Buffy, a Caça-Vampiros, que estreou em 10 de Março de 1997, ajudou a mudar muita coisa para a TV, Joss Whedon e, claro, para as garotas
Hoje em dia existem pesquisas, dados e informações exatas sobre o público. Sim, Netflix sabe exatamente quando você passou a gostar de uma série e qual foi a cena que te fez desistir dela. Mas, na vida real, “aqui do lado de fora”, números e porcentagens não se aplicam. O que existem são histórias. A minha eu não sei exatamente quando começa. Foi em algum dia durante a tarde, procurando alguma coisa para assistir na TV. Foi quando eu cruzei com um episódio de Buffy, a Caça-Vampiros.
Era 1998. Quer dizer, eu acho que era 1998, ao menos minha memória diz que eu morava em apartamento do qual eu me mudei durante a Copa do Mundo da França. Pouco importa: eu assisti a alguns episódios e, sem entender muito bem o que estava acontecendo, me senti fisgado pela série. Quando começou o terceiro ano de Buffy, pela primeira vez em toda minha vida, estava me ligando nessa história de fall season, temporadas, hiatos e afins.
No começo dos anos 1990, ninguém acreditava que Buffy seria esse fenômeno. A personagem havia saído da cabeça de Joss Whedon, um roteirista mais conhecido como “script doctor”, responsável por ajudar a melhorar histórias que não estavam lá muito bem. A ideia dele era pegar uma cheerleader aparentemente frágil e colocá-la como heroína de ação, subvertendo os conceitos do horror e da porradaria em geral. A ideia então acabou vendida para a produtora Sandollar, que pegou o roteiro de Whedon e transformou no filme Buffy, a Caça-Vampiros, lançado em 1992 e que se tornou um clássico da Sessão da Tarde anos depois.
Por algum motivo que só analisando a cabeça dos engravatados de Hollywood para entender, a essência daquela história se perdeu. O diretor escolhido, Fran Rubel Kuzui, via Buffy como “uma comédia de cultura pop sobre o que as pessoas pensam sobre vampiros”, enquanto o criador afirma que “eu escrevi um filme assustador sobre mulheres empoderadas, e eles transformaram aquilo em uma comédia ampla”. De forma parecida, a atriz Sarah Michelle Gellar, a Buffy em pessoa, definiu a personagem num post comemorativo no Instagram: “ela é um desafio feminista à hierarquia de gênero”.
Whedon, como você deve imaginar, não desistiu da ideia. Com a reputação ganha em Hollywood após ter co-escrito Toy Story (sim), Whedon resolveu que era hora de dar mais uma chance para a personagem. Fundou a Mutant Enemy, uma produtora onde teria maior controle criativo, inclusive dirigindo episódios e montando uma equipe de redatores. Bancou do próprio bolso um piloto de apenas 25mins pra enviar a canais interessados e acabou convencendo a Fox a acreditar na série.
Apesar de curto, este primeiro piloto condensava muito do que Whedon queria. Primeiro: ele ignoraria o filme de 1992, mas sem contar aquela mesma história – começando imediatamente depois dos eventos dela, com a protagonista mudando para a pequena cidade de Sunnydale. Segundo: a produção abraçaria a ideia de “high school is hell” — tem vampiros, demônios e a porra toda, mas o inferno mesmo é enfrentar o colegial. Terceiro, e último ponto: estariam subvertidos todos os conceitos normais de Hollywood, começando pela cena de abertura (que, depois, seria reaproveitada no piloto final), na qual um veterano leva a inocente menina para uma sala do colégio durante a noite... só pra ele ser morto por ela.
Aquele vídeo caiu nas mãos dos executivos do The WB, uma rede novata do grupo Time Warner. Eles gostaram da história, encomendaram um piloto de uma hora com maior orçamento e o resultado agradou ainda mais. Buffy, a Caça-Vampiros entrou na programação da emissora em 10 de Março de 1997 como uma substituição de meio de temporada para Savannah.
A crítica odiou. “Patricinhas de Beverly Hills encontra Drácula, com ênfase na angustia juvenil do segundo grau com perigos de vampiros e profecias apocalíticas”, disse o Hollywood Reporter. “Ninguém deve levar a sério esse exercício de acompanhamento, embora a violência possa ser decididamente assustadora”, relatou o New York Times. Ainda assim, um ou outro elogiou surgiu, como o LA Times definindo a série como um “delicioso gore satírico” e a People dando uma nota “B+”.
O público adorou. Não que não tivesse existido séries protagonizadas por mulheres antes, mas era diferente. Mulher-Maravilha e A Mulher Biônica eram de outra geração, e a Xena, além de ter outra pegada, era para syndication, não tinha uma “emissora própria”, por assim dizer. A Caça-Vampiros era atual, com diálogos ligeiros, dilemas que impactavam diretamente quem tinha a mesma idade dos protagonistas. Mais do que isso: o elenco era excelente, com uma ótima química que acabaria resultando no apelido de “Scooby’s Gang” para o grupo principal.
Ironicamente, Sarah Michelle Gellar acabou interpretando a Daphne nos filmes live action do Scooby Doo. ;)
“Com Buffy, eu obviamente queria fazer uma série feminista, mas eu não era muito interessado em falar sobre política. Eu queria ver algo que eu sentia que precisava ver. Eu sentia que as garotas não eram representadas. Eu queria ver as mulheres tomando o controle e os homens realmente confortáveis com isso. Essa era a minha coisa”, disse Whedon em recente entrevista ao THR.
Se você olhar bem pros personagens que ele criou, verá isso. Buffy, Willow e Cordelia (e, mais tarde, Faith) são o melhor exemplo. Já Giles, o bibliotecário e sentinela responsável por treinar a caçadora, era uma figura paterna com a função de mentor, e não de defender Buffy. Xander era o loser da turma, enquanto Angel funcionava mais como o herói tradicional, só que com todo o sofrimento dos erros que havia cometido no passado e que sempre levava um “chega pra lá” quando se metia a proteger a amada Buffy.
Assim, a Caça-Vampiros se tornou aquele fenômeno de “segunda TV”, como era chamado na época: não era uma audiência que desafiava as grandes, mas era sempre o programa assistido em seu horário no quarto dos adolescentes. Decididamente ajudou o WB a se consolidar naqueles tempos.
A primeira temporada foi curta, apenas 12 episódios, mas outras inovações aconteceram naquele primeiro semestre de 1997. A principal delas foi na própria estrutura dos episódios, formando um grande e único arco, que tinha um vilão recorrente como “Big Bad” – no caso, o Mestre. O termo, aliás, foi cunhado no episódio Bewitched, Bothered and Bewildered, já da segunda temporada.
Em sete anos, com algumas variações, aquela fórmula seria usada. Até mais do que isso: o “Big Bad” acabaria se tornando quase que um padrão não escrito em séries do gênero na TV dos EUA, sendo usado em produções como Smallville, Arrow, The Flash e por aí vai.
Pra mim, a segunda temporada é o ponto alto. É quando Whedon e os roteiristas vão mais longe no conceito de “high school is hell”, com episódios como School Hard (a primeira aparição dos vilões Spike e Drussilla) e Lie to Me. Mas o grande ponto de virada viria na segunda parte desse segundo ano.
Em Surprise, após uma série de acontecimentos, Buffy transa pela primeira vez com Angel, o vampiro-com-alma-e-bonzinho com quem ela está enrolada desde a primeira temporada. O vampiro encontra a felicidade extrema e, em meio a raios e uma tempestade, alcança a condição para acabar com a maldição cigana que o condenava há décadas. A alma, que o atormentava pelo que havia feito enquanto era um vampiro maligno, foi embora.
A continuação, que foi ao ar no dia seguinte (!), é Innocence. A partir dali, Angel se transforma, literalmente, em um vampiro desalmado, maligno. A primeira reação dele é destratar totalmente a Buffy e, depois, se vingar da caçadora por tê-lo feito sentir o que era amor de verdade — uma grande alegoria sobre abuso.
Eventualmente, Buffy derrotou Angel e o mandou para o inferno. Ele voltou, com uma alma novamente e, depois do final da terceira temporada, foi estrear o próprio spin-off. As temporadas da série original também foram se passando, com seus altos e baixos, mas continuando a produzir outros grandes episódios.
Três merecem destaques especiais. O primeiro deles é The Zeppo, da terceira temporada, totalmente estrelado pelo Xander – que se sente deslocado em relação ao resto do grupo e sai por aí, curtindo a vida (e se dando mal) sozinho. Isso enquanto os amigos são obrigados a parar um grande apocalipse, mostrado apenas em segundo plano. O episódio teve um impacto muito forte na cultura pop, servindo de inspiração até para Doctor Who e Star Trek.
O segundo é The Body, da quinta temporada. Ao final do episódio anterior, Buffy havia encontrado a mãe, Joyce, morta no sofá após sofrer um aneurisma. O que se vê a seguir são cenas diretas, duras, mostrando o quanto a caçadora se sente pequena perante a morte. A direção de Joss Whedon também é pesada, não tendo pudor de mostrar o corpo de Joyce morto, inerte, por diversas vezes durante o episódio. Não há qualquer trilha sonora durante os 44 minutos de duração, deixando toda a coisa ainda mais crua.
Já o terceiro destaque é, obviamente, Once More, With Feeling, da sexta temporada. Joss Whedon meio que largou a mão do resto da série, o que não pareceu ser uma decisão tão inteligente após Buffy ter sido cancelada pelo The WB e migrado para o canal UPN, da Paramount, mas ele realizou um sonho: produzir um episódio musical.
Joss ficou escrevendo as musicas durante meses e o tempo de produção foi o dobro do habitual, com os atores gravando em estúdio as canções e, depois, gravando as cenas. Mas o resultado foi uma história incrível, com um demônio fazendo com que toda a cidade de Sunnydale passasse a cantar coisas do cotidiano. Foi ali, de alguma forma, que comecei a gostar de musicais.
Com o uso de grandes arcos e personagens com diversas camadas, nenhum dos protagonistas terminou os 144 episódios da série nem perto de onde começaram a sua trajetória. Buffy, claro, teve suas idas e vindas, mas quem representa melhor isso é a Willow. Alyson Hannigan levou a personagem de inocente menina do colégio apaixonada pelo Xander a uma bruxa poderosíssima, resolvida com a sua sexualidade, que se transforma numa das piores vilãs da série ao ver a amada Tara morta por uma arma de fogo.
Tudo isso começou com apenas um episódio num canal pequeno de TV no dia 10 de Março de 1997, vinte anos atrás. Mas, certamente, está longe de terminar. Não porque Buffy continua nos gibis – está na 11ª temporada, fora o universo expandido – ou está disponível no Netflix. É mais do que isso: ela representa um ponto de virada na ficção da televisão, influenciando muita gente e mostrando que sim, as garotas podem.