O passado político da dublagem (e da legenda) | JUDAO.com.br

Narcos provoca os norte-americanos a experimentarem as legendas e, enquanto isso, se torna um ótimo gancho para discutir não só como chegamos num mercado com tanta presença da dublagem, mas também a importância do poder de escolha

É de noite. Nicko está sozinho, num carro, até que ninguém menos que Pablo Escobar abre a porta e entra. “Are you ok?”, diz o traficante, pra ouvir um “yeah”. “Nick, I need you to go to the town called Ituango. Right here. When you get to the main square, park in front of the church”.

A cena continua, claro, com Pablo dando instruções exatas do que Nicko deveria fazer na cidadezinha. Tirando um “setenta y dos” e outras palavras em espanhol, basicamente toda a conversa (assim como boa parte do resto da produção) é em inglês. Mas... Pablo Escobar nunca falou inglês na vida.

Esse é um trecho de Escobar: Paraíso Perdido, com Benício Del Toro, que, nos últimos dias, foi usado por Wagner Moura como defesa de seu (injustamente) atacado sotaque espanhol na série Narcos. Duas visões de uma mesma história que tem muito mais em comum do que o Cartel de Cáli.

O americano médio odeia legendas. Tudo o que ele consome na televisão e no cinema é produzido em inglês e, assim, o que é feito em outras línguas acaba sendo relegado a um segundo plano tanto no mercado do entretenimento quanto no gosto local.

Veja a lista das maiores bilheterias de produções em “língua estrangeira” nos EUA, feita pelo Box Office Mojo. O líder é O Tigre e o Dragão, lançado em 2000, com US$ 128 milhões de arrecadação – um número que o bota na 393º posição geral. A diferença pro segundo lugar também é abissal: o italiano A Vida é Bela, de 1998, arrecadou US$ 57 milhões, seguido “de perto” por Herói (de 2004), com US$ 53 milhões. Cidade de Deus? Bom, o filme brasileiro tá lá na 35ª posição, com US$ 7 milhões — mais do que Central do Brasil, que faturou US$ 5,5 milhões.

Quer potencializar a bilheteria na China? Coloca um ator chinês por dois segundos. Quer fazer o mesmo nos EUA? Use o inglês. Não importa a língua original do personagem, inglês. Ele até pode usar uma ou outra expressão no original, tal qual Glória Perez adora fazer nas suas novelas (o que nos lembra que o americano médio não é assim tão diferente do brasileiro médio), mas o que importa precisa estar em inglês. Nem que seja necessário uma dublagem por conta de um SOTAQUE, como aconteceu com o Mad Max original.

Escobar: Paraíso Perdido

Escobar: Paraíso Perdido foi gravado no Panamá, contando uma história essencialmente Colombiana, com produtores Franceses, Espanhois e Belgas (o que o torna um filme Panamenho, Francês, Espanhol e Belga), mas com o protagonista, porto riquenho, falando em inglês.

Narcos é parte de uma “nova” indústria do entretenimento, que olha pro MUNDO, ao invés dos EUA. Além de Wagner Moura e José Padilha dirigindo e produzindo, tem o argentino Juan Pablo Raba, o brasileiro André Mattos, o porto-riquenho Luis Guzmán falando em espanhol colombiano, o chileno Pedro Pascal e a inglesa Joanna Christie, falando em inglês — ou, mais especificamente, a língua nativa do PERSONAGEM.

Não tem como os gringos fugirem, se por acaso quiserem o áudio original (que, sinceramente, existe a enorme a chance de eles não saberem que podem alterar): vão precisar das legendas pra entender todos os diálogos.

Nos EUA, a atitude tem sido valorizada na imprensa. “Boa, Netflix”, disse o Washington Post, comemorando que as legendas e os diálogos em espanhol vão surgindo vagarosamente no primeiro episódio. “As primeiras cenas são o equivalente a mamãe e papai falando, ‘vai, tenta, você vai gostar’. Vê como é fácil ler um pouco?”.

Narcos

A versão dublada manteve a mesma postura de SALADA CULTURAL. Se você assistiu à versão Brasileira de Narcos, reparou que apenas os americanos e eventuais diálogos em inglês são dublados. O espanhol é o original dos atores na enorme maioria dos casos (isso porque se o personagem que fala em inglês desandar a falar em español no meio da conversa, vai ser dublado também).

Não tem jeito: se quiser entender 100% do que é falado, ou você aprende espanhol, ou lê as legendas. :)

Isso pode colocar um enorme ponto de interrogação na sua cabeça, num primeiro momento, mas evita por exemplo que Wagner Moura precise ser dublado em português (ou seria com o próprio ator, ou soaria estranho) e, principalmente, assume o inglês como a língua universal, que pode soar como qualquer outra, ao contrário da língua daqueles personagens tão locais, que deve ser respeitada para uma compreensão maior do CONTEXTO, essa coisa às vezes tão esquecida.

E isso se repete em todos os mercados em que dublaram — especialmente na Europa, onde a cultura da dublagem é muito mais forte, até por conta de leis que obrigavam filmes a serem dublados, na maioria das vezes, sob a justificativa de proteger a língua.

Na França, em 1932, ainda no início do cinema falado, o governo definiu uma cota de 200 filmes estrangeiros por ano – sendo 125 gravados diretamente em francês e os outros 75 dublados nessa língua. Essa regra acabou sendo afrouxada, liberando mais filmes dublados na língua de Napoleão e a dublagem se tornou regra.

Mussolini - Itália

Na Itália, Benito Mussolini proibiu filmes em língua estrangeira em janeiro de 1930. Houve confusão, claro: as distribuidoras passaram a cortar os diálogos dos filmes e deixá-los como filmes mudos, enquanto o mercado exigia que o ditador afrouxasse a lei. Isso acabou acontecendo – e, em 1933, 60% dos filmes eram dos EUA, significando 90% da arrecadação. Mussolini continuou na gritaria e acabou obrigando que todos os filmes estrangeiros fossem dublados em italiano localmente. A partir de então, o gosto local foi sendo moldado – e, até hoje, os italianos preferem mais o dublado que o legendado.

Já na Espanha, depois de debates sobre proibição e cotas de filmes americanos nos anos 30, as línguas estrangeiras acabaram efetivamente banidas durante a ditadura de Francisco Franco por uma lei assinada em 1941 — que, cinco anos depois, acabou sendo derrubada, mas o costume estava definido e, até hoje, pouquíssimos cinemas exibem filmes legendados com som original por lá.

Outro exemplo parecido é a Alemanha, também com uma parcela de culpa para o autoritarismo, além do incentivo para a produção nacional.

Nisso tudo, o que chama a atenção é Portugal. A dublagem foi proibida em 1948, durante o governo do ditador Salazar. A ideia era, veja só, evitar que diálogos não fossem traduzidos ou traduzidos erroneamente, trazendo assim mensagens subversivas. Por muito tempo, apenas animações eram lançadas faladas em português, mas por meio das versões brasileiras. Só no começo dos anos 90 clássicos da Disney foram dublados em PT-PT, por exemplo.

Não à toa, Portugal é hoje uma das grandes exceções da Europa, preferindo filmes legendados. E a origem também está na imposição.

E o Brasil?

O nosso País tem uma histórico de leis, cotas e tudo mais, mas a dublagem tem muito mais relação com a TV do que com o cinema. A caneta estava lá, claro.

Ok, vai, a dublagem começou antes: A Branca de Neve e Os Sete Anões, da Disney, foi totalmente dublado localmente em 1938, mas foi um exemplo raro da espécie por muito tempo. O jogo começou a mudar nos anos 50, quando a Herbert Richers, que produzia filmes, teve que redublar totalmente o longa Sai de Baixo por conta da péssima captura das falas. Foi quando o próprio Richers percebeu que tinha dinheiro aí e se tornou o primeiro estúdio de dublagem no Brasil.

Junto com isso, a televisão brasileira ia descobrindo o VT e a possibilidade de exibir programas gravados, inclusive dos EUA – até então, a programação era quase que totalmente dominada pelo ao vivo. Só que imagina exibir um programa legendado naquelas telinhas dos anos 50, que também tinham uma qualidade de recepção horrível? Dublagem fazia tanto sentido que, em 1958, estreou a série Teatro Ford totalmente dublada na nossa língua, pela GravaSon.

Era o começo da dominação, que culminou com mais uma imposição: em 1963, o presidente João Goulart proibiu a exibição de programas em língua estrangeira na TV – decreto que só foi mudado, veja só, em 1990. Já era tarde: dublagem se tornou o padrão na televisão aberta brasileira.

Aliás, um detalhe: é esse mesmo decreto que dita até hoje o horário político no rádio e na TV.

Talvez você não se lembre, mas não era tão fácil assim encontrar filmes legendados fora dos grandes centros até meados dos anos 90. Já a TV paga começou no Brasil também dublada, um pouco por conta desse costume que vinha da TV aberta, mas também porque as programadoras recorriam aos sinais pan-regionais para toda a América Latina – e, por imposição tecnológica, era mais fácil ter áudio em português e espanhol do que dar “opção de legenda”. Era o caso de canais como Fox e Warner Channel, por exemplo.

Quando o Brasil passou a ter sinal próprio para seus canais pagos, as programadoras perceberam que trazer o áudio original com legendas fazia mais sentido para o público que tinham na época, e aí tivemos a explosão da legenda no Brasil.

O que aconteceu nos últimos anos foi justamente o movimento inverso: aquele público que, antes, só poderia ver filmes e séries pela TV aberta finalmente pode assinar um plano de TV a cabo, pagar um ingresso do cinema. As operadoras e as distribuidoras passaram, então, a seguir a parcela do público que se tornou a maioria.

E aí voltamos pra Narcos.

É importante deixar barreiras de lado, experimentar o áudio original (ou, no caso, a língua original daqueles personagens), como os americanos estão sendo provocados pela série, ou o dublado. Não podemos viver numa dicotomia de que as pessoas são obrigadas a gostar do áudio nacional ou do original. Não existem mais canetas e nem devem existir mais imposições, nada disso – um recado, inclusive, para canais, programadoras e distribuidoras que acreditam que podem ouvir apenas uma parcela de seus públicos, excluindo a outra.

Opção é sempre a melhor opção, claro. Mas talvez, o mais importante de tudo, seja o Mundo se acostumar com o próprio Mundo. Entender que há diferenças culturais que, muitas vezes, a gente nem consegue compreender mas que, na hora em que ouvimos um xingamento como “mal parido” proferido por um Brasileiro falando Espanhol, percebemos que tem coisas que só o outro pode sentir — e, portanto, dizer.

O que nos lembra todo o trabalho que um dublador tem (e precisa ter)... É uma discussão que vai longe.

E você precisa começar a entender, de uma vez por todas. ;D