Não existe só um Coringa | JUDAO.com.br

Ótimo primeiro trailer do filme estrelado por Joaquin Phoenix levanta algumas questões interessantes… e incômodas

E aí que o que parecia um boato sem eira nem beira virou realidade e teremos MESMO um filme solo do Coringa. Todd Phillips (Se Beber Não Case) na direção, Joaquin Phoenix no papel principal, em tese “desconectado” do universo DC dos cinemas (que universo, aliás?), uma espécie de “selo adulto”, numa cronologia alternativa que é algo bastante comum nas linhas editoriais da DC. A ideia como um todo permanece sendo muito boa e, aliás, deixa um espaço aberto no futuro pra muita coisa interessante ser produzida dentro deste conceito mais livre, leve e solto, sem a necessidade do tal “universo compartilhado” da Marvel.

Portanto, este Joaquin Phoenix como Coringa não necessariamente está ligado ao Jared Leto como Coringa que vimos no filme (?) do Esquadrão Suicida. O que, claro, já é uma boa notícia. Mas aí que saiu o trailer do filme do Palhaço do Crime. E esta primeira prévia é realmente incrível. Phoenix é um ótimo ator e a escolha começa a provar ser bastante acertada. O clima parece incrível, a trilha também. Maaaaaaaaaas, antes de qualquer coisa, é importante que a gente lembre que aquele trailer do Esquadrão Suicida no qual tocava uma versão de I Started a Joke era bem bom. E que o Jared Leto, apesar dos pesares, também é om ótimo ator, com um retrospecto bem interessante no currículo. Portanto...

Ainda assim, mesmo com esta dose considerável de cinismo, o play aí embaixo é bastante válido. Porque depois a gente vai conversar sobre umas questões que surgiram assim que a parada tomou de assalto as redes sociais. Eu espero você ver, quantas vezes for preciso, pra digerir um pouco.

Podemos seguir? Pois é. Apesar do otimismo generalizado, que acho inclusive bastante justificável, o trailer trouxe à tona dois questionamentos que, de alguma forma, estão conectados. O primeiro é sobre a origem do vilão e o quão ela seria “fiel” à dos quadrinhos. “O trailer é lindo, mas pra mim já existe uma versão de como o Coringa surgiu e ela é A Piada Mortal, portanto bode”, disseram alguns comentários que li. Já outros se focaram no tom, que estranhamente parece “humanizar” um sujeito que, nos gibis, é um maníaco, um psicopata, alguém que não tem medo de arrancar sangue com um sorriso no rosto. “Este não parece o Coringa dos quadrinhos”.

Calma, vamos lá, discutir item por item? ;)

Bom, especificamente sobre a origem do Coringa, o nosso mantra de “filme é filme, gibi é gibi” continua. Se o diretor/roteirista resolve adotar um caminho diferente das HQs para melhor contar uma história na telona, que seja, perfeito, tem total direito e dever, aliás. É uma mídia diferente, narrativa diferente, merece um olhar diferente. Mas, dito isso, vem aí um outro ponto especificamente sobre QUAL é a origem da qual estamos falando mesmo? No caso do Batman, bom, a gente sabe, pais saindo com o pequeno Bruce do cinema, Beco do Crime, tentativa de assalto, criminoso atira, pequeno Bruce órfão. Mesmo nos gibis, existem pequenas variações, pérolas que se espalham aqui e ali mas, no geral, esta é a “regra”.

O ponto é que, no caso do Coringa, não existe regra alguma. Além da brilhante interpretação de Heath Ledger como o nêmesis absoluto do Morcegão, o filme O Cavaleiro das Trevas teve um outro acerto crucial que foi cada vez que o Coringa ia contar a sua história para alguém, era sempre uma diferente. Esta é, inclusive, a realidade nos gibis. A Piada Mortal é talvez a origem mais aceita? O mais perto de um “cânone” que temos? Sem dúvida. Só que os leitores fiéis da DC sabem bem que ela não é OFICIAL e definitiva. E a grande graça, e nisso Moore foi certeiro, é que ela é contada sob o ponto de vista das lembranças do próprio Coringa, que é um homem mentalmente instável. O quanto estas memórias podem, de fato, ser confiáveis? “Às vezes eu lembro de uma maneira, ora de outra... se eu vou ter um passado, prefiro que seja de múltipla escolha”, diz ele. Brincando, mas a sério.

Este é, de fato, o grande mistério nunca resolvido pelo Maior Detetive do Mundo. E atualmente, nos quadrinhos, conforme a gente te contou aqui, existe na verdade o papo de que existem TRÊS Coringas em atividade. Afinal, seria uma ótima resposta para os muitos comportamentos que o seu principal antagonista demonstrou ao longo dos anos, bastante diferentes entre si, do zé graça bobalhão e quase inocente ao psicótico maníaco capaz de arrancar o próprio rosto e matar um herói adolescente rachando seu crânio com um cano de metal.

O Coringa da Era de Ouro. O Coringa da fase Piada Mortal. O Coringa da recente passagem de Scott Snyder pelo título. Talvez seja isso?

Ainda que não fosse nada disso; ainda que a dupla Geoff Johns e Jason Fabok revele, ao final da série Batman: Three Jokers, que os três são na real apenas um, vai fazer total sentido. Porque o Coringa nunca foi um só. E este sempre foi o grande trunfo do personagem. Aquele que todo bom roteirista, quando entende, faz brilhar de uma maneira que se torna lendária.

Existem, obviamente, muitas “versões” do Batman, do Superman, do Homem-Aranha, do Capitão América. Tudo depende da era, do contexto social — o Peter Parker mais inocente dos anos 1960 estava num espectro de realidade bem diferente daquele da era dos músculos saltados e dentes trincados dos anos 1990 — e justamente por isso acabou sendo reimaginado no Universo Ultimate, por exemplo. Mas, no caso do Coringa, o que torna o personagem tão especial, assustador, estranhamente carismático, é que ele é um segredo a ser desvendado, cheio de camadas. Uma força da natureza antes de qualquer coisa. Imprevisível. O mais puro e simples caos encarnado. Justamente por isso um homem comum, sem superpoderes, de rosto pintado de branco e cabelos verdes, é um dos vilões mais importantes e ameaçadores do Universo DC. Muito mais, talvez, do que um Darkseid. Porque ele é REAL.

Espera-se naturalmente que o Coringa possa migrar dos truques bobos e inocentes, com flores que esguicham água e pacotes que explodem farinha na cara de quem abre, para uma fúria descabida e uma sede de sangue com lâminas afiadas num estalar de dedos. O Coringa sempre foi, no fim, muitos Coringas. E não um só. Inclusive aquele de quem você sente medo e ao mesmo tempo pena. Torná-lo um HERÓI no filme seria uma cagada? Ah, sim, mas daquelas imensas, gigantescas e fedorentas, ainda mais nos tempos em que vivemos. Ele é um vilão. PONTO. Mas sobre a humanização, o Coringa não está sendo humanizado AGORA. Porque ele sempre foi. Outro ponto igualmente assustador sobre o personagem é que, quando bem trabalhado, nas mãos de um roteirista competente, o Coringa podia ser eu. Ou você.

O Coringa não está sendo humanizado AGORA porque ele sempre foi

A Piada Mortal se tornou este ponto de referência tão INCONTESTE para determinada parcela de fãs sobre como o personagem deveria ser retratado, ao mesmo tempo em que virou ponto focal de discussões sobre ele ter ou não estuprado Barbara Gordon, sobre o Batman ter quebrado ou não o pescoço dele na sequência da piada que, no fim, parece que algumas pessoas perderam aquela que talvez seja a maior sacada de Moore: basta apenas um dia ruim para dobrar alguém e fazer com que ele se torne um Coringa.

Pode não ser só um dia, vá. Mas uma semana, um mês. Um ano, quiçá. Mas o ponto é que o Coringa, seja ele Arthur Fleck, Joseph Kerr, Jerome Valeska ou Jack Napier, era só uma pessoa. E mesmo em A Piada Mortal, aquele comediante fracassado que veste a roupa do Capuz Vermelho, ele te dá pena. Você sente empatia por ele, por tudo que aconteceu, a perda do grande amor. É um passado, verdadeiro ou não, humanizado. E isso não te impede de sentir náuseas com tudo que ele faz DEPOIS com a Barbara Gordon. Este é um caminho absolutamente possível para o filme, inclusive, uma de muitas transformações. A narrativa de um homem que se tornou um monstro. De como enxergar o homem que ele foi antes do monstro não faz com que você simplesmente releve as monstruosidades que ele cometeu (e ainda comete, aliás).

No baralho, o coringa (ou curinga) é a carta sem indicação numérica, aquela inesperada, diferente de todo o restante, que muda de valor conforme a combinação de cartas que o jogador tem em mãos. Ela pode se tornar muitas coisas. Pode virar os rumos do jogo do avesso. Pode fazer chorar ou sorrir. E pode ser algo completamente diferente na próxima partida. Exatamente como Cesar. Ou Jack. Ou quem sabe Mark, Heath ou Jared. Ou mesmo Cameron.