Pantera Negra: Ódio, Flores e as Coisas certas

Quer entender Pantera Negra bem mais? E entender muito mais coisa além da nossa compreensão? Procura um filme chamado Faça a Coisa Certa, de um Spike Lee. Assiste.

Uma vez, perguntaram pro Tupac que negócio era esse de Thug Life.

Ele explicou que era um acrônimo. The Hate U Gave Little Infants F***s Everybody. “O Ódio que você deu para as crianças pequenas f*** todo mundo”. Quando você alimenta uma criança com uma semente específica, aquilo vai crescer e vai explodir quando ela ficar adulta. Se esse alimento é ódio, mermão, não vai sair um vivo.

Um teólogo britânico, William Ralph Inge, escreveu que a época apropriada para se definir o caráter de uma criança é 100 anos antes de seu nascimento. Você constrói esse caráter com o lugar que a criança cresce, a cultura em volta dela, a situação da família, etc.

Daí, vamos imaginar a situação de algumas pessoas que aparecem no novo destruidor de quarteirões da Disney/Marvel, Pantera Negra — mas não os personagens principais. Logo no começo do filme vemos a história de Wakanda ao longo dos milênios ser contada através de uma animação. Mostra que teve a necessidade de separar a África entre a que foi invadida pelo colonizador e a que ficou isolada e escondida. E vemos o destino do pessoal que ficou de fora. É dessa galera que eu to falando.

Mas você é letrado, você sabe o que rolou. Rolou um sequestro em massa, rolaram séculos de tortura, trabalho forçado, cerceamento cultural, demonização, destruição de identidade. Aí depois de muito tempo, esse pessoal, de origem distinta, cor distinta, conseguiu o direito de não trabalhar forçado, de votar, de não morrer porque entrou na vizinhança errada. Direitos que são mais insubstanciais, dependendo da vizinhança por onde você anda, do que a gente pensa. Só que aquela bagagem toda de séculos ainda tá aí. Ainda tá servindo pra retroalimentar as crianças novas que viram órfãs cedo demais, crescem sem conseguir chorar. E ao serem questionadas de porque tem um coração tão duro, só respondem “Ué, todo mundo morre, não é?”

O Spike Lee fez um pequeno filme em 1989 chamado Faça a Coisa Certa. Não é um filme de high concept, ou “CONCEITÃO” pros chegados. É um filme de vizinhança. “Um dia na vida de”. Um dia na vida de um monte de gente vivendo no Brooklyn, num dia de calor infernal. Todo mundo que cresceu junto, que vai todo dia na mesma pizzaria comer a mesma pizza, ouve a mesma rádio, ri das mesmas bizarrices, chora as mesmas tragédias. E pouco a pouco, as diferenças entre as pessoas vão sendo notadas mais e mais, especialmente entre o dono italiano da pizzaria, seu filho ligeiramente racista (pra caramba) e o resto da comunidade à sua volta, toda de afro-americanos. Um cara começa uma provocação daqui. O outro responde dali. O calor não dá trégua. Sabe aquela história do prego? Faltou um prego na ferradura do cavalo, faltou um cavalo na batalha, e no final morreu todo mundo por causa do prego? O prego pode ser o grau de calor extra. Pode ser o desaforo, uma grama além do peso, impossível de ser levado pra casa. Mas acontece que o ódio dado às crianças pega todo mundo de jeito. Um ato de violência exagerado e desnecessário por parte da polícia age como um estopim para o barril de pólvora, e vemos aquele castelo de areia que vinha ameaçando ruir o filme todo pegar fogo. É aí que o entregador de pizzas decide botar tudo abaixo com uma lata de lixo.

Talvez haja um debate sobre onde se encaixa o título do filme. O que é a coisa certa a fazer, dado esse ciclo nojento que a gente criou quando achou que podia tirar um povo legítimo de um lugar e levar pra outro? Quem tá errado?

Chegamos então num tempo em que a empresa de cinema mais rica do universo vê com bons olhos liberar verba e dar a um diretor do calibre e intelecto de Ryan Coogler a liberdade de contar uma história sobre um super-herói. E ele escolhe fazer um recorte de uma sabedoria e de uma elegância que nós não merecemos. Pantera Negra é a história do Rei T’Challa, que tem todos os motivos legítimos pra ter medo do mundo à sua volta – não foi só esse mundo que escravizou as pessoas da sua cor, esse foi o mundo que matou o seu pai. É também a história de Wakanda, o mundo afrofuturista onde a cultura africana floresceu sem ser tocada pelo “progresso” europeu. A arquitetura, a indumentária, as cores, a dança, os rituais, é tudo puro, é tudo honesto. E é também a história de um garoto que cresceu órfão numa região barra-pesada da Califórnia, herdeiro de séculos de ódio. E que vem f**** com todo mundo.

A primeira vez que vemos Erik Killmonger, ele está num museu, questionando se uma determinada peça que foi tirada de sua terra original sem permissão configura como um artefato roubado. Começa a sua saga para conseguir retornar à terra de seus antepassados, Wakanda, tomar seu lugar como rei, e reverter os séculos de injustiça da única maneira que aprendeu. Olho por olho. Colonialismo por colonialismo. Império onde o Sol não se põe por Império onde o Sol não se põe.

É curioso ver que o vilão do filme resume muito bem o medo do mais parvo dos racistas. Tem o cara que é racista estilo “Fronha na cara”. Talvez você conheça um ou outro desses. Muitos deles estão morrendo de velhice, ainda bem. Tem o cara que é mais “paz e amor, mas eles lá e eu aqui”, que acha que esse negócio de empoderamento é “desnecessário”. Você certamente conhece um desses. Não é desnecessário que ele quer dizer. Ele tem um medo babaca de que quando pessoas descendentes de africanos sentirem-se “empoderados o suficiente”, eles vão querer virar a mesa. Todo preconceito nasce do medo, não é? Pra você ter uma ideia, teve até um pessoal de extremo lado do espectro político escrevendo que o T’Challa no filme é o Donald Trump, porque ele quer proteger seu país, e o Killmonger é o Black Lives Matter, porque ele quer supremacia negra.

Eu também não entendo.

Acontece que, primeiro, o objetivo do Killmonger não se identifica com absolutamente nada que nenhum movimento por igualdade de hoje professa. Segundo, e bem importante: não foi o Killmonger que colocou esse ódio dentro de si próprio. Isso aí é coisa dos “cem anos antes da criança nascer”. E o resultado é um cara que pavimenta todo caminho que trilha no filme com corpos, pouco importa a cor desses corpos. E terceiro: daria pra chamar uma revanche ultra racial em escala global dessas propostas pelo Killmonger de um monte de coisas. Mas daria pra chamar de injusta?

Muita gente está colocando por aí que Pantera Negra apresenta um conflito entre dois ideais que remete ao bom e velho Martin Luther King VS Malcolm X. E é uma coisa bem complicada de se pensar, porque não dá nem pra dizer que são dois lados da mesma moeda, ou como eu ouvi recentemente, “O que pega é que o Martin Luther King partia de um lugar de compreensão, e o Malcolm X de um lugar de raiva. Mas se você acha que o MLK não estava com raiva, você nunca ouviu uma pregação dele”.

T’Challa não é o Martin Luther King no começo do filme. Ele é “uma espécie de Malcolm X”: ele quer um tipo de segregação, como o X queria no começo do ativismo dele, um “eles lá, Wakanda aqui”, mas não por conta de “resolver um problema”. Ele quer manter as coisas como estão. Ele está sendo conservador. Tem medo das propostas de Nakia porque não sabe ao certo como funciona esse negócio de “ser rei”. Ele não tem parâmetros de política externa, de governo, ele é bom só nesse negócio fácil e simples de “ser super-herói”. T’Challa não parte nem da compreensão e nem da raiva. Ele ainda está atordoado com a morte do pai. A única ordem que ele dá com segurança é “Vamos atrás desse terrorista com cara de Gollum, isso eu sei fazer”.

O Killmonger quer um tipo de justiça recíproca com o mundo que fez da sua raça o pé de mesa da história. Ele não quer uma nação negra, ele quer um mundo onde o negro é o opressor. Ele sabe muito bem de onde partir, e daí a comparação mais direta com Malcolm X: a raiva. Só que o X nunca pregou superioridade negra, ele só quis um país separado para os seus, e foi ao longo do caminho percebendo que o MLK tinha um pouco de razão nessa história de que “juntos, somos possíveis”. Foi descobrindo uma filosofia muito mais baseada em construir pontes, e não muros. É mais ou menos o caminho que o T’Challa trilha no filme, triangulado pela referência que o Killmonger lhe dá. Sabe aquela história do vilão tentar o herói com o seu plano? Isso acontece aqui, mas de uma maneira muito menos tradicional. T’Challa se enxerga em Killmonger, e é isso o que cria tanto conflito nele. O Rei sabe que dominar o mundo é possível, até fácil. E é uma solução viável. E quem sabe, justa. A criança abandonada poderia muito bem ter sido ele. O céu do plano espiritual é feito do mesmo roxo mágico. É só a savana majestosa que se transforma num apê pobre.

E se ver no Killmonger é o que dá a deixa pra transformação do T’Challa. É o que faz ele largar o amor pelo muro e aceitar o medo da ponte. Essa ponte vai atingir o objetivo do Killmonger. O objetivo do T’Challa. O objetivo de todo mundo bem intencionado nesse mundo. O nome original do vibranium na língua de Wakanda é “O Presente”, afinal. E aí o T’Challa tem o seu momento “I Am Iron Man”, mas bem mais profundo, bem mais significativo. “We are Wakanda”.

Wakanda Forever.

O último ato de Killmonger não é pacífico. É de nos assombrar. Ele vai até o fundo do oceano pra lembrar que a morte é melhor do que a corrente. Prefere morrer com o punho erguido do que viver num mundo que não conseguiu construir. Porque ele não conhece outro mundo. Séculos de ódio não tem como ensinar qualquer outra coisa.

O filme Pantera Negra é um milagre. Porque é um filme de entretenimento arrebatador, com profundidade histórica, com coerência narrativa, cheio de atuações ótimas. Michael B. Jordan não é só o melhor vilão da Marvel: ele talvez seja um dos únicos que realmente seja importante. Milagre porque CÉUS, finalmente estão tentando acabar com aquela doença de quebrar momentos sérios com piadinhas. Porque alguém na Marvel entendeu que filme de super-herói PODE SER COLORIDO SIM. Porque exalta uma cultura infinitamente rica, bela, que precisa ser reconhecida e precisa ser celebrada. Porque é um filme sobre as coisas certas.

E o que é a coisa certa? Pro Radio Raheem, foi ouvir música no volume alto. Pro Buggout, foi exigir pessoas negras na parede da pizzaria. Pro Sal, foi mandar o Buggout catar coquinho. Pro X, foi pregar a separação. Depois, pregar que a separação não é tudo isso não. Pro Mookie, foi jogar uma lata de lixo numa pizzaria. Pro Killmonger, foi tentar vingar os irmãos que morreram afogados. Pro MLK, foi pregar a união. Pro Rei T’Chaka, foi esquecer uma criança. Pro Rei T’Challa, foi prometer nunca mais esquecer criança alguma.

Foi começar a plantar uma coisa nova. Uma semente diferente. O mundo está, desesperadamente, precisando de mais daquelas flores.