Apesar dos elogios à série do Netflix, quadrinista inclusive compara atitude a pendurar a famigerada bandeira confederada dos EUA em um prédio do governo…
Então, saiu o trailer, e agora tá todo mundo ~oficialmente no hype, como costuma acontecer frequentemente no caso das séries do Netflix, pela chegada da segunda temporada da série do Justiceiro. Enquanto muita gente só discute se pouco depois da estreia, tal qual aconteceu com as Luke Cage, Punho de Ferro e Demolidor, ela vai ser outra vítima do facão do cancelamento, a gente queria MESMO levantar outro ponto aqui, que é essencialmente o fato de que o Frank Castle não é um super-herói. Aliás, ele não é nem mesmo um “herói”, pelo menos dentro do sentido mais amplo e difundido da expressão. Nem na série, nem em nenhum dos seus muitos filmes, nem nos gibis. Ele é um psicopata, um homem amargurado, alguém que carrega a guerra dentro de si, assombrado por seus próprios demônios. Tá claro? Pois é, é bom que esteja.
Se não ficou, o criador do Justiceiro, Gerry Conway, te explica melhor: “ele foi originalmente concebido, no gibi The Amazing Spider-Man #129 (fevereiro de 1974) como um criminoso”, diz o roteirista, em entrevista pro SyFy Wire. “A ideia não era que ele fosse um anti-herói. Mas conforme estava escrevendo a primeira história, percebi que era isso que ele era, um anti-herói. Ele tem um código moral que eu poderia usar para resolver determinados pontos da história”.
Ah, não é como se as séries do Punho de Ferro e Luke Cage fossem fazer TANTA falta assim, vai...[/LeiaMias]
Conway lembra que aqueles eram tempos mais simples, anos 70, um cenário dicotômico no qual as histórias não se aprofundavam psicologicamente nos personagens. “Hoje em dia, com tudo que sabemos sobre PTSD (Post-Traumatic Stress Disorder ou Transtorno de Estresse Pós-Traumático), com tudo que entendemos sobre como os soldados são afetados pelas guerras multigeracionais em lugares como o Afeganistão, um personagem como o Justiceiro pode falar sobre algo que é importante abordar para nós enquanto roteiristas e desenhistas”.
Fato: pra quem acompanha a cronologia atual da Marvel, este tema é bastante recorrente em boa parte dos retratos de Frank Castle nos quadrinhos. O vigilante da camisa de caveira vive praticamente isolado do restante da comunidade heroica, em histórias que são quase como um mundo à parte. Não tem amigos e é enxergado como uma força da natureza de quem se deve desconfiar e ter medo. Lida com a dor, com a falta de esperança, enquanto julga boa parte de seus pares como “fracos”, por não fazerem o que seria “necessário”. Dos veteranos, ele só respeita mesmo o Capitão América, um soldado como ele, mas que ao mesmo tempo é lembrança de tempos mais puros e mais inocentes.
Justamente por isso, aliás, é que Conway faz questão de destacar que acha perturbador toda vez que vê figuras de autoridade abraçando a iconografia do Justiceiro, justamente porque o camarada é a representação do fracasso do sistema judiciário. “Ele deveria supostamente indicar o colapso da autoridade moral e a realidade nua e crua de que algumas pessoas não podem confiar que instituições como a polícia e o exército agem de maneira justa e capaz”.
Na opinião de Gerry Conway, quando policiais colocam a caveira do Justiceiro em seus carros ou quando militares usam o seu símbolo, estão basicamente lado a lado com o inimigo. “Eles estão abraçando a mentalidade de um fora da lei. Não importa que você ache que o comportamento dele tem ou não justificativa, não importa se você admira seu código de ética. Ele é um criminoso. E policiais não deveriam abraçar um criminoso como seu símbolo”. E ele ainda complementa: “Se um homem da lei, representando o nosso departamento de Justiça, o sistema, coloca o símbolo de um criminoso em seu carro, ele está dando uma declaração sobre o seu entendimento do que é a lei para ele”.
O autor — que trabalhou, ao longo de seus 50 anos de carreira, com todos os principais personagens tanto da Marvel quanto da DC, sendo principalmente responsável pela icônica história da morte da Gwen Stacy — ainda faz uma comparação que, num certo ponto, pode parecer exagerada... mas tem muita razão de ser. “De certa forma, isso chega a ser tão ofensivo quanto colocar uma bandeira dos Confederados num prédio governamental”.
É bom lembrar que a bandeira a qual ele se refere, usada em batalha pelos Estados Confederados durante a Guerra Civil Americana, é entendida por alguns apenas como uma herança dos estados do sul dos EUA; mas, pra quem estudou o mínimo de história nesta vida, estamos falando de um ícone carregado de imagens de racismo e opressão. Poderia ser APENAS um símbolo. Mas é PRINCIPALMENTE um símbolo. E símbolos sempre têm muito significado pra quem sabe bem entendê-los além do óbvio.
Veja bem: a violência está lá, na série, nos gibis, como catarse emocional, como recurso estético. A grande treta, conforme o Mary Sue bem pontua em sua análise sobre o assunto, é quando alguém vai e tira isso do contexto, do Rambo ao Justiceiro, passando pelo Capitão Nascimento até, transformando-os em ícones de poder, de macheza, de masculinidade.
Justamente aí é que o criador acredita que a série do Netflix, brilhante, assustadora e perturbadora, talvez uma das coisas mais maduras que a Marvel já fez além dos quadrinhos, acertou com a sua criatura. Gerry Conway nem chegou a se envolver com a produção, tendo no máximo batido um papo com o showrunner Steve Lightfoot. Mas deixa claro que adorou o que eles fizeram. “Eles abraçaram a insanidade e a violência de Frank, mas também revelaram a profundidade da dor e da angústia que ele passou. Eles fizeram dele uma figura heroica e destroçada, alguém que você não gostaria que seus filhos imitassem, mas que você pode compreender. Era uma linha fina pra se caminhar e eles fizeram isso bem”.
Concordo. A merda é que nem todo mundo entendeu isso. Tanto lá quanto cá.