O que podemos aprender com Leaving Neverland | JUDAO.com.br

O documentário da HBO acendeu a ira dos fãs de Michael Jackson, que usam de vários argumentos para colocar as falas principais em dúvida. Mas há mesmo um padrão para vítimas de abuso sexual?

AVISO DE GATILHO: Esse texto contém descrições de assédio sexual e suas consequências emocionais.

Dança, voz, postura, disciplina, talento, trabalho duro, muita grana, muita fama, muita relevância, poder quase infinito. Um coquetel perfeito pra uma figura enorme que aprendeu o que era ser conhecido pelo mundo todo desde criancinha. Michael Jackson era uma dessas figuras inexplicáveis. Uma referência em quase tudo o que fez, inventor de boa parte das linguagens pop que usamos e consumimos. Ele moldou o gosto de incontáveis fãs dedicados que nunca deixaram de homenagear sua figura com tatuagens, roupas, cabelos, fã-clubes e toda o tipo de coisa que você possa imaginar.

Mas… e quando um ídolo absoluto desses tem sua conduta questionada?

No finalzinho de Janeiro de 2019, o documentário Leaving Neverland foi exibido no Festival de Sundance para um público seleto. Os jornalistas que saíram de lá descreveram um grande espanto na plateia. David Fear, da Rolling Stone, afirmou na época que “quando a sessão acabou, todos pareciam completamente chocados”. Ainda contou que, na saída, encontrou alguns manifestantes que estavam ali para afirmar a inocência do cantor, mas que era difícil demais concordar com eles naquele momento.

Leaving Neverland tem duração total de 4 horas. Exibido na HBO em dois episódios, ele conta principalmente com a fala de James Safechuck e Wade Robson, que resolveram descrever de maneira explícita e gráfica todas as vezes em que Michael Jackson os convenceu de que manter relações sexuais com ele era algo aceitável.

James conheceu Michael em uma gravação de um comercial da Pepsi. De acordo com o seu depoimento, o astro e ele se deram muito bem em pouquíssimo tempo, e sua família ficou bem, bem próxima dele. Viajavam juntos, um dormia na casa do outro e o cantor incentivava o novo amigo a fazer aulas de atuação para continuar nessa carreira. Esse ponto também liga Jackson com Wade: ganhador de um concurso de crianças que imitavam os trejeitos típicos de Michael, ele foi incorporado à turnê como uma atração final. Juntos, também viajaram o mundo, conversavam, passeavam… tudo com o consentimento dos pais de todos. Um vínculo perfeito de confiança e familiaridade.

Mas essa mesma familiaridade foi o álibi para que tudo acontecesse, segundo as vítimas. Os dois alegam que Michael naturalizava qualquer comportamento sexual dizendo que “aquilo era o que faziam duas pessoas que se amavam”. E o que haveria de errado em fazer isso se era sobre amor, não? Além disso, dizia que nunca poderiam descobrir porque “ninguém entenderia”. Mais tarde, inclusive, eles afirmam que Jackson dizia que ele e a criança iriam presos caso alguém soubesse de tudo.

Essas e MUITAS outras histórias criaram um efeito enorme na comunidade de fãs de Michael. Usando a hashtag #MJInnocent no Instagram – que já coleciona mais de 40 mil publicações sobre o assunto – e no Twitter, admiradores resolveram mostrar toda a sua indignação e certeza ABSOLUTA de que Wade e James são mentirosos.

Boa parte da argumentação desses defensores parte do fato de que durante os julgamentos de 1993 e 2005, Robson e Safechuck alegaram sob juramento que nada de inapropriado havia acontecido com eles. Além disso, o FBI, em sua investigação da vida do cantor, não encontrou nada suspeito. Um outro grande fator é a passagem de tempo: por que só agora? Por que contar sobre tudo de uma vez só de maneira tão gráfica após décadas de silêncio sobre o assunto – e até de elogios ao cantor?

Pra saber mais sobre o comportamento de pessoas que sofreram abusos sexuais, o JUDAO.com.br resolveu conversar com a psicóloga responsável pelo Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao Abuso Sexual (CEARAS) da Universidade de São Paulo, Gisele Gobbetti, e a estagiária Juliana de Clares.

“Quando duas pessoas têm um vínculo de confiança, fica bem difícil de fazer a denúncia”, conta Gisele. “Uma criança pequena que sente o toque de um adulto que ela confia não pensa, num primeiro momento, que possa haver algo de errado. Talvez ela até sinta prazer ali. Mas pode passar a perceber que algo está estranho uma vez que enxerga que isso não acontece com outras pessoas ou quando o adulto pede segredo”. Mas nem isso é garantia completa de denúncia: “É comum que a criança se sinta culpada duplamente, fazendo algo que é errado e que ela gosta. Então... não fala”. Ou seja: é perfeitamente plausível a ideia de que os rapazes tenham mentido por anos para acobertar seu ídolo. A pressão e a culpa exercem papéis importantes nessa situação.

A demora da denúncia, então, torna-se algo extremamente comum. E há um agravante nesse caso: a masculinidade tóxica. “Geralmente, abusos de meninos são muito menos denunciados. Existe um preconceito em relação à figura social do homem: se ele é abusado por outro homem, é rotulado como homossexual, independentemente de sua idade, e isso dificulta muito as coisas. Se o abuso parte de uma mulher e ele denuncia, também é visto dessa maneira, já que nossa sociedade incentiva que ele tope qualquer relação com uma mulher”, afirma Gisele. “Já é difícil de denunciar porque é difícil de reconhecer. Nesse caso, então, fica um pouco pior. Não posso dizer se as denúncias são reais, mas não há nada de incomum nessa demora”, pontua.

A idealização de grandes figuras midiáticas ajuda muito a colocar as vítimas em posição de dúvida. A imagem de perfeição criada gruda na nossa cabeça e cria mais barreiras ainda para lidar com algo que já é tão, tão difícil de encarar. “É muito mais fácil aceitar que o perigo esteja lá fora, com um grande estranho, mesmo que a maioria dos casos de abuso aconteça dentro de casa com pessoas conhecidas”, pontua a coordenadora. Juliana completa: “Quando uma grande verdade ruim sobre uma pessoa idealizada aparece, é preciso desconstruir aquela imagem agradável e boa. E isso é difícil, frustrante.”

As duas frisam: reconhecer o abuso é muito complicado, especialmente porque nem toda situação envolve algo forçado e imposto. A criança pode sim consentir achando que aquilo é algo normal. E aí temos mais culpa ainda, já que admitir que houve algum tipo de prazer é absolutamente difícil e, dentro de uma sociedade que propaga que APENAS um estranho pode fazer algo assim, pode até ser algo que “depõe contra”. As memórias e as falas de quem criou aquela situação podem fazer com que, inclusive, a vítima pense: “Será que eu não gostava? Será que eu não provocava também? Então… não vou denunciar”. “Mas não é porque a criança permite que não seja abuso sim”, conta Gisele.

Por isso, é preciso retirar o tabu de cima da sexualidade. E a educação sexual é uma aliada: “Conversar sobre isso, dentro da compreensão de cada faixa etária, é importante sim.”, diz Gisele. Mas isso não vale só para crianças e adolescentes: pessoas crescidas têm grandes dificuldades em conversar sobre o assunto. E a sociedade também precisa dar ferramentas para que adultos identifiquem e não neguem esses eventos. “É preciso capacitar famílias e escolas para reconhecer, ouvir esse tipo de queixa e encaminhar corretamente essas situações”, explica. “Adultos não querem ouvir isso. Negam porque é muito difícil e não sabem lidar. É muito mais fácil, então, assumir que o perigo está lá fora, com um desconhecido, do que pensar que pode vir de alguém do seu convívio.”

A nossa dificuldade de lidar com a dualidade dos indivíduos se mostra, também, na já conhecida “cultura do cancelamento”. A imediata rejeição às contribuições positivas daquele indivíduo também vem da nossa incapacidade de compreender que alguém pode ser bom e ruim. Um gênio musical, grande roteirista, compositor talentoso… mas, também, com um perfil abusivo. É claro, não há fórmula correta de como lidar com isso. Depende do caso e é bem pessoal. Mas, para elas, não é exatamente saudável matar por completo as influências positivas daquele indivíduo para a sociedade.

Wade Robson, o diretor do filme Dan Reed, e James Safechuck

Duvidar do acusado ainda é difícil por uma série de barreiras. Mas Leaving Neverland jogou um holofote em uma característica muito feia da nossa sociedade: a culpabilização da vítima e a negação ABSOLUTA de que alguém idealizado tenha tomado atitudes típicas de “um monstro”.

É preciso falar. Conversar sobre limites, consentimento, discernimento. Sobre causas, consequências. Tirar o véu da sexualidade e capacitar a SOCIEDADE para conseguir enxergar a vítima como alguém que tem algo a dizer – e não que “só quer atenção”.

Caso você conheça alguma situação assim, precise de ajuda para tratar sobre esse tipo de abuso – ou qualquer outro problema que tenha, não hesite em procurar ajuda. Aqui temos alguns contatos que podem te ajudar:

    CEARAS – Centro de Estudos e Atendimento Relativos ao Abuso Sexual
    (atendimento exclusivo para casos de incesto com denúncia)
    (11) 3061- 8429

    Disque 100 – número ativo 24 horas por dia, 7 dias por semana, voltado para a denúncia anônima de maus tratos de crianças e adolescentes, com foco em violência sexual. Atende todo o território nacional.

O site Psicologia Acessível também possui uma lista atualizada de locais pelo Brasil com atendimento psicológico gratuito. Clique AQUI para saber mais.