Placar: entre crises e grandes matérias | JUDAO.com.br

Depois de 45 anos, a Editora Abril repassa a revista sobre futebol para a Editora Caras, em mais um desdobramento da grande crise do mercado editorial e da empresa. Só que com tantas glórias e fundos do poço durante todo esse tempo, talvez seja a deixa para a revista reencontrar o caminho da relevância

Era março de 1970 e aqueles eram outros tempos. O futebol brasileiro dava os primeiros passos a uma real integração nacional – até então, os campeonatos estaduais é que tinham importância e os regionais estavam em transição para o Campeonato Nacional de Clubes, que daria origem ao Brasileirão atual – e a Seleção se preparava, desacreditada, para a Copa do Mundo do México. Apesar do futebol estar se tornando nacional, não existia uma publicação nacional sobre o esporte. Isso acabou no dia 20 daquele mês. Com o Pelé na capa e uma moedinha como brinde, chegava às bancas a primeira edição da Placar.

Não estava lá pra ver, mas é uma história que meu pai conta.

Uma história que, se não vai acabar agora, ao menos chegará em seu ponto e vírgula. Vítima de uma lenta e longa reorganização (e de uma lenta e longa agonia) da Editora Abril, a Placar passará a ser uma responsabilidade da Editora Caras, que, em parte, é do próprio Grupo Abril. Um processo que já aconteceu com revistas como Aventuras da História, Recreio, Manequim, Máxima e tantas outras. Mas vale voltar um pouco praquele passado...

Pra posteridade, todo o arquivo da Placar está disponível quase completo na internet – e, voltando praquelas primeiras edições, é fácil entender o motivo de ter dado certo. Em um tempo que só existiam jornais esportivos regionais, a revista conseguia reunir em um só local o noticiário semanal dos clubes com matérias mais profundas, como uma entrevista do então técnico da Seleção, o jornalista João Saldanha, ao repórter Teixeira Heizer, avisando que não deixaria o comando e, na edição seguinte, contando todos os podres de sua saída; além de um tabelão com todos os resultados do Brasil e do mundo. Até esportes como automobilismo e boxe tinham espaço nas páginas da revista.

Isso tudo numa época que o Brasil estava vendo pela primeira vez uma Copa do Mundo ao vivo pela TV.

Placar CartolasMas o diferencial era mesmo que a revista sabia dar seus chutes no estômago. O primeiro veio logo na edição 20, ainda de 1970. Na série de matérias A Falência dos Cartolas, Michel Laurence (que já tinha um Prêmio Esso na estante por “O jogador é um escravo”) e Narciso Gomes, com fotos do Lemyr Martins, iam fundo nos problemas da cartolagem brasileira e, mais do que tudo, apresentavam propostas de como contornar aqueles problemas ao analisar o que era feito, por exemplo, na Itália – uma delas era justamente a semente que nos deu o Brasileirão e a própria CBF.

“No princípio, os cartolas são sempre bem-intencionados. Mais depois eles entram na engrenagem viciada do nosso futebol e perdem seus ideais. O motivo é quase sempre o prestígio”, diz a segunda matéria da série, de uma forma que soa assustadoramente atual, e continua: “Havelange é a prova disso tudo”, citando o então presidente da CBD e futuro presidente da FIFA. Numa época de ditadura, ir contra os poderosos soava corajoso. Como ainda é corajoso apresentar todas aquelas acusações e ideias em primeira pessoa, de forma opinativa e direta.

Os anos foram passando e a Placar não perdeu a sua função de incomodar a cartolagem. Em dezembro de 1977 colocaram logo no editorial que o inchaço do Campeonato Brasileiro (que teria 74 clubes em 78) era ruim, propondo a criação da Segunda Divisão – e, veja só, o retorno de uma fórmula com Turno e Returno. Em 82, a Placar, com uma capa preta, revelava todo o esquema da Loteria Esportiva, quando uma verdadeira máfia manipulou os resultados dos jogos para ganhar dinheiro com as apostas.

Assinada pelo repórter Sérgio Martins, ela foi fruto de uma suspeita que começou ainda em 1979, quando Milton Coelho da Graça, diretor da revista, percebeu algo estranho na Loteria Esportiva. Na época, Juca Kfouri chegou a ir até Brasília, pra ver os bilhetes premiados, mas a Caixa vetou. Em 81, quando já era diretor da revista, Kfouri deu para Martins a missão de investigar tudo aquilo e um prazo: um ano. O resultado: uma matéria de 12 páginas, que escancarava todo um esquema e incluía 125 nomes de árbitros, dirigentes, técnicos, personalidades e jogadores envolvidos. Clubes como Fluminense, Botafogo, Atlético Mineiro e Grêmio tinham perdido jogos para os mafiosos ganharem dinheiro. Era um esquema maior do que se tinha visto na Itália pouco anos antes. Na Terra da Bota, jogadores foram suspensos (incluindo Paolo Rossi, que afundaria o Brasil na Copa de 82), enquanto Milan e Lazio foram rebaixados.

Placar: Mafia

“Muita gente importante sabia há tempos dessa corrupção e não tomou nenhuma medida. Espero que o governo, agora, faça como na Itália”, dizia o sr. Hoover seção de cartas duas edições depois. Desculpa, pai, mas você foi ingênuo: nenhum dos acusados foi preso, nenhum time foi rebaixado, nenhum jogador foi suspenso.

O primeiro baque

Se ninguém foi preso, ao menos a credibilidade da Loteria Esportiva foi pro ralo. Por essas ironias do destino, isso acabou vitimando a própria Placar, já que parte das pessoas comprava a revista justamente para saber os resultados dos jogos. Isso obrigou a revista a fazer uma série de reformulações.

Primeiro, tentaram dar mais destaques para outros esportes – o que não deu certo, com apenas a tradicional Fórmula 1 continuando na revista (e que, depois, daria origem à revista Grid). Depois, tentaram acabar com o Tabelão, justamente a parte com os resultados dos campeonatos, mas os leitores reclamaram e a seção retornou. Então passaram a adiar em um dia o fechamento da revista, indo de domingo para segunda, já para tentar fugir do mesmo noticiário do rádio e da TV – desde 1978 já tínhamos o Globo Esporte, que já falava diariamente uma parte do que a Placar publicava semanalmente. No final da década de 80, tentaram fazer uma versão com menos páginas, papel de menor qualidade e formato maior, chamada Placar Mais. Vendeu bem, mas a publicidade era escassa e, na prática, a tiragem maior dava prejuízo para a Editora Abril. Pra piorar, a Seleção foi um fracasso na Copa de 90.

Era pra Placar ter terminado ali.

A partir da edição 1052, a revista teria apenas edições temáticas. Na realidade, era o aviso de que o fim estava próximo. Por sorte, a segunda edição especial, sobre os 50 anos do Pelé, alcançou quase 100 mil cópias. Um sucesso tão grande que fez o projeto de edições temáticas realmente se consolidar e se tornar realidade, com periodicidade mensal.

Os bons tempos voltaram de vez durante a Copa de 94: com revistas publicadas logo após cada jogo do Brasil, a Placar foi longe, assim como a Seleção de Parreira, Dunga e Romário. Foi a deixa para mais uma grande reformulação, que contou com um investimento de, na época, US$ 1 milhão.

"É TETRAAAAA... É TETRAAAAA"

“É TETRAAAAA... É TETRAAAAA”

Futebol, sexo e rock n’ roll

Apesar de ter lido duas edições da versão anterior, é aqui que a Placar entra definitivamente na minha vida. A edição era a 1102, mas tinha cara de um novo número 1. Se em 1970 tínhamos Pelé na capa, agora era a vez de Edmundo aparecer com um ursinho de pelúcia na mão. “O Animal Precisa de Carinho”, dizia a manchete.

Era abril de 1995 e lembro bem quando meu pai pegou aquela revista na banca. Foi a primeira vez que a Placar (ou qualquer outra publicação sobre esportes, admito) chamava a minha atenção. E deve ter sido assim pra muita gente. Com uma diagramação moderna (pros anos 90...), a revista tentava ser polêmica de outra forma, menos sisuda, mais jovem. O diretor de redação era Marcelo Duarte, que você deve conhecer hoje pela ESPN ou Rádio Bandeirantes. No editorial daquela edição, Juca Kfouri, que se mantinha como diretor da revista, ainda soa atual: “se você tivesse que optar entre os campeonatos estaduais e o campeonato brasileiro, qual escolheria? Porque está mais que na cara enquanto os cartolas quiserem fazer conviver os dois tipos de torneio, será impossível ter alguma coisa que se possa chamar de calendário no nosso futebol”.

Placar, 1995

Apesar do futebol estar presente, a nova Placar tentava ser mais relevante fora de campo – trazendo crônicas, matérias sobre música, sobre os gostos dos jogadores, mulheres, tendências... Chegaram a criar super-heróis para os clubes brasileiros, um CD com novas versões dos hinos de futebol e coisas assim.

O formato fez sucesso e aquela primeira edição vendeu 237 mil exemplares, um recorde pra Placar.

Ainda assim, a revista continuava dando suas porradas nos dirigentes, ou ainda escancarando problemas graves do nosso futebol. Em abril de 1996, por exemplo, uma matéria assinada pelo Paulo Vinicius Coelho mostrava o fundo do poço (dos inúmeros) do Juventus da Mooca e de uma das organizadas do clube. “A Ju-Jovem, torcida organizada do Juventus, cabia numa Kombi. Sobrou apenas o motorista”. Em junho de 1997, novo escândalo era investigado pela Placar, no hoje chamado Caso Ivens Mendes – quando o próprio, que era presidente da Comissão de Arbitragem da CBF, foi revelado como chefe de esquema de venda de resultados no futebol. Entre outros fatos, a revista revelou que Mendes era fiel escudeiro de Ricardo Teixeira, então presidente da CBF e genro de João Havelange, aquele mesmo da matéria de 1977...

Teixeira não sabia de nada, claro.

Só que aqueles eram outros tempos. O Grupo Abril tinha entrado na televisão e, com a TVA, tinha interesse em contratos para a transmissão dos jogos. Chegaram a ter um canal para isso, chamado TVA Esportes, que acabou evoluindo para a ESPN Brasil e, atualmente, é da Disney. Como a Placar quase sempre dava prejuízo, a publicação foi quase vendida para o próprio Juca Kfouri – e o próprio diz que o negócio só não aconteceu porque descobriram que o Pelé era um dos sócios da empreitada, o que fez a editora aumentar a pedida.

Semanal, mais uma vez

Durante a Copa de 98 a Placar voltou a ter edições especiais após os jogos do Brasil. Foi um enorme esforço para botar a revista quase que semanalmente nas bancas, com toda uma equipe da jornalistas e diagramadores na França, mas acabou dando prejuízo para a revista.

Isso não desmotivou ninguém para que, no começo de 2001, a Placar voltasse a ser semanal, com edições novas todas as sextas-feiras. Era uma época que o Lance! fazia sucesso com suas edições diárias, resgatando um pouco da glória da Gazeta Esportiva, mas aqueles tempos eram diferentes do que tinha sido visto entre 1970 e 1990: a internet já vinha aparecendo como um meio para se manter informado sobre futebol e, enquanto isso, o futebol brasileiro vinha num mal momento por conta de CPIs e de todo o rolo da Copa João Havelange de 2000 (que aconteceu justamente porque a CBF não poderia realizar o Brasileirão).

Ainda assim, a revista ainda tinha a sua relevância. Não era difícil ouvir discussões sobre quem fez algo importante no meio da semana pra merecer ser a capa da Placar da semana seguinte. De qualquer forma, a nova fase semanal não durou até 2002. Depois de algumas edições especiais naquele ano, a revista voltou a ser mensal em 2003 – como se mantem desde então.

Placar, RomárioDe lá pra cá, a Placar continuou polêmica, sempre com aquelas análises que vão mais fundo do que a média na imprensa brasileira. Isso inclui aquela capa de 2012, com a “Crucificação de Neymar”. Também não deixou de lado a crítica aos cartolas e à organização do futebol nacional, mas de forma mais morna – sobre a Copa do Mundo no Brasil, as manchetes nas capas terem sido “Vai ter Copa!” e “A Grande Copa”, minimizando os problemas que aconteceram, chegando a citar “Faltam trilhos e ônibus. Mas a gente se vira”. Ao menos deram espaço, agora em abril, para que o Romário falasse da carreira dentro e fora de campo, incluindo disparar a sua metralhadora contra a CBF. “O Ricardo Teixeira é um filha da puta! Mentiroso, isso que ele é”, disse o agora senador.

Antes disso, a outra capa contra o status quo foi em novembro de 2013, quando o Alex e o Bom Senso Futebol Clube deram, literalmente, as caras. Porém, é pouco pra quem já descobriu e investigou grandes esquemas no passado – e que ainda existem, como o noticiário recente deixa claro. A edição de junho, inclusive, fala sobre a Copa América, apenas. Nesse último caso, uma defesa: as prisões de José Maria Marin e dos outros dirigentes da FIFA aconteceu quase que certamente após o fechamento da revista, mas esta era uma bola que já estava quicando e que, no passado, não passaria batida...

Com tudo isso, a Placar chega agora em 2015 com uma tiragem de 66 mil exemplares, sendo a maior parte, 47 mil, assinatura – números da própria PubliAbril. É muito menos que os 237 mil exemplares de 1994, e também menos que a tiragem de 354 mil exemplares da Superinteressante, por exemplo. Vendo esses números, é fácil entender a decisão da Editora Abril.

É fácil apontar alguns culpados por essa queda. As revistas, como um todo, estão retraindo; o futebol vive outro buraco negro de credibilidade; muita gente deixou a paixão pelo esporte de lado por conta da violência e do medo que começa antes de vestir a camisa do clube que torce; o enfraquecimento das bancas, que a Abril tenta ~combater monopolizando a distribuição, mas acaba enfraquecendo ainda mais as bancas e as revistas como um todo; a internet, que faz a Placar ter 1 milhão de unique visitors no site, apesar de vender pouco na versão impressa; a própria miopia da Abril, que não conseguiu encontrar um formato para entregar algo que os leitores achem que vale a pena ir até a banca e pagar R$ 13.

Mas, talvez, os maiores culpados sejam os leitores e fãs de futebol como um todo. Mesmo nos anos 70 e 80, eles nunca compraram a Placar por suas grandes matérias. Eles compravam pelos resultados dos jogos, pela Loteria Esportiva. As grandes reportagens vinham como um bônus que, se bobear, essa maioria só lia depois que viam outros comentando. Nos anos 90, a revista devia vender mais pelo sexo do que pelo futebol e o rock’n’roll.

Com a internet, tudo isso – resultados, notícias de quem vai jogar contra quem, e sexo – tá aí, de graça. A maioria não quer comprar só pelo bônus. Ainda mais se o bônus não tem mais a mesma relevância do passado.

Foram 45 anos de relação entre Editora Abril e Placar. A revista já passou por fases piores e, vamos torcer, talvez reencontre o caminho na nova casa – e que, mesmo sem a atenção da maioria, ainda faça a diferença no futebol brasileiro.

Inspiração no passado é o que não falta...

ps. A imagem de destaque, que abre este texto, é a mais famosa do Pelé – e também um dos grandes destaques da Placar. Foi feita pelo fotógrafo Luiz Paulo Machado, em 1976, durante o amistoso beneficente Flamengo vs. Brasil.