O filme é meu e eu assisto onde e quando eu quiser! | JUDAO.com.br

Esta é a palavra de ordem para o novo fã de cinema, que mudou o jeito de consumir suas produções favoritas e está virando a indústria do avesso, fazendo-a se reinventar. Ou tentar.

João Gabriel é um programador paulistano de quase 30 anos de idade. Cinéfilo, ele costumava ir ao cinema toda sexta-feira, religiosamente, para conferir a grande estreia da semana.

Rato de locadora, era inevitável levar pelo menos dois títulos pra casa e assim sustentar o vício durante o sábado e o domingo. E a coleção de cerca de 350 títulos aumentava mensalmente, já que João comprava uns dois ou três DVDs/Blu-rays de lançamentos sempre que recebia o salário no final do mês.

Isso é o retrato de João Gabriel, claro, há cerca de dois anos. Tudo isso mudou radicalmente agora. Ir ao cinema ele vai uma vez por mês, se muito.

“Só quando rola um daqueles blockbusters do momento, que valem o ingresso de uma sala IMAX”, explica. Locadora é coisa do passado, já que ele assina serviços de streaming e, ao mesmo tempo, recorre ao Popcorn Time quando “não quer esperar tanto para ver aquele filme sobre o qual todo mundo está comentando”. Comprar DVDs? Só quando rola o saldão das Lojas Americanas, com títulos a R$ 12,90.

Te parece um cenário familiar? Pois é. A gente sabe. A indústria cinematográfica também. E tá todo mundo arrancando os cabelos pra entender o que vai acontecer a seguir e como se adaptar a esta nova realidade.

“O espectador busca, sim, diversidade no acesso – e os novos formatos o ajudam nisso. Mas a experiência da ida ao cinema dificilmente é superada quando o conteúdo tem a qualidade para tal”, aposta Gabriel Gurman, gerente de marketing da Paris Filmes, atualmente a líder do market share do mercado de cinema no Brasil.

Ele diz que a resistência aos filmes no formato digital ainda esbarra na penetração da banda larga no país. “Ainda assim, a experiência de assistir a um grande filme nesses formatos nunca será igual a assisti-lo nos cinemas”. A maior rede de salas de cinema do país, o Cinemark, faz eco. Em uma nota um tanto burocrática enviada ao JUDÃO, eles afirmam que o cinema “ainda se mantém como a melhor opção para quem quer assistir aos grandes lançamentos fora de casa, com tecnologia de ponta”.

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Mas, apesar de todo este otimismo, parece que os números contam outra história...

De acordo com um levantamento da Motion Picture Association of America (MPAA) realizado pela Nielsen, as rendas com bilheteria nos EUA caíram 5,2% no ano, com o público diminuindo 6%. Trata-se do pior resultado em quase 20 anos. Mas o mais preocupante é que a queda de espectadores na faixa etária de 14 a 24 anos, justamente o público que Hollywood mais quer atingir com as suas grandes franquias, foi de 15%, sendo que no ano anterior já tinha sido de 17%.

“Os filmes não são mais a única diversão na cidade”, afirmou Jeff Bock, analista da empresa especializada em bilheterias de cinema Exhibitor Relations, ouvido pelo jornal Boston Herald. “São celulares, streaming, entretenimento instantâneo, e o cinema não é isso. O formato ficou para trás nesses quesitos”.

Uma pesquisa recente da PricewaterhouseCoopers mostra que o consumo de filmes via streaming e download digital tem sido o principal responsável por esta mudança. Em 2016, a renda obtida com a venda de DVDs e Blu-rays no mundo será ultrapassada pelos entretenimento em home video online – caindo mais que 28% com relação ano passado. E por volta de 2018, a tendência é que este consumo “doméstico” digital deixe os números do cinema comendo poeira, ultrapassando a casa dos US$ 17 bilhões.

Irônico é pensar que a maior e mais bem-sucedida empresa de oferta de conteúdo em streaming no planeta, que hoje tem um valor de mercado estimado em US$ 41 bilhões, tenha começado como uma locadora de DVDs, em 1997. Exatos dez anos depois, o Netflix se tornaria um serviço exclusivamente de streaming, iniciando os trabalhos com a série Heroes. Hoje, a empresa é responsável por 34% do tráfego de banda larga nos Estados Unidos durante o horário nobre, de acordo com levantamento da fabricante de equipamentos Sandvine.

Earns Netflix
Obviamente que o serviço, que até o final de 2016 planeja estar em todo o mundo (literalmente), vem sendo bastante lembrado por seu impressionante acervo de séries, em especial aquelas elogiadas produções originais, de House of Cards a Orange is The New Black, passando pelas recentes Sense8 e Demolidor. Mas, da mesma forma que concorrentes como o Crackle, o NET Now, o SKY Online, o Vivo Play, o Telecine Play e o HBO Go, o Netflix sofre no que diz respeito ao catálogo de filmes.

As negociações de direitos autorais variam muito de país para país. E isso justifica, por exemplo, os problemas que a empresa vem enfrentando em sua entrada no mercado europeu. Uma matéria do The New York Times mostra que, depois de um início bem-sucedido na Inglaterra e em alguns países da Escandinávia, o Netflix enfiou as caras em mais seis países da Europa, buscando um mercado potencial de mais de 66 milhões de lares com banda larga (no Brasil, país muito maior em termos de território, temos cerca de 24 milhões, de acordo com levantamento da Anatel realizado neste primeiro trimestre). Mas eis que o Netflix se deparou com as dificuldades do que chamou de “diferenças culturais”.

Além das muitas ofertas de serviços de streaming locais, vieram as queixas sobre a oferta de filmes. A companhia não divulga o número de títulos em cada um de seus territórios, mas de acordo com o site especializado Netflixable.com, existem mais de 8.500 filmes na versão norte-americana do serviço – contra 3.100 na Inglaterra e 2.000 na maior parte dos outros países europeus. Na França, vejam só, não existe House of Cards – que já tinha sido negociada com canais locais antes que a Netflix resolvesse conquistar o continente europeu. O mesmo rolou na Austrália. Compraram os direitos, bancaram a produção, mas com a condição de serem distribuidores exclusivos NOS MERCADOS EM QUE ATUAVAM. O contrato deixou a coisa toda em aberto e...CUÉN.

Exatamente por isso, cresce bastante não apenas na Europa mas em todo o mundo o acesso do Netflix via VPN, as redes privadas virtuais que permitem fazer uso da programação americana dos caras. A firma de pesquisa britânica GlobalWebIndez estima que por volta de 54 milhões de pessoas acessem mensalmente o Netflix via VPN por mês – incluindo a polpuda quantia de 20 milhões só na China, por motivos de...cof, cof...censura...cof, cof.

Justamente por isso, sabendo destas limitações de catálogo, o plano do Netflix é se tornar global. Ou, como dizem eles internamente, GLOCAL, mistura de Global com Local – um conceito que o mercado publicitário AMA.

Basicamente, isso significa que a ideia é que tenham o mesmo catálogo pro MUNDO TODO quando se tornarem globais. Você vai estar, por exemplo, na Jamaica e vai ver o catálogo global, simples assim. Eles não querem mais ficar negociando região por região, que é como as distribuidoras querem jogar este joguinho. O catálogo se torna maior e mais parecido com os dos EUA – à exceção, claro, de algumas negociações locais realizadas em territórios estratégicos como o Brasil – a galera para de reclamar e NA TEORIA para de usar o VPN.

Só que o outro caminho pra reverter esse cenário passa pela produções de filmes exclusivos para as plataformas de streaming. Ok, nós sabemos bem que: 1) é bem mais fácil piratear um filme do que uma série completa, que tem muitos episódios para baixar (embora uma busca por “Demolidor” nos torrents da vida mostre que uma coisa não impede a outra, rs); 2) uma série te deixa preso no serviço durante umas 10, 15 horas, contra as 2 horinhas de um filme – e custando praticamente o mesmo valor na hora de produzir. Mas ter filmes originais é uma forma de se tornar relevante pra quem não aguenta mais esperar pelo dia em que seu filme favorito vai estar disponível, ou que reclama de um catálogo limitado.

Assim sendo, querem investir em suas próprias produções cinematográficas para entender até que ponto conseguem fazer uso deste novo jeito de consumir cinema. E aí surgem aqueles trocentos projetos com o Adam Sandler (como se já não tivesse bastante filme com o Adam Sandler no mundo), a continuação de O Tigre e o Dragão e War Machine, sátira política estrelada e produzida por Brad Pitt a respeito de um general americano em pleno conflito do Afeganistão. Este dois últimos, planejados para serem lançados simultaneamente na plataforma de streaming do Netflix e também nos cinemas, prometem sofrer as mesmas retaliações que sofreu, por exemplo, Beasts of No Nation, drama de Cary Fukunaga (True Detective) com Idris Elba comprado pelo Netflix e que pretendia estrear ao mesmo tempo nas telonas e no serviço. É, isso mesmo, “pretendia”.

Beasts of No Nation

Beasts of No Nation

As quatro maiores cadeias de cinemas dos EUA já deixaram claro que vão boicotar o filme. AMC, Regal, Carmike e Cinemark declararam que a história sobre crianças atuando como soldados em países africanos não caberia em suas salas por não honrar a... estão preparados?... janela mínima de 90 dias entre a exibição no cinema e a chegada ao mercado de home video, em qualquer que seja o formato. A intenção do Netflix era estrear o filme em algumas “salas selecionadas” em algum momento até o final do ano, para garantir uma possível qualificação para o Oscar. Mas já descobriu que vai ser mais difícil do que imaginava.

Uma voz, no entanto, se opõe a esta postura e parece entender que o mundo mudou. “Eu sou agnóstico sobre estas coisas”, afirma em entrevista para a Variety Tim League, CEO e fundador da The Alamo Drafthouse, cadeia independente de cinemas com 19 salas em estados como Texas e Califórnia. “Eu olho para os filmes que quero exibir, vou lá e exibo, independente da estratégia de lançamento”. O executivo diz que não se enxerga como um competidor do Netflix. “Eu vejo um monte de filmes em casa, mas chega uma hora em que eu quero sair. Eu olho para o cinema como uma das opções que competem com restaurantes e jogos de beisebol e todas estas coisas que não posso fazer na sala da minha casa”.

É uma visão interessante. Mas que representa apenas 19 das mais de 40.000 salas atualmente em atividade nos EUA.

Por outro lado, o mesmo Netflix já teve uma experiência bastante positiva no mercado mexicano. Este ano, a comédia política La Dictadura Perfecta, que fala sobre corrupção no governo do país e traz no elenco o ex-RBD Alfonso Herrera, foi disponibilizada no serviço menos de cinco meses depois de ter estreado nos cinemas – uma janela bem menor do que eles estão acostumados por lá, fazendo uma verdadeira chiadeira rolar entre os donos dos cinemões. Mas o excelente resultado de público, claro, fez a Netflix ter certeza de que quer desafiar as janelas o tanto quanto puder.

Além disso, nós já sabemos que algumas distribuidoras locais, aqui no Brasil, estão bastante interessadas em fazer lançamentos específicos com o Netflix que tenham um espaço de tempo beeeeeeeeem menor entre a saída do cinema e a chegada ao home entertainment. E também pudemos apurar, junto a fontes no mercado, que as grandes cadeias exibidoras de cinema daqui pretendem se posicionar contra isso e não apoiar filmes que sigam esta estratégia. “Não apoiar” significa não dar muitas salas de cinemas para eles, sabe? :)

O grande lance é que enquanto a indústria tenta se preservar, o consumidor médio vai se acostumando a um novo jeito de se relacionar com a mídia e ficando cada vez mais exigente. “Isso tem que mudar com urgência. Eu, como colecionador, gostaria de sair do cinema já com o meu Blu-ray do filme que acabei de assistir”, opina Juliano Vasconcellos, arquiteto, professor universitário e responsável pelo site Blog do Jotacê, focado em colecionadores de itens como DVDs e Blu-rays. “Sei de todos os problemas que isso poderia acarretar, mas imaginem que sonho ir no IMAX e no final já garantir de alguma forma sua cópia física daquela obra? O mercado precisa se reinventar, inclusive valorizando mais quem vai ao cinema”.

O canadense Robert English, do alto de seus 20 e poucos anos, também acha – mas deixa claro que duvida que plataformas como o Netflix signifiquem necessariamente o fim do consumo de coisas como o DVD e uma ida ao cinema. Detalhe fundamental aqui: atendendo pelo nickname de KsaRedFx, Robert é um dos programadores do Popcorn Time. É, sim, ele mesmo. Você sabe do que estamos falando.

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“Pessoalmente, eu curto ir ver um filme na tela grande e numa sala escura, com pipoca e som surround”, diz Robert. “Não é algo fácil de reproduzir em casa e sei que não estou sozinho quando digo isso”.

Robert diz que não considera a si mesmo e nem a nenhum dos integrantes do Popcorn Time como “piratas” e afirma que ninguém deveria ir para a cadeia por ver um filme desta forma. “Na verdade, eu acho que estes ‘piratas’ ajudam a indústria. Por exemplo, tem alguns filmes que eu continuo querendo ver no cinema por mais que eu tenha assistido em casa. Ainda quero comprar camisetas e bugigangas de séries e filmes. Eu até tenho uma assinatura do Netflix e pago por centenas de canais na TV – então, a maior parte do conteúdo que eu ‘roubo’ na verdade está sendo pago”.

Outra coisa que o programador faz questão de deixar claro: o Popcorn Time não é um negócio. “Não fazemos dinheiro com isso. Nós somos uma comunidade. Fazemos o que fazemos apenas para espalhar a palavra e a alegria de conseguir ter todo este conteúdo on demand em casa”.

A controversa diretora Lexi Alexander, defensora do compartilhamento de arquivos e que bateu um papo com o JUDÃO em janeiro deste ano, costuma se perguntar, em seus artigos: “imagine que você é o CEO de um provedor de serviços de mídia on demand. Você não ficaria curioso para conhecer os caras que criaram um sistema de streaming de vídeo que funciona melhor do que aquele desenvolvido pelos engenheiros que estão na sua folha de pagamento?”. E completa questionando se “não faria mais sentido oferecer para estes caras um trabalho de milhões de dólares ao invés de gastar estes mesmos milhões com advogados para tirá-los de circulação?”.

O Popcorn Time responde que, até o momento, não apenas nenhum estúdio entrou em contato com eles, como eles também jamais chegaram a conversar com ninguém por lá. “Nunca criamos nada oficial para eles e tenho a sensação de que eles jamais nos procurariam com isso em mente”.

Além de deixar claro que SABE que as pessoas da própria indústria fazem uso do Popcorn Time em seus momentos de lazer, apesar do discurso, Lexi evoca outro grande ápice do consumo de mídia digital, mas de uma outra indústria. “Vocês sabem como a história do Napster acabou. O garoto genial foi derrubado e, alguns anos depois, a Apple vende 5,2 bilhões de faixas no iTunes”.

Quais serão os próximos passos desta história toda? Juramos que não sabemos. Mas estamos loucos para ver o desenrolar da jornada. Porque o trem, senhores executivos da indústria do entretenimento, já saiu da porra da estação. É melhor vocês acordarem logo porque ele está ficando cada vez mais veloz – e o maquinista já foi até jogado pra fora da maria fumaça.

Agora são os passageiros que estão no controle. Se quiserem subir a bordo, simpáticos senhores de terno, é melhor afrouxarem a gravata e entenderem como eles pensam. De verdade.

Bora tentar garantir a passagem na próxima estação? ;)