Depois de 66 anos, uma das mais importantes publicações de música do planeta vai abandonar de vez a versão impressa
Aquela luta semanal das bandas em ascensão para estar na capa da revista inglesa New Musical Express, mais conhecida por sua alcunha de NME, e então se tornar a grande novidade da vez (aka “a melhor banda de todos os tempos da última semana”), está prestes a ter um fim. Isso porque a publicação não vai ter mais capa. Ou, pelo menos, não do jeito que tinha antes.
Estamos falando de uma revista publicada semanalmente, sem parar, desde 1952, cujo primeiro número tinha aquela capa com Goons, Big Bill Bronzy e Ted Heath (lembra de algum deles?) e custava seis centavos de libra, trazendo as notícias mais quentes do jazz e do acordeão (JURO) e que, agora, transformará sua capa em uma homepage e será lida apenas no site, NME.com.
Depois de um monstruoso pico de vendas nos anos 60 (só pra se ter uma ideia, em certa semana de 1964, a NME chegou a vender espantosos 307.000 exemplares), quando todo mundo queria se informar sobre aqueles tais de Beatles e Rolling Stones, seus números obviamente foram caindo conforme o mundo foi ficando mais digital. E depois de 2010, as quedas de vendas levaram a sua circulação a algo em torno de 15.000 revistas semanais. Aí, eis que em 2015, a Time Inc UK, responsável pela NME, decidiu que o semanário passaria a ser gratuito e sustentado apenas por publicidade. Isso mesmo, totalmente de graça, entregue em pontos exclusivos como universidades e lojas parceiras.
“Essa mudança para o gratuito ajudou demais a ampliar o alcance da marca e a crescer como nunca a audiência do NME.com”, explicou Paul Cheal, diretor de publicações musicais da Time Inc UK, ao Guardian. “Mas os custos de produção começaram a subir demais em um mercado de impressos muito duro. É no mundo digital que os esforços e investimentos futuros vão garantir a existência forte desta marca famosa”. Já Keith Walker, diretor digital da NME, conta — pra surpresa de absolutamente ninguém — que o público deles neste ambiente digital praticamente dobrou nos últimos dois anos. “Focando nas nossas plataformas digitais, podemos acelerar o incrível crescimento que temos visto e atingir mais pessoas do que nunca nos aparelhos que eles já estão naturalmente usando”.
Parece óbvio, não? ;)
No entanto, já se sabe que a NME vai continuar tendo uma presença impressa esporádica, graças aos especiais NME Gold, publicações PREMIUM em parceria com a igualmente histórica Uncut sobre determinados artistas/bandas e editadas por caras como Paul Weller (The Jam) e Liam Gallagher.
A edição final da NME impressa, a ser publicada nesta sexta-feira, dia 9 de março, traz na capa a rapper Stefflon Don.
Nomes como John Lennon, Marc Bolan (T Rex) e Malcolm McLaren (o lendário empresário e pai dos Sex Pistols) eram leitores declarados da revista — que já teve, aliás, gente como Bob Geldof (ativista, cantor da banda The Boomtown Rats e criador do Live Aid) e Chrissie Hynde (The Pretenders) como seus redatores. Mas é bem mais do que isso.
De alguma forma, eles foram responsáveis não apenas pelo florescimento do punk, lá no ano dourado de 1977, como também se tornaram os maiores defensores do pós-punk local, elevando bandas como Joy Division e Smiths ao status de estrelas. Nos anos 90, foi a vez de se tornar a ponta de lança do chamado britpop, inclusive dando aquela amplificada boa na eterna rivalidade entre Blur e Oasis. E quando se tornou praticamente obrigatório ver o indie guitarreiro percorrendo suas páginas, dá pra cravar tranquilamente que grupos hoje consagrados como Strokes, Libertines e White Stripes jamais teriam existido como são hoje se a NME não os tivesse mostrados como a grande novidade daquela semana.
“É claro que a NME era uma revista sobre música indie, mas também era a revista com a qual as grandes estrelas queriam falar”, opina o ex-editor Alex Needham, pra Vice. “Claro, a gente punha o Arctic Monkeys na capa, mas também fazíamos o mesmo com o Outkast. NME foi a casa do Joy Division, mas também trouxe fez o público inglês descobrir o Public Enemy”.
É como diz o texto da BBC: imagine, se você conseguir, uma era antes dos músicos terem a chance de transmitirem cada minuto de suas vidas via mídias sociais ou dependessem de uma estratégia de relações públicas. Imagine que todas as informações que você sabe sobre seu ídolo não fossem notícia velha dentro de uma hora. Era nesta era que as pessoas compravam revistas de música. Pra se sentir mais próximas de uma banda, para se sentir parte de um movimento. “A música era a mais empolgante expressão da cultura jovem e, algumas vezes, até chegava a mudar a cultura da sociedade britânica. E a NME era uma porta de entrada para este mundo”.
Um mundo no qual o artista/banda tinha que seguir o cronograma “lança disco, dá entrevistas para revistas e jornais, sai em turnê, vende camisetas, começa tudo de novo”. Hoje, da mesma forma que no atual mundo da música é você que controla o play, também é o artista que decide como, quando e por onde começa o seu trabalho. A Anitta e seu Projeto Checkmate que o digam.
Exatamente por saber disso, aliás, o editorial que o Guardian dedicou ao fim da revista impressa trata a situação não como uma surpresa, mas se pergunta: onde os jovens de hoje vão buscar este tipo de sensação de excitação que outrora as revistas musicais ofereciam? “A NME verdadeiramente fez algumas bandas acontecerem, apesar de não tão frequentemente quanto eles tentavam. Mas, de qualquer forma, ela fazia os leitores entenderem porque as bandas importavam”.
Não por acaso, os especialistas afirmam claramente, por exemplo, que quando Johnny Rotten canta o trecho “I use the enemy” na letra de Anarchy in the UK, na verdade ele está fazendo uma brincadeira e querendo dizer “I use NME”. O artista também sabia o quanto aquela publicação era mais do que plataforma: era também um trampolim.
No caso da NME, em particular, tinha ainda uma questão mais interessante, porque os astros estavam conversando com repórteres que eram tão divertidos e cheios de opinião quanto eles próprios. Aliás, os redatores da revista também se tornaram ídolos, a seu modo, para os leitores, dando-lhes uma visão privilegiada do mundo dos rock stars. Não eram raros os casos de, tal qual Cameron Crowe na história que deu origem ao filme Quase Famosos, escritores saírem junto com os músicos em turnê por semanas, para registrar IN LOCO os dias mais selvagens deste tal de rock n’ roll.
Nick Kent, por exemplo, saía por aí com David Bowie, Iggy Pop e os Stones. Kate Tyler já contou mais de uma vez que ensinou os Pistols a enrolar um baseado e teve chance de tomar umas com Ozzy Osbourne deitada em sua cama. “A NME nunca me perguntou onde eu tinha estudado. Ou que certificados eu tinha”, afirmou Danny Baker, outro nome lendário da redação da revista, no Twitter. “Ou mesmo coisas como ‘onde você se enxerga daqui cinco anos’. Eles simplesmente mandavam você pra encontrar uma banda e te pediam pra escrever 400 palavras sobre eles. Se eles curtissem, te davam um álbum pra resenhar. E a próxima coisa que acontecia era você ir parar em Nova York”.
Um monte de grandes palavras que apresentaram um monte de grandes músicas para um monte de ouvidos
Os músicos também lamentaram a notícia — porque, afinal de contas, se você der uma boa olhada no site da NME, vai perceber que o foco lá está nas tais HOT NEWS, muito mais textos curtos, rápidos e com pouca profundidade do que no tipo de produção ao qual a revista se propunha. “Nosso amor a todos os redatores que nos ajudaram ao longo dos anos e a todo mundo que comprou uma cópia da revista. Éramos abençoados de poder ter vocês a cada esquina”, disseram os Libertines. “Quando comecei, minhas ambições eram fazer um disco, fazer uma turnê nos EUA e estar na capa da New Musical Express”, contou Billy Bragg, músico inglês que mistura folk e punk.
Mas talvez a melhor reação tenha sido a de Sam Duckworth, aquele que se apresenta usando o pouco usual codinome de Get Cape. Wear Cape. Fly., que definiu muito bem o papel da NME: “Um monte de grandes palavras que apresentaram um monte de grandes músicas para um monte de ouvidos”. Faz sentido.
Agora a curadoria fica a cargo de quem? do Discover Weekly do Spotify e similares? Ou a gente REALMENTE precisa de curadoria pra descobrir novas bandas? Fica aí a questão. :)
Pra não concorrer com Mulan, Bill & Ted 3 vai estrear em VOD mais cedo: 28 de Agosto! https://t.co/Bu3VBYYW8X