O principal festival do cinema mundial resolveu comprar uma briga com o gigante do streaming. Quem será que precisa mais de quem nessa história toda?
Netflix era, no começo, só um serviço de envio de DVDs pelo correio. Depois veio o streaming, nada muito diferente de um canal de TV, com conteúdo comprado dos outros e transmitido via internet, só que com aquela coisa de você escolher quando e onde assistir. Surgiram então as séries originais e exclusivas e, com os olhos dos grandes grupos de entretenimento crescendo, a necessidade de fazer parte de um sistema que a própria empresa tenta mudar, pra conseguir fazer com que filmes que estreassem diretamente no serviço.
Na última semana, porém, veio um duro golpe nessa estratégia: o Festival de Cannes, o mais prestigiado do mundo do cinema, anunciou que as produções que quiserem participar do evento a partir do ano que vem devem se comprometer a serem exibidas nos cinemas Franceses, o que irritou a galera da empresa de Los Gatos e foi um dos grandes temas da coletiva de abertura da 70ª edição do festival, que aconteceu nesta quarta (17).
Ninguém é coitadinho nessa história, mas... Como chegamos nisso tudo?
Tudo que o Netflix faz, hoje, é para crescer sua base de usuários. Basicamente, existem lá duas métricas importantes: o número de assinantes – que, inclusive, dita a valorização ou não das ações da empresa – e o tempo que cada assinante passa lá dentro, navegando e assistindo, o que tem impacto na retenção desses assinantes. Pra atrair assinantes eles precisam dos filmes do Adam Sandler. Mas, ainda assim, eles precisam de divulgação. Precisam de status. Precisam ser vistos.
É aí que perceberam a existência dos meios habituais que a própria indústria tradicional do cinema já usa. Afinal, uma indicação ao Oscar passa a ser um argumento de venda, o que, pela mesma lógica, também traz assinantes; já um filme vencedor da Palma de Ouro, o principal prêmio de Cannes, dá uma força naquela aura “artística” da coisa.
Também há a questão dos diretores, atores e produtores envolvidos no projeto. É gente apaixonada por cinema, que gosta da experiência da tela grande e acredita que isso faz parte do que eles criaram. Ao assinar com o Netflix, eles abrem mão disso mas, certamente, não querem abrir mão do prestígio que é ser indicado a um Oscar ou desfilar no tapete vermelho de Cannes. Eles precisam disso para garantir o financiamento de seus próximos projetos, até, e, se o serviço de streaming não garantir para os envolvidos o mínimo do potencial daquele filme, eles vão preferir assinar com outro distribuidor. Simples assim.
Foi por tudo isso que Beasts of No Nation, o primeiro filme original do Netflix, teve uma exibição limitada nos cinemas dos EUA e, assim, preencheu os requisitos da Academia para ser elegível ao Oscar. Pena que foi um fracasso — não só porque o filme não foi indicado ao Careca Pelado (eles até venceram em outras premiações menos importantes, é bom lembrar), mas porque a iniciativa foi boicotada por diversas redes de cinema, que não queriam exibir algo que, ao mesmo momento, estava disponível no celular de qualquer um.
A empresa de Los Gatos até que chiou, mas, na prática, deu de ombros. Continuou investindo na estratégia, até que, este ano, conseguiu mais um grande passo: emplacar dois longas-metragens na seleção oficial do Festival de Cannes, ambos candidatos à Palma de Ouro: Okja e The Meyerowitz Stories (este último um filme do... Adam Sandler). Até então, a única condição para participar da seleção, além da qualidade, era a exclusividade.
No entanto, a organização do festival não curtiu muito a ideia de ter dois filmes da gigante do streaming em sua seleção. “O Festival de Cannes pediu, em vão, para o Netflix aceitar que estes dois filmes pudessem chegar ao público dos cinemas franceses, e não apenas os seus assinantes. Por isso, o festival lamenta que nenhum acordo tenha sido alcançado”, disse a organização por meio de comunicado na última semana, enviado para o IndieWire.
De certa forma, a ideia dos organizadores era defender que os dois filmes selecionados pelo júri chegassem ao público com a mesma experiência que a galera teve ao ver no festival, fechando o ciclo completo — o que é bastante justo. “Essa oposição entre cinema e streaming parece ser o grande debate desse ano. Veja bem: as plataformas digitais são formas alternativas de oferecer conteúdo audiovisual, o que é algo positivo. Mas essa forma de distribuição não pode suprimir as já existentes, a sala de cinema. Não devem alterar os hábitos dos espectadores. É esse o debate que devemos promover”, comentou o diretor Pedro Almodóvar na coletiva de abertura de Cannes 2017, do qual é presidente do Júri. “Seria muito estranho dar uma Palma a um filme que depois não será exibido numa sala de cinema”.
Seria muito estranho dar uma Palma a um filme que depois não será exibido numa sala de cinema
Ao ser questionado por uma jornalista se ele preferia trocar a Palma de Ouro pela oportunidade de lançar seu longa-metragem no mundo todo, ao mesmo tempo, no streaming, o espanhol foi direto: “Eu preferiria absolutamente que um filme meu não fosse visto em 190 países, mas em tela grande, no cinema. É essa a minha preocupação”.
Vale lembrar que, se fosse nos EUA, nada impediria desses longas de serem exibidos em apenas algumas salas junto com a estreia no streaming, atendendo a esse pedido – como fizeram com o Oscar. No entanto, existe uma lei de proteção de mercado na França, instituindo uma janela obrigatória de TRINTA E SEIS MESES entre o lançamento nos cinemas e no VOD local. TRÊS ANOS.
O Netflix ainda poderia lançar o filme no resto do mundo, deixando um mercado de lado – no qual, vamos combinar, eles não emplacaram, então não chega a ser uma grande questão. Porém, esse não é o verdadeiro problema: aceitar essa restrição seria abrir precedente para outros festivais, premiações, concorrentes e até países que queiram adotar uma atitude parecida. Isso seria um duro golpe justamente na estratégia de usar os velhos BALUARTES do cinema em favor do streaming, já que eles teriam que começar a escolher entre manter uma estreia global ou participar do festival ou prêmio.
“Depois de consultar os membros do conselho, o Festival de Cannes decidiu adaptar suas regras para uma situação nunca vista até agora: qualquer filme que quiser participar da Competição de Cannes terá que se comprometer em ser distribuído nos cinemas da França. Esta nova medida será aplicada a partir da edição 2018 do Festival Internacional de Cinema de Cannes”, afirmou um comunicado oficial.
Um dos nomes desse conselho é o atual presidente Pierre Lescure, que é ex-presidente do Canal+, uma emissora paga, e fundador do StudioCanal, uma distribuidora de cinema. Além dele, existem dois representantes do governo, um do Ministério da Cultura, da Assembleia Nacional e do Senado, produtores, distribuidores e gente de sindicato. Quer mais? “A França é dominada pelos canais de TV abertos e pagos que ainda gastam muito dinheiro com conteúdo”, definiu, no ano passado, uma fonte de mercado ouvida pela Variety.
Resumindo: no tal BOARD tem bastante gente que ama o cinema tradicional e a experiência, mas também tem muita gente que não quer deixar os americanos cresceram por lá.
Reed Hastings, CEO do Netflix, aproveitou a deixa da notícia sobre a mudança nas regras para peitar os “adversários”. “A velha elite se posiciona contra nós”, disse o executivo no Facebook. “Veja Okja no Netflix no dia 28 de junho. Um filme incrível que as redes de cinema querem impedir de participar da competição do Festival de Cannes”.
Vale lembrar que esta não é uma briga que está sendo comprada por aquele que se coloca como o maior competidor do Netflix: a Amazon, que tem se adequado mais a “velha elite”. Manchester à Beira-Mar é um filme bancado financeiramente pela empresa americana, mas que teve distribuição tradicional nos cinemas, foi recentemente lançado em DVD, Blu-ray e no VOD transacional (aquele no qual você aluga ou compra pra assistir) e, só depois, vai surgir no Amazon Prime Video, que é o serviço por assinatura nos moldes do Netflix.
Nisso, o filme se deu muito bem no Oscar, a Amazon ganhou uma divulgação nesse meio, cineastas ficaram contentes, Jeff Bezos foi convidado pra assistir ao Oscar no Dolby Theatre e tudo mais. Por outro lado, a produção deixou de ser um grande argumento pra assinar a plataforma. Não que isso seja exatamente um problema para a Amazon, que é uma empresa com diversas formas de ganhar dinheiro – indo de ebooks a até BDs... de Manchester à Beira-Mar.
“Pra mim, a solução é simples”, disse Almodóvar. “As novas plataformas devem aceitar e respeitar as regras já existentes, observando os tempos das diferentes janelas de exibição. [...] Isso não significa que eu não festeje e reconheça as novidades que surgem na área de distribuição de conteúdo. Mas, enquanto eu estiver vivo, defenderei algo que muitos jovens de hoje não reconhecem ou não têm interesse em conhecer: a capacidade hipnótica de uma tela grande”.
Enquanto eu estiver vivo, defenderei algo que muitos jovens de hoje não reconhecem ou não têm interesse em conhecer: a capacidade hipnótica de uma tela grande
Agora, será que não é possível, de alguma forma, unir os dois caminhos num meio-termo? Lançamento nos cinemas com uma janela curta, ou continuar lutando por algo simultâneo? Um TERCEIRO modelo, deixando o público mais à vontade para decidir como quer assistir, adicionando mais possibilidades do que as excluindo, como a Apple, inclusive, já está negociando com os estúdios? É, um pouco, como disse Will Smith, que também faz parte do júri, na mesma coletiva de abertura de Cannes 2017: “na minha casa, Netflix não tem efeito na decisão deles [os três filhos do ator, de 16, 18 e 20 anos] irem ao cinema para serem tocados por alguns filmes ou se ficam em casa para verem outros. Lá em casa, Netflix foi nada além de um benefício absoluto – eles assistem a filmes que, antes, não veriam. Isso está abrindo a compreensão cinematográfica das crianças”.
Vale lembrar que, ano passado, o Netflix investiu US$ 90 milhões no filme Bright, que é estrelado pelo Smith. :P
E se podemos pensar que o Netflix poderia flexibilizar, de alguma forma, a sua estratégia, é justo também pedir o mesmo de Cannes e do governo francês. A janela de 36 meses é enorme, daquelas digna de grandes blockbusters na TV aberta brasileira. Além disso, o festival precisa continuar se adaptando aos tempos, sob o risco de perder importância. “Se o festival quer manter o foco da mídia internacional em Cannes talvez precise lidar com o diabo, seja qual for a política de lançamento dos filmes do Netflix”, definiu The Guardian.
Só que, na prática, quem se convidou pra lidar com a indústria que tanto quer mudar, e no seu maior quintal, foi justamente o Netflix, aquela mesma empresa que quer acabar com as janelas que tanto beneficiam aqueles já estabelecidos.
“Você já dançou com o diabo à luz do luar?”, dizia o Coringa do Jack Nicholson antes de matar suas vítimas. É isto que está acontecendo, agora, em Cannes. Mas é o futuro que dirá quem puxou o gatilho – e quem será a vítima.