Yuri Amaral, quadrinista de Foz do Iguaçu, acaba de inaugurar uma campanha para lançar a versão impressa de sua bem-sucedida HQ online – cuja história tem muito dele próprio mas também muito do que o mundo de hoje precisa
A vida de um garotinho que mora num lugar onde todo mundo voa... menos ele. Esta descrição assim tão curta e simples já poderia te dar uma boa dimensão do que rola em O Menino Que Não Sabia Voar, HQ independente publicada desde 2015 em OMenino.com.br sobre a vida de Kai Thuri e toda a população do Vale, cercado por imensas montanhas, isolado do resto do mundo.
Ao completar quatro anos – idade quando os primeiros voos acontecem – Kai decepciona a todos ao se mostrar incapaz de voar. Ao longo de sua jornada, o menino busca sem parar por uma resposta. Afinal, por que ele é diferente de todos? Uma história cheia de camadas sutis sobre preconceito, sobre se sentir diferentes em meio a um monte de gente “normal”.
Mas quando o autor da obra, Yuri Amaral, começa a falar com empolgação sobre um verdadeiro multiverso que mistura fanáticos religiosos, politicagem, isolamento do mundo, mitologias e dimensões paralelas, descobrimos que Kai, o menino que não voa, se transformou na verdade apenas num fio condutor de uma narrativa muito maior que ele. “É difícil resumir porque são mais de 200 anos de história — e sei que vai levar um bom tempo pra lançar tudo”, explica ele, em entrevista ao JUDAO.com.br. “Só acompanhando suas aventuras e desafios pra conseguir captar a essência do que ele, e todas as suas amigas e amigos, representam”.
Desenhando desde sempre, Yuri trabalhou durante um tempo com publicidade, uma história que tem sido recorrente em toda conversa recente que temos com quadrinistas. “Fiquei anos sem desenhar, de fato. Na verdade, fiz publicidade porque minha mãe disse ‘você desenha, filho, faça publicidade’. Caso contrário, teria feito nutrição”. No fim, ele sacou que este mundinho de briefings, brainstorms, feedbacks e demais estrangeirismos marketeiros o estavam levando para um lugar muito longe de si mesmo.
Depois de passar dois anos em São Paulo, ele retornou pra Foz do Iguaçu, sua terra natal, e começou a dar aulas. Mas seu universo só se expandiria graças a um mestrado em Estudos Interdisciplinares Latino-Americanos. “Minha visão de mundo se expandiu de uma forma absurda. Foi nesse período que aprendi e assumi minha sexualidade de outras formas, com engajamento político e consciente do meu local de fala — e foi nessa pós também onde aprendi sobre minha identidade latino-americana”.
O Menino começaria, então, a surgir lá em meados de 2010 – mas foi só depois de um combo de desemprego com tempo vago que Yuri teve tempo pra explorar o começo de tudo. “A história ganhou vida, sabe?”, explica ele. “Tipo, não me vejo mais criando ela, mas sim ouvindo alguém sussurrar tudo que vê nesse multiverso, pois eu fico muito assustado e feliz com as coisas que surgem”.
Quando a trama surgiu, por exemplo, Kai não existia, mas sim Kairos, a primeira criança a voar. “Ele ainda existe e a história dele será lançada, mas o que aconteceu é que depois de imaginar um menino que não sabe voar em um lugar onde todo mundo voa, veio a pergunta: tá, mas quem foi a primeira criança a voar? E é assim que crio esse universo, respondendo perguntas (as vezes estranhas), que aparecem”.
Para tentar se manter e produzir com mais frequência, Yuri então criou uma campanha de financiamento coletivo recorrente pelo Apoia.se, que hoje conta com 75 pessoas, contribuindo com cerca de R$ 670 ao mês. “Ainda não traz estabilidade, mas com certeza ajuda muito nas despesas”, explica ele. “Descontando os 13% da ferramenta, me sobra uns 500 reais por mês, que ajuda muito, porque já é o aluguel”, brinca. Pra ajudar na renda, ele e o namorado, Juliano Brusnicki, fundaram e mantêm o Coelho Jujuba, uma marca de cadernos e camisetas artesanais. “Às vezes aperta, as vezes sobra um pouquinho, mas nunca passamos fome ou necessidade. Mas aqui, vale ressaltar: se não fosse a comunidade criada pelo financiamento recorrente, o projeto no Catarse não teria começado como aconteceu. Foi nesse espaço que tive a oportunidade de crescer, conhecer pessoas e fazer novos amigos. Acredito que o financiamento vai muito além da troca dinheiro-produto final: é sobre afeto, amizade e acreditarmos uns nos outros”.
E foi com este pensamento de troca, atendendo aos pedidos dos apoiadores frequentes, que ele se deixou picar de vez pelo bichinho do impresso, aquele que vez por outra mordisca as canelas dos quadrinistas. “Gosto de publicar pela web, mas fico limitado a participar de feiras, por exemplo. Mas confesso que estou gostando da ideia, a emoção de ver um trabalho seu, literalmente, nas prateleiras das pessoas... é de dar comichão no estômago”. Originalmente, seu plano era lançar cada parte da história de um jeito: impresso, zine, livro de contos, digital... Até animação estava nos planos. “Mas se tem uma coisa que aprendi na minha vida é que tá tudo bem mudar de plano”. O resultado é o projeto que fica rodando no Catarse até dia 22 de março – mas que já ultrapassou 50% de sua meta total.
O livro de 120 páginas coloridas vai trazer, como novidade para quem acompanha na internet, o capítulo 5 história, com aproximadamente 25 páginas (o maior deles até agora), encerrando a primeira parte do Menino, respondendo muitas dúvidas que surgiram ao longo da narrativa – mas deixando outras, muito mais complexas. “Também vou revisar todas as páginas lançadas, porque do primeiro capítulo para o último tem quase 3 anos de diferença, e é visível minha evolução no desenho, então quero tentar equilibrar um pouco tudo isso”. Além disso, ele sonha em atingir especialmente uma de suas metas, garantindo pra todo mundo que apoiou com partir de R$ 25 um novo livro, estrelado pela personagem Yala.
Os leitores fiéis d’O Menino Que Não Sabia Voar sabem quem ela é dentro da história, mas a origem desta entidade do Reino dos Sonhos que, por acaso, se tornou habitante do multiverso do Menino, é ainda mais empolgante – porque ela também é a identidade drag de Yuri. “Ela nasceu não apenas da minha drag, mas principalmente dos meus sonhos”, revela o autor. “Desde criança tenho sonhos MUITO reais e intensos, fiz um diário com mais de cem. Lembrar cheiro, cores, texturas... comecei a reparar em elementos que se repetiam e formavam uma narrativa e, por isso, decidi escrever sobre”.
Conforme escrevia, Yuri sacou, por exemplo, que a mãe do Kai tem uma personalidade muito igual à de sua própria mãe e o próprio protagonista representa uma resposta aos garotos que o desrespeitavam na escola por ser “a criança viada”. Kai se levanta, responde e luta. “Eu ficava quieto, não sabia responder e me defender e quando recorria às forças da direção, professores, etc, só encontrava negligência e silêncio”, relembra. “De certa forma, acho que quando a gente cria uma história, tudo em nós se reflete nela: vontades, sonhos, visões de mundo e, de alguma forma, essas histórias se tornam um palco onde encontramos respostas e soluções para sentimentos que não conseguimos entender”.
Justamente por isso, Yuri admite que o Menino é resultado de suas vivências, das relações de amizade, trabalho e institucionais, sempre tentando, de alguma forma, criar um contexto único pra passar uma mensagem simples: respeite a si mesmo e aos outros. “Justamente por esse pensamento, preenchi a história com muita representatividade (não igual a JK Rowling COF COF), mas pensei muito em como e quando inserir e tomar o cuidado de que sexualidades, por exemplo, sejam mais um espectro da personalidade/identidade, mas que não sejam a única característica explorada. É algo que apenas acompanhando a história o leitor conseguirá perceber e entender”.
No fim, ele afirma que não cria pensando em quem seria o público-alvo de sua história, justamente porque este é um conceito que descaracteriza, anula as diferenças. “ Então, eu não crio minha história pensando em que tipo de pessoa vai ler, mas crio com o sentimento de tocar o coração das pessoas, de envolvê-las com os personagens ao ponto de que elas se tornam parte da narrativa”. Considerando-se no caminho certo, Yuri diz que nesses dois/três anos publicando, todo tipo de gente já veio falar com ele, de criança a adulto, dos mais diversos gêneros, sexualidade...
“Afinal, todo mundo tem um menino que não sabe voar dentro de si, que deseja tocar o céu”.
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