O racismo nosso de cada dia atinge o Homem-Aranha em Civil War II | JUDAO.com.br

Civil War II #5, publicado esta semana, transforma o paralelo entre o mundo real e os gibis em algo ainda mais profundo – além de colocar Miles Morales na rota de colisão com o grupo liderado pela Capitã Marvel

SPOILER! E se você tivesse o poder de prever o futuro, de saber com antecedência sobre um grande crime ou catástrofe, o que você faria? Reagiria com antecedência, evitando o crime, mesmo sabendo que o futuro ainda não está escrito ou agiria em favor da liberdade de escolha, já que um crime que ainda não foi cometido ainda não é um crime? Como você sabe, esse é o princípio de Civil War II, grande crossover que a Marvel Comics está publicando agora e que dividiu o mundo dos heróis em duas facções: uma liderada pela Capitã Marvel e que defende a ação “preventiva”; e a outra capitaneada pelo Homem de Ferro, que prefere proteger o futuro enquanto defende a liberdade de escolha.

Nesta semana, a Casa das Ideias publicou a mais recente parte dessa história, em Civil War #5. Depois do assassinato de Bruce Banner pelo Gavião Arqueiro – e a absolvição do herói – as coisas saíram de controle e a série novamente propõe um dilema que ecoa com força no mundo real.

Civil War #5Não, você não tem o poder de prever o futuro. Nenhum de nós tem. Por outro lado, tentamos fazer isso quase que o tempo todo. Julgamos as pessoas a partir de preceitos pré-estabelecidos sobre roupa, cor da pele, classe social, atitude, linguajar, olhar, saúde e outras incontáveis características. A partir disso, definimos nossas expectativas sobre aquele indivíduo. “Ela é confiável”, “ele é falso, vai me trair”, “uma piranha” ou “ele vai me assaltar”. Fazemos isso sem perceber, diariamente.

A força policial é pior. Esses preconceitos acabam, na maioria dos casos, se tornando parte da visão que eles possuem de mundo, pelos mais diversos motivos. Por isso, ao ver um negro abrindo um carro de luxo, por exemplo, um policial pode acreditar que é um assaltante, agir e prendê-lo – ou até matá-lo. Não estamos falando do Ulysses, o inumano de Civil War II que consegue prever o que vem a seguir e causou toda a confusão por lá, mas sim de um policial que agiu a partir de uma impressão de um futuro possível e tomou a atitude extrema para evitar que aquilo acontecesse.

Um dos resultados disso acontece no exato momento no qual escrevo este texto: Charlotte, na Carolina do Norte, está em estado de emergência por conta de protestos contra a polícia, que assassinou um homem negro chamado Keith Lamont Scott. Tudo começou na última terça, 20, quando os policiais estavam procurando um suspeito e viram Scott saindo do carro com o que alegam ser uma pistola. A família afirma que o homem, de 43 anos, que era deficiente, estava apenas sentado em seu carro enquanto esperava o filho chegar da escola, além de não ter qualquer arma de fogo.

Nos quadrinhos, o roteirista Brian Michael Bendis colocou isso de uma forma extremamente crua. Clint Barton matou Bruce Banner por conta das visões do Ulysses, que viu o Hulk atacando e matando, mesmo sabendo que o Gigante Esmeralda está controlado há um ano. No tribunal, o vingador foi inocentado com o argumento de que não só o próprio Banner pediu, tempos antes, para ser morto caso tivesse a chance de perder o controle (o que o Gavião achou que aconteceria, devido às visões do inumano), mas também porque “uma morte preveniu que diversas outras acontecessem”. Mesmo que não houvesse a garantia de que essas outras vidas seriam perdidas.

Uma violência que não aconteceu – que poderia acontecer, mas não aconteceu – serve para legitimar outra? Aos olhos de quem faz cumprir a lei, sim. Seja nos quadrinhos, seja na vida real.

O debate sobre a nova Guerra Civil é que o futuro é um conceito. Ele não existe. PONTO. Nossa visão sobre ele, ou a visão do Ulysses, automaticamente o transforma. Keith Lamont Scott, na última terça, poderia ter esperado o filho, partido com o carro e seguido a vida. Ele poderia ter visto a polícia, saído do carro e matado um policial. Não importa mais: a perspectiva que o policial tinha sobre o que iria acontecer em seguida moldou o futuro. A visão dele contaminou o que iria rolar depois, da mesma forma que as visões do Ulysses (junto com seus preconceitos e medos) contaminam o que vem a seguir.

Tudo isso é bem polêmico e é fácil entender o racha que causa nos heróis. Nessa quinta edição temos, efetivamente, a briga entre eles, iniciada após a SHIELD e Carol Danvers prenderem uma mulher porque, nas visões, ela é uma agente da HYDRA. Isso sem qualquer prova ou direito de defesa para a suspeita.

E é aí, no meio do grande conflito, que os poderes do Ulysses mais uma vez ficam maiores. Ele passa a dar para todos uma grande visão, mostrando o Capitólio em ruínas e, na frente dele, Miles Morales segurando um Steve Rogers morto. O suficiente para que a Capitã Marvel dê voz de prisão para o Homem-Aranha.

Miles e Capitão

Isso tudo vai ainda mais longe nos conceitos apresentados por Bendis nas edições anteriores. Miles é negro, uma representação clara de todo o debate do #BlackLivesMatter. De certa forma, é esse tipo de possibilidade de história que faz o Miles Morales ser um Aranha tão interessante, tão REAL, quando olhamos para as ideias originais do Stan Lee nos anos 1960.

Do outro lado, temos um Steve Rogers que todo mundo acha que representa o sonho e o ideal Americano, mas não é mais assim. Como revelado em Steve Rogers: Captain America #2, o herói teve a história de vida modificada pela Kobik e, agora, é um importante integrante da HYDRA. Na situação revelada por Ulysses, é mais crível que o ataque em Washington seja liderado pelo Rogers do que pelo Miles.

Mas, quem vai desconfiar do homem branco e, teoricamente, íntegro, não é?

A vida de Steve Rogers vale mais que a vida de Miles Morales? Não.

Aliás, a visão em si também não diz nada. Não é porque há um homem morto em suas mãos, em uma situação fora de contexto, que você é automaticamente culpado de assassinato. Nem é possível saber se isso acontece amanhã, depois ou daqui alguns anos. É, guardadas as devidas proporções, o mesmo que dizer que se tem um homem negro colocando a mão no bolso do casaco, ele é automaticamente culpado por um crime.

Também não dá pra saber o quanto do antigo Universo Ultimate, de onde Miles veio, pode estar REVERBERANDO na visão de Ulysses. Na minissérie Cataclismo, ainda no Ultiverso, Steve Rogers morreu para tentar salvar a Terra do ataque de Galactus, inclusive com uma famosa capa na qual o Homem-Aranha chora sobre o corpo do herói tombado. Uma imagem parecida com a que o inumano teve agora.

São várias as possibilidades. Só que, independente de qual delas seja a verdadeira, Carol Danvers vai agir como se Miles fosse automaticamente o culpado de um crime que ainda não aconteceu, não muito diferente dos policiais da Carolina do Norte. O Aranha não perderá a vida, mas já sabemos, pelas solicitações de dezembro da Marvel, que ele não terá uma vida fácil nos próximos meses, sendo perseguido por tudo e por todos como se fosse o grande vilão.

O mesmo destino que compartilham todos aqueles que, hoje, no mundo real, lutam para que suas vidas tenham a mesma importância que as outras.