O salto do Nightwish rumo à evolução | JUDAO.com.br

Banda mantém o crescimento musical no ótimo Endless Forms Most Beautiful, se recupera de mais uma troca de vocalista e ainda toma uma decisão ousada, corajosa…e perigosa

O ano era 2004.

A banda finlandesa Nightwish lançava Once, um de seus álbuns mais bem-sucedidos comercialmente.

Primeiro lugar nas paradas não apenas na Finlândia, mas também na Alemanha, Grécia, Noruega... Primeira vez que o grupo conseguiu adentrar as paradas da Inglaterra e dos Estados Unidos – que geralmente é bastante fechado para este tipo de metal mais melódico, sinfônico, preferindo uma pegada mais agressiva a la Pantera. Primeira vez que o quinteto ganhava um Disco de Ouro aqui no Brasil, vendendo mais de 30 mil cópias e garantindo o clipe de Nemo entre os mais pedidos da MTV tupiniquim durante muitas e muitas semanas, com uma turnê de ingressos esgotados e tudo mais.

Era o Nightwish se preparando para conquistar o mundo. Abrindo portas rumo ao mainstream que poucas bandas de rock mais pesado conseguem, na verdade.

O lance é que muita coisa mudou de lá pra cá, sabe? A cultuada vocalista operística Tarja Turunen saiu (ou foi saída?) da formação logo depois deste disco. Mas eles se mantiveram em alta mesmo assim, trazendo a voz mais pop de Anette Olzon e lançando o bom Dark Passion Play e, na sequência, o excelente Imaginaerum, que até virou filme produzido pelo grupo, coisa e tal.

Era o Nightwish em sua forma musical mais refinada, soando como uma trilha sonora épica e potente saída diretamente de um filme do Tim Burton ou de um gibi do Neil Gaiman, que os manteve em plena ascensão dentro do mercado norte-americano. Mesmo sem Tarja, o mundo ainda seria deles. Ou poderia ser, pelo menos.

Só que aí veio outra treta. Anette saiu (ou foi saída?) e, para o seu lugar, acabou convocada a experiente Floor Jansen (After Forever/ReVamp). Pensam que o tecladista Tuomas Holopainen, líder e principal compositor da gangue, se acomodou? Nada disso. O recém-lançado Endless Forms Most Beautiful é tão lindo, inteligente e bem produzido quanto Imaginaerum, funcionando como uma espécie de continuação natural.

Floor Jansen

Floor Jansen

Você pode imaginar, portanto, que as coisas da “ascensão dentro do mercado norte-americano” ou “o mundo ainda seria deles” continuam rigorosamente iguais, já que Endless Forms... se revelou um disco tão forte quanto o anterior? Ledo engano. Comercialmente, em especial nos mercados fora da Europa, o novo álbum é uma espécie de passo atrás de seu antecessor. E Tuomas, ah, este cara parece nem estar ligando pra isso.

O motivo? O tema do disco. No caso, a Teoria da Evolução. E, principalmente, pela participação ativa de Richard Dawkins, controverso biólogo e defensor público do ateísmo. Sacou o problema? Temos uma banda declaradamente a favor da ciência e dizendo “Deus não existe”.

Veja, não são raros os casos de roqueiros que se declaram ateus, de David Bowie a David Gilmour, passando pelo célebre – e, por vezes, bastante controverso – caso de John Lennon. Da mesma forma, é óbvio que o heavy metal também é pródigo em bandas que atacam as religiões organizadas e a própria figura de Deus. Basta lembrar do infame Círculo Interno do black metal norueguês, formado por nomes como Mayhem, Burzum e Emperor, responsável pelo incêndio criminoso de dezenas de igrejas históricas no começo da década de 1990.

Só que é importante separar as coisas aqui. É muitíssimo diferente ver o Behemoth, que tem um som áspero, espinhoso, dolorido, sombrio, difícil, celebrando Satã em suas letras – e um grupo como o Nightwish, que conquistou o mesmo público adolescente que, à época, era apaixonado pelo Evanescence de Amy Lee, dizendo que a humanidade não surgiu a partir da conjunção de Adão e Eva. E com seus integrantes vindo à público para se declarar “abertamente seculares“, uma forma de dizer que são ateus e/ou agnósticos e sem filiação ou concordância com qualquer que seja a religião. Daquele mesmo tipo que o Datena disse que seria responsável por atos criminosos justamente pela “falta de Deus no coração“, saca?

Tuomas, um nerd declarado, fanático por RPG, escrevia músicas baseadas em fantasia, em mitologia, mergulhado nos conceitos de Tolkien e demais autores clássicos deste gênero específico de literatura. Do nada, ele esfrega na cara de uma grande base de fãs cristãos um álbum conceitual sobre a teoria da evolução. Foi um passo arriscado, vamos combinar?

Pois vejam só isso. Assim que o Facebook oficial do Nightwish anunciou a parceria com Dawkins, explodiram comentários enfurecidos de sua base de fãs. “Vocês se venderam para Satanás, não vou comprar o novo CD”, afirmou um. “Vocês se renderam ao lado sombrio com esta evolução vazia. Não acredito que todos vocês viraram as costas para o que é puro, estou desapontado”, disse outro.

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Dawkins e Tuomas – reparem na camiseta dele! :)

Teve gente dizendo que jogou os CDs da banda no lixo, outros contando que fizeram questão de queimá-los – e até aqueles que afirmaram ter devolvido os ingressos já comprados para a turnê americana e pedido o dinheiro de volta. Lembra que eu falei da penetração que a banda tinha ganhado em território norte-americano? Justamente um país bastante conservador no que diz respeito a aspectos religiosos? Yep.

“Somos uma banda de rock”, afirmou o músico, bem-humorado, em entrevista ao jornal The Australian. “Se falamos de drogas ou álcool e ninguém se importa, mas trazemos um biólogo evolucionista e fica todo mundo com medo?”.

O disco inteiro, na real, tem esta inspiração – a começar pelo título, Endless Forms Most Beautiful, que saiu de uma frase do naturalista Charles Darwin no clássico A Origem das Espécies. “Há uma grandeza nesta visão da vida, com seus muitos poderes, tendo sido originalmente soprada em algumas formas ou em apenas uma; e que, enquanto este planeta tem seguido seu ciclo de acordo com a lei fixa da gravidade, ela evoluiu e tem evoluído de coisas tão simples no começo a formas infinitas e cada vez mais bonitas”.

Dawkins, obviamente (?), não canta. Na real, ele participa como narrador em duas canções: Shudder Before The Beautiful e naquela que encerra a obra, batizada de The Greatest Show On Earth (não por acaso, o mesmo nome de O Maior Espetáculo da Terra, outro livro do autor).

Esta última faixa é um verdadeiro épico, uma obra prima de ares cinematográficos que conta com a participação da London Symphony Orchestra e que funciona por conta própria – sim, sozinha, ela já valeria a audição. É uma música de longos 24 minutos, uma verdadeira suíte que vai do suave ao mais pesado, dividida em cinco partes e que traça 4,6 milhões de anos de evolução, da formação do universo e dos planetas, seguindo pelo surgimento das bactérias, plantas, animais e o nascimento da humanidade... finalizando, é claro, com a extinção dos seres humanos.

A participação do escritor acontece narrando trechos de seu livro Desvendando o Arco-íris (1998) – que se debruça sobre a relação entre a ciência e a arte sob o ponto de vista de um cientista, do tipo que enxerga beleza e excitação nas constatações que faz. O ponto de partida é a frase de John Keats, ao afirmar que Isaac Newton destruiu a beleza do arco-íris ao explicar como ele acontece.

“Nós vamos morrer – e isso nos torna os sortudos”, começa Dawkins. “Muitas pessoas não vão morrer porque nunca vão nascer. As pessoas em potencial que poderiam estar aqui no meu lugar mas de fato nunca verão a luz do dia ultrapassam a quantidade de grãos de areia do deserto do Saara. Certamente estes fantasmas nunca nascidos incluiriam poetas maiores do que Keats, cientistas maiores do que Newton”.Nightwish_02

Lá na frente, ele carimba: “Depois de dormir durante centenas de milhares de séculos, nós finalmente abrimos nossos olhos”. E completa: “Não é uma forma nobre e evoluída de gastar o nosso tempo tão breve sob este sol, trabalhando na compressão do universo e de como nós viemos parar aqui?”. E então Floor canta, em tom clássico: “Os éons passam, escrevendo a história de todos nós... uma nova abertura diária para o maior show da Terra”.

Ou seja: por mais que fale, em um dado momento, sobre o fim da humanidade, The Greatest Show On Earth é uma canção com uma mensagem positiva, afinal. Sobre como somos parte de algo bem maior, de um processo que vai continuar mesmo quando não estivermos mais aqui.

Faz a gente pensar, não?

“Eu descobri Dawkins há cerca de três ou quatro anos”, revela Tuomas em um papo com a revista Metal Hammer. “Eu comprei o livro A Grande História da Evolução (2004) em um aeroporto e fui instantaneamente tragado. (…) Descobrir que a evolução tinha tanta espiritualidade e beleza foi maravilhoso e pensei que tínhamos que incluir alguns destes temas no disco”. O música revela que, há cerca de um ano, escreveu uma carta pra Dawkins, de punho próprio – e recebeu de volta um e-mail dele, duas semanas depois. “Ele dizia que nunca tinha ouvido falar do Nightwish mas que tinha gostado do que conseguiu escutar na internet”.

Para Tuomas, entender a evolução, o seu ponto central, é uma experiência espiritual e engrandecedora. “O fato de que somos todos um porque dividimos um mesmo ancestral é uma revelação e tanto”. Quando questionado, pelo jornal inglês The Times, se a ciência poderia ser uma experiência espiritual, Dawkins surpreendeu por deixar o lado sempre racional de lado e respondeu, entusiasmado. “Sim. Deveria ser, pelo menos”.

É importante que se faça aqui uma ressalva ou duas, contudo.

A parceria entre Dawkins e Tuomas carrega também uma dose de polêmica que vai além do aspecto religioso. Parte dos fãs de uma banda que há anos vem falando de maneira tão intensa com uma base de seguidores fortemente feminina reclama também do lado “misógino” de Dawkins. O cientista já disse coisas como “seria imoral não abortar caso a mulher saiba que a criança terá Síndrome de Down” (o que o fez publicar um texto se explicando e se desculpando logo depois) e teve que encarar uma onda de críticas com sua equivocada lição de lógica no Twitter ao usar diferentes níveis de estupro e pedofilia como exemplos bizarros.

Além disso, Dawkins vem sendo fortemente questionado por seus comentários pouco respeitosos sobre a religião islâmica – por mais que não possa ser considerado exatamente educado quando fala sobre os cristãos também. Da mesma forma, todavia, este que vos escreve teve a chance de apurar junto a pessoas próximas da produção da banda, nas últimas passagens do Nightwish pelo país, que Tuomas é mesmo um sujeito tão difícil de lidar quanto contam as lendas. Tão egocêntrico, centralizador e cabeça-dura quanto um Dave Mustaine da vida, por exemplo. E sim, com problemas em trabalhar ao lado de mulheres – o que explicaria as separações ríspidas e pouco amigáveis de Tarja e Anette.

Mesmo com estas ressalvas mais do que justas, no entanto, o grande ponto aqui é mesmo a evolução do Nightwish enquanto banda. Não apenas a evolução enquanto tema principal do disco. Mas a evolução sonora, o seu amadurecimento para construir uma assinatura que vai transformando estes caras cada vez mais em uma banda única (e não era atrás disso que todo artista deveria correr, afinal?). E uma coragem para deixar de falar de sonhos góticos com dragões e passar a questionar a teoria criacionista assim, tão diretamente.

A evolução que faz ainda com que Floor Jansen seja vista (e ouvida) como a escolha mais acertada para os vocais do grupo, por sua versatilidade, por conseguir soar doce e suave como Anette, forte e poderosa como Tarja e ainda agressiva como ela mesma nos momentos que precisa. Tão versátil, tão teatral e tão interpretativa quanto a própria banda, cada vez mais cinematográfica. Talvez a vocalista com mais personalidade que já passou pelo grupo.

Evolução e amadurecimento. Sem medo do que isso possa significar nas vendas de seus álbuns em determinados territórios.

Creio que é um bom primeiro passo: semear o questionamento. Vamos acompanhar os próximos.