Série vence a “maldição da segunda temporada”, se consolida como uma das melhores atrações da atualidade e prepara a caminhada individual de seus personagens para o futuro
No mundo da música existe uma preocupação sobre a “maldição do segundo álbum”, que é quando uma banda ou artista faz um primeiro disco que arrebata público e crítica – e justamente por isso o peso de sua sequência e como ela será aceita acaba assombrando músicos e envolvidos, podendo elevá-lo ao estrelato definitivo ou a uma queda rumo ao limbo. Acredito que, no caso de séries de TV, deva existir algum tipo de “maldição da segunda temporada” também.
Diversas séries que criaram uma expectativa, um buzz nas redes sociais, uma comoção em sua temporada de estreia, já chegam com um peso enorme em suas costas para agradar novamente o público cativo que construíram, com a “obrigação” de surpreendê-lo uma outra vez e ainda conquistar novos adeptos. Taí True Detective que não me deixa mentir, por exemplo, sem entrar muito nesse mérito.
Esta semana, foi exibido na gringa o season finale da segunda temporada de Penny Dreadful. A série de terror gótica criada por John Logan e Sam Mendes chegou causando estardalhaço, provando que o gênero na TV pode ser classudo e não precisa ficar limitado a vampiros adolescentes, zumbis, caçadores sobrenaturais e outras bobagens superficiais.
Penny Dreadful coloca em sua representação da Inglaterra Vitoriana personagens da literatura clássica e do horror como Frankenstein, Drácula, Dorian Gray, vampiros, lobisomens e demônios, com uma liberdade poética absurda que funciona muito bem, sem cair no caricato (alguém aí lembrou da versão cinematográfica de A Liga Extraordinária?). A série prima pela fotografia impecável, roteiros bem escritos, direção de arte excelente, doses precisas de sangue e vísceras, atmosferas lúgubres e tétricas e um elenco que está afinadíssimo, liderado pela Eva Green (<3).
Depois de encontrar essa fórmula perfeita e trazer episódios absurdamente incríveis (como Closer Than Sisters e Possession, apenas para citar os dois melhores de uma lista bem forte), veio a segunda temporada e podemos chegar à conclusão de que ela conseguiu manter-se no mesmo patamar e se firmar com uma das melhores séries da atualidade, já renovada para sua terceira temporada pelo Showtime, onde é exibida nos EUA (aqui no Brasil, pela HBO). E o mais importante: ela finaliza o ciclo narrativo iniciado em sua primeira temporada, desconstruindo seus personagens e a ideia de um “supergrupo enfrentando as forças das trevas”, lançando-os em um trágico e solitário (além de desolador) futuro vindouro.
Mais uma vez a série é da Eva Green (<3). Ponto! Ela carrega todo o desenrolar da narrativa, o timing e o grupo nas costas no papel da sua cada vez mais poderosa Srta. Ives, em um nível de atuação absurda, que vai de apaixonante, sofrida à assustadora em um estalar de dedos. Não que o resto do elenco não esteja à altura, mas é impossível dissociar a série de sua personagem, de seu semblante carregado, de seus olhos verdes compenetrados e eleger apenas um momento em que ela não tenha uma pungente e visceral interpretação.
Talvez a cereja do bolo dessa segunda temporada tenha acontecido no terceiro episódio, voltado único e exclusivamente a ela, The Nightcomers, que assim como Closer Than Sisters na temporada anterior, é de um impacto visual imenso, eu diria até que um marco da televisão, e coloca Green (<3) à prova, nos levando ao passado da Srta. Ives, mostrando seu treinamento nas artes da bruxaria.
Aliás, bruxas andavam sendo muito mal transpostas para as telas, tanto de TV quando do cinema, ultimamente. Tenho faniquitos só de lembrar da quarta temporada de True Blood e da terceira temporada de American Horror Story. Finalmente Penny Dreadful faz jus a elas, resgatando a famigerada Madame Kali (Helen McCrory), codinome de Evelyn Poole, que já dava a entender que teria alguma participação como a vilã dessa segunda temporada (mas nada tão singular e de alto nível), e apresentando seu conciliábulo de filhas-bruxas que são realmente do MAL, todas a serviço do Mestre, o Coisa-Ruim, como vamos descobrindo no desenrolar da trama.
Pode ser resumir de forma tacanha que tudo que acontece com os personagens que formam aquele seleto grupo de cavalheiros do horror – Sir Malcolm (Timothy “James Bond” Dalton), Victor Frankenstein (Harry Treadaway), Ethan Chandler (ou Chándlá no bom sotaque britânico – interpretado por um cada vez mais surpreendente Josh Hartnett) e Sembene (Danny Sapani), e agora com a incursão definitiva de Ferdinand Lyle (Simon Russell Beale, que surge como uma espécie de agente duplo de Poole, mas acaba por tornar-se um importante aliado) – acontece por causa de um rabo de saia. No caso, da Srta. Ives. QUEM NUNCA?
Amun-Ra continua sua busca incessante por sua Amunet, que é a própria Vanessa Ives encarnada – só que, quando “Lúcifer caiu, ele não caiu sozinho”, já alertava a tagline da temporada. E ao usar de todos os artifícios maléficos possíveis e imagináveis, auxiliado pela bruxaria pesada de Poole e suas filhas (e seus assustadores bonecos de vodu, diga-se de passagem), o Anjo Caído acaba despertando uma poderosa força maligna latente dentro dela (que já sabíamos que existia desde a temporada anterior, porém sem mensurar seu tamanho), obrigando-a a seguir um caminho fatídico e sem volta ao abraçar sua escuridão, que começa a aflorar ao proferir o Verbis Diablo, a língua do demônio, e segue ao conjurar feitiços que a tornarão uma assassina – culminando em um eloquente embate final com seu “amado”.
Mas se a Srta. Ives mais uma vez se destaca na multidão, Penny Dreadful deu também espaço para o crescimento de outros personagens e para que o público conheça ainda mais seu íntimo, graças a uma interessante construção de seus arquétipos durante esses dez episódios. Enquanto Sir Malcolm é relegado a segundo plano (sendo que sua busca pela filha na temporada anterior era o mote principal), Ethan Chandler cresce, mas não apenas para se tornar o óbvio par romântico de Eva Green (<3), e sim ao explorar sua licantropia, os desdobramentos do massacre causado por ele na Pousada do Marinheiro, a luta contra sua maldição, a ligação do destino que o levou ao lado de Vanessa e sua escolha final que afetará drasticamente o que está por vir.
Aliás, para mim a melhor cena de toda a temporada é quando o inspetor da Scotland Yard, Bartholomew Rusk (Douglas Hodge), que está na bota de Ethan, descobre seu verdadeiro sobrenome, Talbot, que é o mesmo do personagem clássico imortalizado por Lon Chaney Jr. em O Lobisomem da Universal. Até certa semelhança física com o visual criado pelo lendário maquiador Jack Pierce se fez presente. Chandler/ Talbot tem tanto medo de voltar à América não só pelo seu passado obscuro de morte e violência, mas por saber que seu pai seria provavelmente portador da mesma maldição, dando margem a um possível acerto de contas entre os dois – e que com certeza será um dos grandes arcos da próxima temporada.
Victor Frankenstein criou a noiva para sua criatura, que aliás agora se chama pelo nome de John Clare (Rory Kinnear), nome de um poeta inglês, ressuscitando Brona Croft (Billie Piper) e inventando uma farsa na qual ela é sua prima do interior, Lily, ao apresentá-la para a sociedade britânica. Mas Victor fatalmente acaba se apaixonando por sua nova criação, o que mais uma vez deixa Clare emputecido, aliás – personagem esse que só sofre, vou te contar – e ele enfim vai perder a esperança de caminhar entre os humanos e seus atos mesquinhos e egoístas. Certo de que nunca encontrará o amor e a paz que procura, o “monstro” decide pelo isolamento ao partir para o Ártico (evocando o livro de Mary Shelley). Enquanto isso, seu criador se afunda em seu vício em morfina, carregado de culpa, remorso e dúvidas.
O caminho da “Noiva de Frankenstein”, que vai crescendo gradativamente num típico slow burning de personagem até explodir e surpreender em seus três últimos episódios, está intrinsecamente ligado ao de Dorian Gray (Reeve Carney), que a conhece de suas atividades libertinas. Gray finalmente sai do ostracismo de seu personagem puramente blasé e mal aproveitado, há anos-luz da sua contraparte maligna do texto de Oscar Wilde. Ele perde boa parte da temporada em sua relação ambígua com a transex Angelique (Jonny Beauchamp) até finalmente mostrar sua veia da maldade saltada, aquela que o público tanto esperava.
Gray e Lily prometem tocar o terror daqui para frente... e assim esperamos.
O final de temporada, em suma, é pessimista, deixando corações partidos e uma sensação de terra arrasada, uma tristeza que dá vontade de cortar os pulsos, e todos os principais personagens têm seus destinos tragicamente selados e deverão confrontar os fantasmas de seus passados e a incerteza de seus futuros, sozinhos, tal qual a carta deixada por Chandler / Talbot para a Srta. Ives, que diz “então caminhamos sozinhos”.
É a primeira vez que o grupo colocará sua individualidade à prova, com seus membros seguindo “carreira solo” e fica a dúvida se eles terão capacidade de perseverar dessa forma, como fizeram trabalhando em conjunto até então.
Mas podem ter certeza que completamente sozinhos eles não caminharão, pois o público fiel certamente estará de volta na próxima temporada, ávido por acompanhá-los semanalmente, ainda mais agora que a “maldição da segunda temporada” foi vencida.