ilustrar, Morgen construiu uma série de animações fantasmagóricas com o próprio Cobain, extremamente realistas e com um nível de refinamento que dá gosto.
E os olhos daquele Cobain animado, contando como foi a sua primeira vez e como ela lhe trouxe uma verdadeira saraivada de comentários preconceituosos por ter sido com uma menina que todos chamavam de “retardada”, são tão tristes quanto os do próprio Kurt.
Cobain, mesmo quando estava sorrindo, parecia triste. Parecia triste até quando brincava com a filha recém-nascida, no meio de um verdadeiro escândalo de responsabilidade envolvendo a utilização de drogas por parte dos pais. O cara, com aquela expressão angelical, parecia estar contendo algo dentro de si. Uma raiva, uma angústia, uma fúria, que nem ele devia saber de onde vinham. Nunca estava satisfeito. Faltava algo. Tinha sempre um estranho buraco a preencher. E que ele encheu de bebida e heroína.
A mãe de Kurt fala dele com um pouco de confusão e um quê de raiva, talvez. O pai fala com apatia. A irmã fala com a visível dor da saudade e um tantinho de deslumbramento por seu talento único. A ex-namorada, que o acolheu por muito tempo, fala dele com uma dose de surpresa por não saber o que acontecia debaixo do seu nariz. O parceiro e baixista do Nirvana Kris Novoselic, fala com um pouco de arrependimento (“eu poderia ter feito mais”) e um tempero de alívio (“poderia ter sido eu”). Courtney Love fala dele com um carinho meio chapado, um cigarro atrás do outro, como quem parece estar entorpecida depois de anos tentando absorver a dor.
O único que não fala, aparecendo apenas em cenas de arquivo, é justamente Dave Grohl. O cara que dividiu uma banda com Kurt e que, hoje, ultrapassou a fronteira que tanto atormentava o amigo. Dave virou um popstar. E teria sido sensacional ouvir o que ele tinha a dizer, agora sob o ponto de vista do líder de uma banda que vende milhões de álbuns no mundo todo.
O diretor afirma que Grohl não participou por questões da agenda. Mas há quem diga que Dave, que passou ANOS em disputa com Courtney, era contra o retrato feito de Cobain nesta cinebiografia autorizada. “Este documentário é 90% um monte de merda, em sua maioria uma ficção descontrolada”, afirma em artigo do The Talkhouse o músico Buzz Osborne, amigo pessoal de Kurt e vocalista dos Melvins, banda que ajudou a dar forma ao movimento grunge como um todo.
“Não é surpreendente, quando você considera que a história se torna elástica cada vez que Courtney Love abre a boca”, diz Osborne, em tom provocativo.
Uma coisa dá para sacar que é a mais pura verdade, no entanto: a música era o jeito que Kurt tinha de mais honesto para tentar exorcizar as imagens que se acumulavam na sua cabeça e com as quais não sabia lidar. Claramente desinteressado em qualquer outro compromisso da agenda de uma grande banda, nitidamente irritado ao ser tratado como uma espécie de salvador do rock e retrato atual da juventude, ele se soltava no palco.
Desligava a chave da consciência. E pirava. Nas cenas do show realizado no Brasil, em 1993, durante o festival Hollywood Rock, ele cospe na câmera da Globo e, logo depois, tenta baixar as calças que parecem ser de um tipo de pijama para mostrar as partes baixas para todo o país conferir.
Este era o seu lado selvagem. Estranhamente contraposto ao lado delicado de quem toca, de maneira sofrida e dolorosa, uma versão de And I Love Her, dos Beatles.
Montage of Heck é bastante competente ao deixar clara a importância histórica do Nirvana, de Cobain como poeta de uma geração que vinha de uma era dominada por bandas com refrões sacanas e grudentos, lideradas por músicos de cabelos enormes com laquê e calças coladas de tigrinho.
Mas é ainda mais inteligente ao se debruçar na humanidade de Cobain. Em não julgá-lo, mas tratá-lo como um sujeito cheio de defeitos que, infelizmente, não conseguiu combater os próprios vícios e se rendeu a eles.
Alguém que poderia ser eu. Ou você.
Como eu disse: um soco na boca. Para ajudar a morder a língua.
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