O futuro dos Piratas do Tietê | JUDAO.com.br

Criação mais icônica de Laerte Coutinho nos anos 80, personagens devem virar filme animado numa pegada mais próxima da atual (e brilhante) fase da cartunista

Não é só no Caribe que existem corsários. Aqui no Brasil, eles circulam desde 1983. Um bando de saqueadores, que navegam impunes pelo Rio Tietê, cruzando a capital paulistana, em busca de vítimas para roubar, torturar, sacanear ou, quem sabe, cortar-lhes a cabeça assim, sem muito motivo, apenas pela diversão. Surgidos originalmente em uma edição da revista Chiclete com Banana, da Circo Editorial, logo os personagens da genial Laerte Coutinho se tornariam não apenas presença constante na publicação como em toda a obra da artista, chegando a se tornar o nome de batismo de seu conjunto de tiras diárias, incluindo até aquelas HQs que nada têm a ver com o assunto.

Os Piratas, na verdade, são mais uma “entidade grupal” do que efetivamente um conjunto de personagens. De reconhecível individualmente mesmo, apenas o Capitão, aquele mesmo sem nome. E, honestamente, a ideia era esta mesmo: a própria Laerte já contou, em diferentes entrevistas, que tudo que queria era trabalhar a relação dos bucaneiros com o cenário e os coadjuvantes ao seu redor. Por isso, bastava apenas carregar as tintas nos estereótipos da bandana, do tapa-olho, da perna de pau.

Em uma antiga revista para a Folha de S.Paulo, Laerte admite que os Piratas são os seus personagens de maior destaque, ainda que em sua atual fase mais intimista, quase ONÍRICA, ela prefira o Homem-Catraca. “Os Piratas são são os mais claros, que têm mais peso. São um achado muito bom, estavam prontos como personagens, são auto-explicativos, misturam um fenômeno histórico que foi a pirataria com a visão romântica dela, que foi construída depois, no século 19”, explica.

Uma verdadeira interessada pelo assunto “pirataria”, ela acha que que os personagens se encaixam perfeitamente numa história urbana brasileira crítica e atual. “Todo dia vemos exemplos de como nós, enquanto cultura, somos flexíveis ao ponto da pirataria em relação a regras e normas. A pirataria é algo muito compreensível para qualquer um no Brasil”. Portanto, claro, não estamos falando de uma história de piratas DE VERDADE, mas sim de uma Laerte ainda mais incendiária, numa sátira à miséria urbana e à exclusão social da cidade de São Paulo. “Os Piratas retratam um certo contexto cultural underground de São Paulo e de todo o Brasil, que tem muito de pirata”.

O lance é que a ideia é que os tais Piratas não passassem daquela primeira história inaugural. “Foi uma história para a Chiclete com Banana, não era para passar disso. Até hoje tenho dúvidas se deveria ter passado disso”, afirmou, aos risos, para a Vice. “Mas é verdade, personagem para mim é uma das coisas que acontecem na história. Existem roteiros, existem imagens, vistas, tomadas, planos e personagens, eles fazem parte da história”.

O ponto é que eles cresceram. E seguiram em frente, mais do que a autora imaginava. Viraram um título próprio, com muitos anos de duração, além de sinônimo de sua obra. Mas, um dia, Laerte cansou de verdade. Naquela já icônica entrevista para a edição impressa da revista Bravo, no entanto, ela não apenas falou pela primeira vez abertamente sobre sua predileção pelas roupas femininas, como também fez uma admissão contundente: “Sinto vergonha de quase tudo o que produzi em 40 anos de carreira. Gostaria de consertar a maioria das coisas”. E completou: “Abandonei personagens famosos, como o Overman, os Gatos e os Piratas do Tietê, certo tipo de humor, menos sutil, e a preocupação com a linearidade das histórias”.

Em 2003, Laerte daria aos seus filhotes politicamente incorretos (de verdade, e não daquele tipo que se usa como escudo para destilar ódio por aí – só explicando...) uma sobrevida com uma mistura de peça de teatro e circo chamada... Piratas do Tietê – O Filme. Exibida no Teatro Popular do SESI e escrita pela própria quadrinista em parceria com Paulo Rogério Lopes, a produção brincava com a metalinguagem numa história em que, depois de escapar de uma execução, os Piratas acabam sendo atraídos para fora do navio com a promessa da produção de um filme sobre eles, que deve concorrer ao fictício prêmio Minhocão de Ouro.

“Tem a ver também com essa coisa da Marvel fazendo cinema para sair do buraco”, tira onda Laerte, em entrevista pra Folha. “O mais interessante foi ver surgirem outras cenas. Nos quadrinhos, você faz tudo sozinho, bola a história, escala o elenco, põe a iluminação, faz os planos. O que é bacana, quando a gente tem 13 anos. Mas é muito legal ver as coisas acontecerem fora de você”.

Nesta versão, o cruel e vaidoso Capitão era vivido por alguém com vasta experiência tanto de palco quanto de picadeiro: o finado ator global Domingos Montagner.

Quase na mesma época, começariam então os planos para o longa-metragem animado dos Piratas, cortesia de Otto Guerra, premiado diretor que levou Wood & Stock, do amigo Angeli, às telonas. Com sua experiência na redação de programas TV Pirata, TV Colosso e Sai de Baixo, a autora logo se meteu a fazer o argumento da parada. “É uma história inédita, na qual os Piratas ficam de posse de um documento assinado há 400 anos entre o dono do terreno onde fica São Paulo e uns bandeirantes, que alugam a área por todo esse tempo. Quando o contrato acaba, a cidade precisa ser devolvida aos herdeiros do dono, que são os Piratas”, explicou ela, à época.

Mas esta declaração aí foi em 2008. E desde então...

“Comecei esse projeto dos Piratas, que já está com mais da metade dos desenhos pronta, em 1993, numa época em que esperava filmar a obra dos grandes quadrinistas brasileiros da minha geração, como Adão Iturrusgarai, Glauco, Angeli...”, contaria Otto Guerra, recentemente, ao Estadão, prestes a completar seus 40 anos de carreira. Só que o projeto orçado em R$ 5 milhões e já devidamente batizado de Cidade dos Piratas está atualmente na DÉCIMA versão do roteiro – que, em certo momento, chegou até a incluir o encontro imaginário entre os bebedores de rum e o poeta português Fernando Pessoa, num embate entre a poesia e a barbárie.

De lá pra cá, além do roteiro, Laerte assumiu também a direção de arte do filme. “Laerte é uma das cartunistas mais cinematográficas que conheci. A traço dela já é um storyboard perfeito, porque tem uma narrativa com muito movimento sem perder a reflexão”, afirmou o diretor, ao Globo. E a trama também mudou, até refletir este novo momento da Laerte.

Agora, a história com um tom de falso documentário (ou falso filme underground) terá um cartunista que acaba desconstruindo a própria obra, da qual os Piratas fazem parte. A ideia, inclusive, é que o tal artista seja animado numa técnica diferente do restante da história, pra pontuar esta diferença narrativa – talvez em massinha ou mesmo em rotoscopia. E mais um personagem famoso da cartunista entrou na roda: Hugo. Cujo destino será mesmo daquele das tiras da Folha de S.Paulo: se transformar em Muriel. “Laerte foi muito transgressora ao criar aqueles piratas que cortavam as cabeças. Hoje em dia, nada mais transgressor do que um pirata depilado e maquiado”, opina.

Ainda não existe previsão de lançamento do filme.