Ou, ao menos, para um que tenha um personagem próximo à cria do Neil Gaiman?
Era 1989. O mercado dos quadrinhos como um todo havia mudado muito nos anos anteriores. O ADVENTO das comic shops e do mercado direto tirou a importância das bancas e das vendas em grandes volumes. Um Superman e um Batman continuavam vendendo bem, claro, mas a possibilidade de dialogar com nichos nunca antes explorados pelas editoras de quadrinhos dos EUA abriu todo um novo leque de possibilidades – e a passagem de Alan Moore pelo Monstro do Pântano era uma grande amostra disso.
Foi então que outro roteirista inglês, Neil Gaiman, surgiu com uma ideia inicial para reviver um antigo personagem da Era de Ouro e que, na década anterior, tinha ganhado uma nova versão pelo mestre Jack Kirby. A editora Karen Berger não só comprou a ideia, como conseguiu espaço para Gaiman trabalhar em uma revista mensal. Nascia Sandman.
Corta pra 2016. Sandman é um sucesso de público e crítica, que ajudou a colocar as HQs como uma mídia mais interessante, artisticamente falando, com roteiros mais densos e adultos. Só que, num mundo no qual toda e qualquer história em quadrinhos é um filme em potencial, a adaptação do Mestre dos Sonhos está tropeçando para encontrar o seu lugar. A última notícia é justamente a saída de Joseph Gordon-Levitt, que estava produzindo, ia dirigir e era cotado para ser a grande estrela do longa. Via post no Facebook, o ator alegou diferenças criativas com a New Line, que assumiu a produção depois de umas mudanças internas na Warner.
“Há alguns meses, eu percebi que os caras na New Line e eu não nos entendemos sobre aquilo que faz o Sandman ser especial, e sobre como uma adaptação para os cinemas pode/deve ser”, disse o ator/produtor, que estava envolvido há um pouco mais de dois anos e fez largos elogios para o pessoal da WB, que cuidava diretamente do projeto antes das mudanças.
Na prática, tudo isso demonstra um grave problema ao se adaptar Sandman: esta é uma adaptação cara, com o mundo dos sonhos exigindo um enorme esforço da galera que faz o CGI. Mas, por outro lado, não estamos falando de um blockbuster como um Jurassic World da vida. É, de certa forma, uma adaptação que poderia fazer o mesmo pelos filmes baseados em quadrinhos que o gibi original fez pelas ~revistinhas de super-heróis. Só que grandes estúdios não são necessariamente produtoras de bons filmes, mas sim máquinas de se fazer dinheiro para seus executivos, grupos de mídia e investidores.
Foi por isso que, lá na primeira metade dos anos 1990, o primeiro projeto de adaptação do personagem não deu certo. Roger Avery, roteirista de Pulp Fiction, foi chamado pela WB para dirigir essa primeira tentativa – e a ideia dele era ficar próximo do material original, mesclando os arcos Prelúdios e Noturnos e A Casa de Bonecas. Só que ele se desentendeu com o produtor John Peters, aquele mesmo dos quatro primeiros filmes do Batman e responsável pelo finado Superman Lives com Nicolas Cage. Anos depois, o roteiro proposto por Peters caiu na internet e Gaiman o classificou como “facilmente o pior script que eu já li”.
O baque foi tão grande que, por muito tempo, Gaiman se envolveu cada vez menos com projetos do Morpheus.
Nos anos seguintes, o filme de Sandman ficou no limbo. A ideia foi ressuscitada em 2010, já com a DC mais próxima da Warner após a criação da DC Entertainment e presidida por Diane Nelson – a mesma responsável pelos filmes de Harry Potter. Porém, o foco mudou: a ideia era fazer uma série de TV, com um pitch inicial do James Mangold, pra HBO e, inclusive, com consultoria do próprio Neil Gaiman.
Se você pensar no quanto Game of Thrones deu certo, esse poderia ser o caminho ideal para tornar possível uma adaptação de Sandman. Só que a WB Television não só não curtiu muito a ideia, como acabou licenciando os direitos da franquia para Eric Kripke, o criador de Supernatural. Mais uma vez ficava claro que os Irmãos Warner preferiam dar mais foco na audiência do que nesse lado mais REBUSCADO da adaptação (e, dessa forma, assumindo menos riscos na hora de ganhar dinheiro). Gaiman novamente não ficou lá muito confortável com a ideia e o projeto se perdeu no lado obscuro da Caixa D’Água — mas, ainda assim, plantou a sementinha para uma série baseada em outra cria do escritor inglês nas páginas de Sandman, o Lúcifer.
E aí chegamos em 2013. Em dezembro daquele ano, o produtor David S. Goyer (o mesmo dos filmes do Batman de Christopher Nolan) avisava que estava trabalhando numa adaptação de Sandman para os cinemas, junto com Joseph Gordon-Levitt e o próprio Gaiman. Parecia que finalmente o filme iria acontecer e, de acordo com os rumores, com o próprio Gordon-Levitt sendo o protagonista. Mas, como tudo relacionado ao Morpheus, coisas estranhas voltaram a acontecer.
Em junho do ano seguinte, a WB anunciou que estava repassando as adaptações do selo Vertigo (incluindo Sandman e Preacher) para a subsidiária New Line, a mesma responsável por Senhor dos Anéis. Assim, a Warner poderia focar mais em Batman vs. Superman e os outros DC Filmes. Depois, em outubro, o estúdio divulgou todo um line up de lançamentos dos filmes baseados em personagens da editora, mas sem Sandman – o que, de acordo com Gaiman, se justificaria pelo fato da produção estar nas mãos da New Line.
O que ninguém sabia é que, internamente, a mudança de casa estava sendo bem conturbada, como Joe deixou bem claro no comunicado mais recente.
É que lá atrás foi anunciado que Jack Thorne, responsável por roteiros da série Skins e criador da minissérie Glue, foi contratado para escrever o roteiro. Só que aí, na última sexta (4), o THR informou que a New Line havia escolhido Eric Heisserer (de filmes de horror como Premonição 5 e o A Hora do Pesadelo de 2010) para cuidar do roteiro. Nenhuma palavra foi dita sobre a contratação anterior.
Entre o anúncio do novo roteirista e o post do Joe sobre a própria saída – que fez questão de elogiar Thorne — se passaram menos de 24 horas. Coincidência? Acho que não.
Mais uma vez, o embate fidelidade vs. dinheiro se fez presente. Glue, por exemplo, pode não ter sido muito comentada, mas foi extremamente elogiada na Inglaterra. Skins também ganhou diversos prêmios, mas a adaptação pra TV nos EUA não foi pra frente. Já os trabalhos de Heisserer vão no sentido oposto – o remake de A Hora do Pesadelo deu um bom lucro, por exemplo. Mas já a crítica...
No Twitter, Neil Gaiman não demorou pra demonstrar todo o apoio para Joseph Gordon-Levitt, deixando claro que dava todo o RESPALDO pras ideias do cara. “Pra mim, o que é importante são 2.500 páginas de Sandman, e não um filme que pode ou não acontecer”, continuou o escritor, que também esclareceu que o personagem é propriedade da DC e não dele. Isso quer dizer que, bom, o inglês descabelado não pode fazer muita coisa em relação aos mandos e desmandos da New Line.
A essa altura, você deve estar se perguntando o porquê de tudo ser tão diferente após a mudança de estúdio. É difícil saber de longe, mas pode ser que os executivos da Warner Bros. Pictures não necessariamente tinham uma visão mais próxima da dos produtores, mas sim que sabiam levar melhor essa disputa de grana, arte, investidores e egos. Por outro lado, faltou habilidade da New Line — que, até agora, pouco andou com as propriedades da Vertigo — pra lidar com esse complicado jogo e seus riscos.
Fica a lição que, do jeito que são hoje os grandes estúdios de cinema, muito provavelmente o Sandman não ganhará a adaptação que merece. Com os estúdios tocando o projeto como fazem normalmente, dificilmente Morpheus terá um filme digno de nota. Só nos resta, então, desencanar dessa história toda – ou torcer pra que, no futuro, o cinema passe pela mesma mudança que passaram os quadrinhos lá nos anos 80.
Quem sabe o streaming seja esse caminho, não é?