Com uma mistura única de punk rock e heavy metal, GWAR é o projeto conjunto de um coletivo de artistas dispostos a abusar de litros de sangue falso em pleno palco
“No passado, existia um grupo de elite de guerreiros do caos que rasgou a galáxia com um ódio sem fim por todas as coisas vivas. Eles eram chamados de Escória do Universo e cresceram tornando-se a maior arma do arsenal de seu grande Mestre cósmico. Mas estes lutadores se tornaram muito poderosos e muito desafiadores – e, por seus crimes, foram banidos para o planeta mais insignificante do cosmos, a bola de lama fervente conhecida como Terra. Milhões de anos se passaram e eles adormeceram, até que a poluição arrancou estas criaturas de seu coma. Agora, eles dominam a Terra como deuses entre os mortais, dedicados a um único objetivo: a destruição da raça humana. Armados com espadas e guitarras, sua campanha de trinta décadas os levou a campos de batalha e palcos em todas as partes do mundo. E sua jornada continua, esmagando corpos e deformando almas para saciar sua monstruosa sede de batalha”.
A pomposa descrição acima poderia ser usada como sinopse para qualquer filmeco B, mas serve de introdução para a história dos personagens da banda GWAR, uma verdadeira instituição da música pesada americana, que existe desde 1984 e já lançou mais de uma dezena de álbuns de estúdio, além de derivar seu conceito grotesco para cards colecionáveis, bonequinhos, jogos de tabuleiro e mais uma caralhada de produtos licenciados. Com roupas monstruosas feitas de látex e uma mitologia meio ficção científica, meio terror, eles encarnam guerreiros bárbaros interplanetários em letras violentas e escatológicas, sempre com doses recorrentes de sátira política e social.
Nos shows ao vivo, sua maior especialidade, eles lançam uma série de fluidos falsos no público: sangue, urina, sêmen (tudo feito do mesmo material que se usa para dar cor à comida, o que significa que é perfeitamente lavável e não faz mal à saúde #pas). E frequentemente simulam mutilações grotescas de celebridades como Michael Jackson, Osama Bin-Laden, Papa João Paulo II, Arnold Schwarzenegger, Lady Gaga, Marilyn Manson e Justin Bieber, entre outros, e também de praticamente todos os presidentes dos EUA desde Ronald Reagan.
O GWAR começou, na real, como OUTRA banda. Dave Brockie era vocalista e baixista de um grupo punk chamado Death Piggy, até que famosinho na cidade de Richmond, na Virginia, em especial por usar elementos de apoio no palco (como espadas e paradas do gênero) para reforçar e fazer um teatro em torno de suas letras, geralmente ridículas. O lance é que as bandas locais costumavam ensaiar no Richmond Dairy, uma antiga fábrica de garrafas abandonada que foi tomada pela comunidade hippie – e que alugava algumas de suas salas para músicos e os mais diversos artistas. Foi lá que Brockie conheceu Hunter Jackson e Chuck Varga, estudantes da Virginia Commonwealth que criaram a chamada The Slave Pit, produtora que bancaria o seu primeiro filme, uma aventura de piratas espaciais chamada... Scumdogs of the Universe.
Não demoraria para que eles ficassem todos amigos. Não demoraria para que Jackson começasse a criar peças cinematográficas para o Death Piggy usar no palco. E, claro, não demoraria para que Brockie tivesse a grande ideia: “mas hey, o que cêis acham de usarmos estas roupas do filme que vocês ainda não rodaram como figurinos de uma banda?”. Mas era inicialmente, claro, uma piada: os músicos criaram um grupo falso, formado por seus próprios integrantes, que seria a banda de abertura do próprio Death Piggy. A ideia seria que eles fossem uns bárbaros da Antártida, tocando umas coisas nonsense enquanto sacrificavam animais de mentira. O nome do projeto, fruto da mais pura zoeira, era originalmente Gwaaarrrgghhlllgh.
Mas, eis aí o pulo do gato: logo eles começaram a sacar que a galera ia aos shows mais por causa do Gwaaarrrgghhlllgh do que pelo Death Piggy, supostamente a atração principal da noite. Na real, o público tava até começando a ir embora quando acabava a apresentação dos monstros, ainda desconhecidos. Então, Brockie deixou o Death Piggy de lado e decretou longa vida à nova banda, agora seu projeto prioritário, com o nome devidamente encurtado (pois é, esqueça de vez esta lenda urbana de que GWAR seria uma sigla para “God What an Awful Racket”). O vocalista se tornaria o seu célebre alter-ego: Oderus Urungus.
O GWAR acabou se tornando não apenas o projeto musical de Brockie e companhia, mas também o principal projeto do time da Slave Pit Inc., um coletivo de artistas que, mais do que produtora e empresa de efeitos especiais, virou também um selo independente responsável pela carreira do grupo de guerreiros espaciais e por suas negociações com as gravadoras (e, rapaz, eles passaram por MUITAS). Ali, desde as primeiras fitas demo, o mais importante sempre foi a história, o conceito, e não tanto quem diabos estava por trás das máscaras de cada um dos personagens. O que não faltou ao longos dos anos foram mudanças de formação, com heróis chegando, heróis saindo, músicos entrando, músicos picando a mula.
O álbum de estreia, Hell-O, saiu em 1988, um autêntico crossover de punk rock com thrash metal, na melhor tradição do Suicidal Tendencies, do D.R.I. ou mesmo dos nossos Ratos de Porão, mas fazendo uso de toda esta mitologia esquisita e/ou genial por trás das máscaras retorcidas, armas de espuma e espinhos de tamanho questionável. Conforme os anos passaram, eles chegaram a experimentar sonoridades distintas, um pouco mais pop aqui, um pouco mais pesado ali. Nos últimos discos, seu lado mais agressivo, mais thrash, aflorou mais e mais. Mas a crítica imediatamente aplica neles o mesmo rótulo que Alice Cooper carrega: shock rock.
“Não existiria o Slipknot sem o Gwar”, disparou certa vez, para o jornal Broward Palm Beach, o monstruoso frontman Oderus/Brockie. “Um monte de bandas tentaram fazer o que o GWAR faz. Mas nenhuma foi tão longe quanto o GWAR foi. Vocês acham que estes monstros de supermercado tipo o Marilyn Manson ou o Rob Zombie realmente assustam as pessoas? Eles só se importam com fazer grana e em passear por aí com seus colegas diretores em festas de gala. O GWAR está onde o GWAR deveria estar: na sujeira”.
Concorde você ou não com ele, o fato é que o GWAR carimbou definitivamente o seu espaço na cultura pop, incluindo o universo fora dos palcos. Em 1991, por exemplo, eles fizeram uma pequena participação em um filme adolescente, Que Garota, Que Noite, com Ethan Hawke. Mas para eles não foi o bastante e, depois de pegar gosto pelas telonas, eles lançariam Phallus in Wonderland, filme que documentava e acompanhava o seu terceiro álbum, America Must Be Destroyed. O título do disco é uma provocação direta de Brockie, preso por usar no palco o seu imenso pênis falso, o já lendário Cuttlefish of Cthulhu, órgão reprodutor de Oderus.
O GWAR acabaria se tornando, por exemplo, presença recorrente em Beavis & Butt-Head, numa mistura de veneração e tiração de sarro. Chamados de Rawg, chegaram a participar do desenho animado infantil Codename: Kids Next Door, além de serem as estrelas de The Animated Tales of Gwar, produção única da equipe de animação do Funny or Die. Em 2012, o músico e diretor Adam Green fez o seu papel de fã devoto e criou uma sitcom chamada Holliston para o canal FEARnet. Na trama, o protagonista (vivido pelo próprio Green) tinha um amigo alienígena que vivia em seu armário. Quem era? Ora, bolas, ninguém menos do que Oderus Urungus em carne, osso e borracha.
Ironicamente, o grande golpe na carreira do GWAR, no entanto, seria causado por seu grande protagonista. Depois da morte, causada por um problema de coração, de Cory Smoot (Flattus Maximus), em 2011, eles jamais imaginariam o baque que lhes aguardaria três anos depois. Aos 50 anos, Dave Brockie foi encontrado morto em seu apartamento, vítima de uma overdose de heroína. Líder inconteste do grupo, ele era o último integrante original do GWAR, lá dos anos dourados de 1980. Obviamente a banda continuou e seguiu em frente, como o próprio Dave iria querer e como eles mesmos tornaram pilar desde o seu surgimento, mas é claro que o personagem de Oderus Urungus foi oficialmente abandonado. A roupa que ele usava no palco recebeu uma cerimônia funerária viking, sendo queimada em uma pira no Gwar-B-Q, o festival anual que a banda realiza desde 2009 em sua cidade-natal, Richmond.
Depois de abrirem seu bar temático por lá, o GwarBar, sonho antigo de Dave, eles conseguiram garantir para este ano, depois de uma bem-sucedida campanha no Kickstarter, garantir a publicação de seu próprio gibi blasfemo e sangrento na Dynamite Entertainment. Com roteiros da própria banda em parceria com Matt Miner, do hit indie Critical Hit, a arte fica a cargo de seu parceiro no título do Black Mask Studios, Jonathan Brandon Sawyer. A HQ do GWAR, que atende pelo pouco sutil nome de GWAR: Orgasmageddon, é descrita pela editora como “uma carta de amor aos quadrinhos, aos filmes grindhouse e ao heavy metal” e será lançada ainda este mês.
“Gente, é demais ter um gibi sendo lançado”, afirma Matt Maguire, o Sawborg Destructo, em comunicado oficial. “Quando Matt Miner e eu conversamos pela primeira vez, tudo se encaixou e eu sabia que vinha coisa boa aí”. Já o escritor deixa claro que sempre quis fazer quadrinhos do GWAR. “Muitas pessoas entram neste mercado querendo trabalhar com o Batman ou o Homem-Aranha. Mas, realmente, eu sempre quis escrever uma história destas escórias do universo. Embora eu não fosse reclamar de trabalhar naquelas outras coisas também”, brinca. E Nick Barrucci, CEO da mesma Dynamite que publica as HQs do Kiss, deixa claro o seu orgulho. “Qualquer um familiarizado com as performance teatrais do GWAR ao longo destas três décadas vai concordar que é difícil pensar em banda mais adequada para estar numa página de quadrinhos”.
Oderus, definitivamente, concordaria com isso. <3
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