Além de uma trilha recheada de hip hop e suas raízes na música negra, a série contou com alguns importantes convidados especiais no palco do clube Harlem’s Paradise
Música parece ser um elemento que está se tornando cada vez mais importante na produção dos filmes da Marvel. Basta pensar, por exemplo, no filme dos Guardiões da Galáxia e muito provavelmente a primeira coisa que vai vir na sua cabeça, mais do que qualquer Baby Groot ou Peter Quill, são os primeiros acordes de Hooked on a Feeling. Inevitável.
O mesmo parece que vai valer para a série do Luke Cage, que estreou na última sexta (30). A trilha conduzida e composta pela dupla Ali Shahee Muhammad (do grupo A Tribe Called Quest) e Adrian Younge tem jazz, funk, R&B, soul e, claro, rap. Porque, afinal, estamos falando de um seriado cujos nomes dos episódios são títulos de músicas do grupo de rap Gang Starr, da Costa Leste dos EUA.
O que esperar, afinal, de uma série cujo showrunner, Cheo Hodari Coker, era jornalista de música? :D
Aliás, quando Coker era estudante na Universidade de Stanford, começo dos anos 90, ele e alguns amigos tocavam como DJs num circuito de festas que promoviam. “Pra estas festinhas, eu tinha dois sets diferentes. Um mais contido, que os brancos curtiriam, e um de hip hop mais pesadão, reservado para as fraternidades de negros”, conta ele, para a CNN. “Eu segui deste jeito até que uma fraternidade de caras brancos pediu para eu tocar as outras músicas. ‘Cês têm certeza?’. Eles tinham. Eu toquei e todo mundo amou. Nunca mais segregamos nossa música de novo”.
“O que ele nos pediu pra fazer foi destacar este super-herói negro”, explicou Younge ao Watchloud sobre o trabalho com Coker. “O que ele queria era que Cage fosse um herói equilibrado, com classe, o tipo de macho alfa que você não vê os negros interpretando na TV e no cinema. E ele queria que este cara estivesse ligado à cultura do hip hop. Logo, não dava pra ser APENAS hip hop rolando, mas também um pouco do material que ajudou a criar a cultura do hip hop”. Se você viu The Get Down (e deveria), com certeza sabe do que o cara está falando.
Eu acho que temos uma plataforma musical que é diferente de qualquer show na televisão
Younge e Muhammad deram um tratamento mais “cinematográfico” para as suas composições, tratando cada um dos 13 episódios como um pequeno filme e com as músicas da trilha instrumental gravadas no estúdio mas como se fosse ao vivo. “Adrian e eu tocamos todos os instrumentos, com exceção dos momentos em que tivemos a orquestra rolando, claro”, revela Muhammad. “Era o nosso jeito de fazer cada episódio soar emocionalmente mais dinâmico”. Pense apenas que a trilha se tornou uma parada tão importante para Luke Cage que Muhammad e Younge farão em Los Angeles, no dia 6 de outubro, uma apresentação ao vivo das canções da série, ao lado de uma orquestra de 40 músicos e com participação do produtor No I.D. mandando um set de hip hop/R&B como DJ.
O elemento musical da série tem um tempero a mais na quantidade de participações especiais que sobem ao palco do Harlem’s Paradise, o clube noturno cujo dono é o vilão Cottonmouth, interpretado por Mahershala Ali. “É uma boate viva e pulsante. E claro, um bom gângster adora música”, brinca Coker. “Na verdade, eu sempre disse que, Deus me livre, se a série não funcionar, nós pelo menos temos o Harlem’s Paradise. De certa forma, ele é o nosso Trono de Ferro”.
A atração do episódio inicial é Raphael Saadiq, ex-integrante do grupo Tony! Toni! Toné!, com uma sonoridade R&B/soul bem mais old school e que combina bastante com o estilão de Cottonmouth. Produtor consagrado por seu trabalho com nomes como Joss Stone, TLC, Mary J. Blige, Whitney Houston e John Legend, ele canta um de seus maiores sucessos, a grudenta Good Man, escrita e cantada em parceria com Taura Stinson.
Apesar da sonoridade sexy, o recado da letra é claro: “Good man, I’m a good man, food’s on the table, working two jobs”. E enquanto isso, está lá na cozinha um certo senhor Cage lavando a louça, justamente em seu segundo emprego...
No segundo episódio, Code of the Streets, a convidada especial é a cantora de R&B e atriz Faith Evans, conhecida por ter sido a primeira contratada do selo de Sean “Puff Daddy” Combs, a Bad Boy Entertainment, ainda em 1994, e também por ser a viúva de ninguém menos do que Notorious B.I.G., o rapper morto na brutal disputa entre músicos das Costas Leste e Oeste do país. Por sinal, o quadro de B.I.G. que Cottonmouth tem em sua sala é responsável por alguns de seus momentos mais memoráveis.
Na série, Faith canta Mesmerized, um funkão dançante em homenagem aos anos 60 que ela já tinha lançado no disco The First Lady (2005).
A seguir, no episódio três, um cara que merece demais a sua atenção: o brilhante Charles Bradley, com um funk & soul com sabor dos anos 60/70 e que lançou, este ano, o lindíssimo disco Changes (que traz o cover de mesmo nome para a música do Black Sabbath e que, em nome de Odin, é de arrepiar a alma até do sujeito mais insensível da face da Terra). Com um jeitão totalmente James Brown, as cenas dele cantando Ain’t It a Sin no clube são entrecortadas com Luke Cage em ação, dando porrada pra tudo que é lado e tentando fazer o seu melhor. “I try to find a certain style. To keep my soul from runnin’ wild”, sabe?
Já em Just to Get a Rep, o episódio de número cinco, o astro convidado do Harlem’s Paradise é o cantor e produtor Jidenna, queridinho do selo da cantora Janelle Monáe e que já registrou colaborações com nomes como Roman GianArthur, St. Beauty e Deep Cotton. Depois de ter o single Classic Man rodando em tudo quanto é parada de sucesso dos EUA em 2015, este ano ele lança seu álbum de estreia, Long Live the Chief. E é justamente a faixa-título do CD, uma porrada vibrante e SOTURNA, que ele canta em Luke Cage, numa espécie de saudação ao sorridente e letal dono do local.
Pula pro episódio sete e, enquanto Cottonmouth e Shades (Theo Rossi) falam sobre o futuro num Harlem’s Paradise ainda vazio, quem prepara e testa os equipamentos no palco é o DJ e beatboxer D-Nice, que começou a carreira ainda nos anos 80 com o grupo Boogie Down Productions.
Há quem lembre dele também como o cara que descobriu o Kid Rock, mas aí eu deixo pra você decidir se isso foi uma coisa boa para ser lembrado ou não. ;)
Em DWYCK, o nono episódio, na reabertura do Harlem’s Paradise, quem se destaca no palco é o trio vocal The Delfonics, veteranos do R&B da Pennsylvania surgidos ainda nos anos 60. Enquanto eles entoam Stop And Look (And You Have Found Love), começa a se construir nos bastidores um dos momentos mais tensos da série.
A música está no álbum Adrian Younge Presents The Delfonics, de 2013, produzido pelo mesmo Adrian que é um dos compositores da trilha da série. ;)
Por falar em veteranos da boa música, o último episódio da temporada traz, depois de uma reviravolta incrível, um show de Sharon Jones & the Dap-Kings com 100 Days, 100 Nights. Talvez um dos nomes mais destacados do atual movimento revivalista que quer capturar a essência do soul e do funk dos anos 60, este grupo de novaiorquinos está junto desde os anos 90, inicialmente atendendo pelo nome de Soul Providers.
A formação atual existe desde o ano 2000 e parte de seus músicos já chegou a participar de discos como Back to Black, da Amy Winehouse.
No entanto, o melhor momento musical é mesmo a participação especial do Method Man, no episódio doze. O Netflix já tinha liberado um vídeo no qual o rapper do icônico grupo Wu-Tang Clan interpreta a si mesmo, numa pegada Stan Lee (logo após a aparição de The Man, aliás), e encontra Luke Cage em pessoa em meio a um assalto numa loja de conveniência.
Só isso já teria sido legal? Sim. Mas a coisa mais foda é que não parou aí, no “famoso dá as caras, todo mundo comemora, segue a vida”. A participação do músico tem uma influência importante na história e desencadeia um movimento na trama que é lindo de ver — e ele ainda canta uma música nova, Bulletproof Love, com uma letra bastante representativa para a série, para o MCU e para a vida.
https://www.youtube.com/watch?v=OLPbw52g5bQ
“Eu acho que temos uma plataforma musical que é diferente de qualquer show na televisão”, arrisca o showrunner. “Tá bom, eu sei que vou soar meio arrogante, mas acho que esta é a melhor parte musical de uma série de TV atualmente. Mal posso esperar para que as pessoas vejam”. E ouçam. <3