Os X-Men nos anos 60 eram uma alegoria da luta dos direitos humanos dos negros – e, hoje, no cinema, será que ainda representam algo?
Anos 60. A luta contra o preconceito aos negros e pelos direitos humanos chegava ao seu auge nos EUA. Tal duelo tinha diversas facetas, mas podia ser dividido em dois grandes nomes: Martin Luther King, pastor estadunidense e líder do Movimento dos Direitos Humanos dos Negros; e Malcolm X, ministro islâmico que era negro. Um lutava pelos sonhos, pela oportunidade de ver brancos e negros juntos e pela paz. O outro acreditava que o mundo pertencia, originalmente, aos negros e que os brancos eram os malvados – e, assim, as duas etnias deveriam ser completamente divididas.
Nesse caldeirão de emoções, Stan Lee concebeu os X-Men. A ideia de criar seres mutantes superpoderosos surgiu simplesmente porque o quadrinista e editor da Marvel estava sem novas ideias para criar super-heróis. Mas, ao mesmo tempo, isso dava uma grande oportunidade: conceber uma raça nova, o homo superior, que poderia ser uma alegoria para àquele debate dos anos 60 sem precisar entrar nessa história de “cor de pele”. “Eu queria que eles fossem diversificados. Todo o princípio fundamental dos X-Men foi tentar ser uma história anti-preconceito para mostrar que há o bom em qualquer pessoa”, explicou Stan Lee em um evento no ano passado.
Assim, em X-Men #1 — publicado em setembro de 1963, éramos apresentados ao professor Charles Xavier, um cara que acreditava que mutantes e não-mutantes poderiam conviver juntos e os poderes dos primeiros poderiam ser usados em prol da humanidade (assim como Luther King, em um paralelo que seria criado nos anos 70 e 80 pelo roteirista Chris Claremont); e a Erik Lensherr, o Magneto, que afirmava que não havia mais chance de união, que os mutantes eram superiores aos demais (como Malcolm X, ainda no paralelo de Claremont). Em um plot twist interessante, eles ainda haviam sido amigos no passado – mostrando que, não importa o caminho que você escolha, lá no fundo a origem é a mesma.
Os anos foram passando. Realidade e ficção, como é normal, se desprenderam. Ainda assim, a questão mutante continuou como uma boa alegoria sobre o preconceito aos negros nos EUA.
Assim chegamos ao começo de 1981, quando a Marvel publicou Dias de um Futuro Esquecido, o réquiem da grande fase de Chris Claremont e John Byrne com os X-Men. Já falamos com mais detalhes sobre essa HQ no JUDÃO, mas... Há outros paralelos que gostaria de traçar aí – envolvendo até o novo filme.
Na HQ, somos apresentados a um futuro caótico (2013, o que, na época, era um futuro distante) no qual tudo deu errado. Os assassinatos de Charles Xavier, Moira MacTaggert e do senador Robert Kelly em 1980 levaram a um sentimento de ódio ainda maior aos mutantes. Uma lei dando poder aos Sentinelas foi aprovada e, quando a humanidade como um todo percebeu, eram os robôs que estavam no controle. Mutantes e não-mutantes passaram a ser caçados. Todos eram um só, mas na parte de baixo da pirâmide.
E aqui vai a referência que muita gente pode não ter notado: assim como Xavier e Kelly (então líder importante na questão mutante das HQs), Malcolm X e Luther King foram mortos. O primeiro em 1965, com um tiro antes de um discurso em Nova York. O segundo em 1968, também com um tiro, em um motel de Memphis, cidade na qual iria dar suporte a uma greve de trabalhadores negros em busca de melhores salários e condições de trabalho.
A HQ acabou se apoiando na própria história já vivida.
Mas, será que a ligação também pode ser feita com o novo filme? Bom, sem fazer spoiler algum – até porque isso é bem claro desde o primeiro trailer – Xavier não está morto no futuro de X-Men: Dias de um Futuro Esquecido da tela grande. Nem o Magneto. É fácil entender a escolha: Patrick Stewart e Ian McKellen, respectivamente o Professor X e o Magneto da trilogia original mutante, são atores importantes, de peso, com os quais o diretor Bryan Singer e a Fox queriam contar na produção.
A referência se perdeu, então? Diria que sim. Até por isso, quando questionado sobre o assunto em uma entrevista exclusiva para o JUDÃO comandada pelo Borbs, Patrick Stewart – um cara que já demonstrou empenho em causas civis – se mostrou surpreso com o paralelo Xavier-King+Magneto-Malcolm X.
Porém, como bem disse Chris Claremont certa vez, “os X-Men são odiados, temidos e desprezados coletivamente pela humanidade por nenhuma outra razão a não ser que eles são mutantes. Então o que temos aqui, intencional ou não, é uma HQ que é sobre o racismo, a intolerância e o preconceito”. Ouso dizer que o mesmo se aplica aos filmes: são sobre preconceito, seja isso claro (para o público, atores, o diretor e o estúdio) ou não.
No arco publicado em 1981, a morte de Xavier e do senador Kelly levava ao futuro caótico. Podemos dizer, então, que os EUA vivem o seu próprio “Dias de um Futuro Esquecido”, gerado pelas faltas de Luther King e Malcolm X? Não. Não podemos falar isso justamente ao olhar para a principal cadeira da Casa Branca e ver, lá, sentado um negro nascido no Havaí, com um pai vindo do Quênia e com avô islâmico.
Por outro lado, também não dá pra dizer que os EUA vivem a sociedade perfeita com a qual Martin Luther King sonhava. O país é dividido, como mostram os resultados das duas últimas eleições presidenciais. O preconceito é vivido por muitos todos os dias – e não só por negros, mas também por imigrantes, muçulmanos, gays, lésbicas, defensoras dos direitos das mulheres, coreanos, chineses, bolivianos, mexicanos, nordestinos...
Sim, nos anos 60 a grande questão era pelo direitos dos negros. Hoje, é pelo direto de todas as minorias – e isso, provavelmente, pode incluir você, caro leitor. Falemos, para ficar em um exemplo, do preconceito contra homossexuais. Os X-Men, nos quadrinhos, levantam a bandeira contra isso desde os anos 90, principalmente com o herói Estrela Polar – que, recentemente, casou com seu companheiro de longa data.
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Na vida real, o diretor Bryan Singer (que assina X-Men: Dias de um Futuro Esquecido) se viu acusado por promover festas com amigos e se relacionar com atores jovens, alguns já escalados em seus filmes. Veja bem: não vamos entrar no mérito se é uma atitude correta ou não, mas é bom que se diga que tais eventos e acontecimentos são comuns em Hollywood, independente da orientação sexual de quem está presente. Só que Singer se tornou vidraça justamente por nunca ter escondido (ou afirmado publicamente, já que ninguém precisa disso) que é homossexual.
“As pessoas sempre acharam que eu precisava ser curado para voltar a ser normal”, afirmou Ian McKellen, que também é abertamente homossexual, à época do lançamento do filme X-Men: O Confronto Final, que abordava uma certa cura para a mutação “Para mim, isso sempre foi muito ofensivo, tanto quanto ouvir alguém dizer que uma pessoa precisa ser curada pela cor de sua pele”. Na época, ele deixou claro que o tema dos X-Men lhe era muito precioso. “Tem uma importante mensagem mensagem para que os jovens aprendam a se aceitar” (algo que que, também, cai serve como paralelo inclusive pra realidade brasileira – e o Bolsonaro manda um beijo)
Outro exemplo: a causa feminista. Como bem lembrou Juca Kfouri em recente artigo na Folha de S.Paulo, John Lennon nos alertou há muito tempo: “a mulher é o negro do mundo [...]. Se você não acredita em mim, dê uma olhada naquela com a qual você está. Mulher é a escrava das escravas. Oh, sim, é melhor gritar sobre isso”.
Assim, muitos são perseguidos. Muitos são os “mutantes” da vida real. Sem poderes, sem serem os filhos do átomo, mas com características que rendem a eles olhares atravessados, frases ríspidas, menos oportunidades profissionais e de vida e, por fim, o desrespeito como pessoa.
Não que, um dia, vamos chegar ao universo criado por Claremont e Byrne na clássica HQ oitentista. Ou no filme que estamos vendo agora no cinema. Aquilo, claro, é uma ficção. Um exagero para transmitir uma ideia. Mas que fique a lição de que a humanidade lutar contra si mesma apenas coloca todos nós no papel de vítimas. Seja dos “Sentinelas”, seja dos líderes (sejam eles eleitos por você ou não), seja de uma ~maioria burra.
Será que nos livramos do futuro caótico, principalmente por ter evitado isso após a morte de dois importantes líderes de uma causa? Ninguém sabe. Como diz o Professor X dos quadrinhos, no final de Dias de um Futuro Esquecido: “só o tempo dirá”. Talvez seja isso que, por mais que a referência tenha se perdido, as pessoas devem pensar ao ver o novo filme dos X-Men.
Afinal, no fim disso tudo, não teremos um Wolverine ou uma Kitty Pryde para nos salvar de nós mesmos.