Sobre rap e misoginia | JUDAO.com.br
19 de agosto de 2015
Música

Sobre rap e misoginia

Estamos em 2015, gente. Sério mesmo?

Existe um jeito novo de se fazer música. Na verdade, existe um jeito novo de se fazer pensar cultura, atendo-se para questões que antes passavam despercebidas, mas que agora são latentes demais para continuarem sendo ignoradas. Do humorista que fazia blackface e ganhava aplausos por simbolizar um “retrato satírico de uma população” até um segmento musical que sustentou (e ainda sustenta) muitos artistas cujo material básico de escrita é a diminuição da mulher como ser humano: o rap.

Para conseguir aprofundar a questão, tiremos algumas obviedades do caminho primeiro para espantar o mimimi: Inúmeros outros gêneros têm letristas que enchem os bolsos de dinheiro pintando a mulher como extensão obrigatória do homem, a exemplo do sertanejo (universitário ou não), pagode, parte do rock dos anos 80, etc.; Não existem generalizações que sobrevivam a dois minutos de reflexão, portanto – claro que o hip-hop é cheio de representantes que respeitam a figura da mulher e não é o gênero em si que se apresenta como sexista, mas artistas dentro do movimento que têm visões de mundo limitadas e acabam passando a mensagem errada adiante.

Dito tudo isso: recentemente, numa entrevista à Rolling Stone americana, os rappers Dr. Dre e Ice Cube falavam sobre Straight Outta Compton, filme a respeito da história do grupo no qual ambos surgiram, o N.W.A. (Niggaz Wit Attitudes) – uma das pedras fundamentais do gangsta rap e influenciador de artistas como Eminem e Kendrick Lamar, décadas depois.

Um dos pontos básicos de uma entrevista que lança luzes sobre a formação do gangsta é justamente perguntar sobre o viés misógino claramente visto (e ouvido) em algumas das letras desses artistas. “Se você é uma puta, então provavelmente não vai gostar de nós. Se você é uma vadia, então provavelmente não vai gostar de nós. Se você não é uma puta ou vadia, não pule na nossa frente para defender estas mulheres desprezíveis”, diz Cube, de maneira inacreditável e perdendo uma ótima oportunidade de um pedido de desculpas. “Assim como eu não pularia para defender homens que são covardes ou filhos da puta. Nunca entendi porque uma mulher de respeito acharia que estávamos falando sobre ela”.

Rolling Stone

Ice Cube usa o mito da “mulher de respeito” (em inglês, a “upstanding lady”) em resposta. Normalmente, quando um músico não quer parecer misógino no rap, ou pretende suavizar um discurso preconceituoso já exposto em sua discografia, ele apela para o uso de baladas. Nesse tipo de faixa, usa todo seu repertório de metáforas para homenagear um tipo de mulher que se diferencia das descritas bitches and hoes e, por isso, merece ser levada a sério o suficiente para sonhar com um relacionamento no futuro.

Em diversos gêneros musicais, a estratégia de embelezar a parceira recorrendo a lirismos tem a intenção de aproximar a mulher de um personagem poético – nossa MPB, por exemplo, é inteiramente baseada nessa estrutura. No contexto acima, entretanto, Cube e muitos outros rappers que lançam mão desse raciocínio criam essa personagem unidimensional para justificar o machismo da grande maioria de suas composições: usam a máxima da mulher que ganha respeito se “se der ao respeito”.

Mas de onde vem, então, a figura da vadia? Do problema que este letrista-homem tem em enxergar a mulher como um ser sexualmente livre. Por mais contraditório que possa parecer, o rap tem grande facilidade em se aliar a uma visão conservadora dos fatos. A ideia de liberdade sexual estará presente numa casa cheia de mulheres usando lingeries num clipe como o de Candy Shop (do 50 Cent, clique no link e veja por conta própria), mas basta a menor referência ao sexo não monogâmico praticado por uma mulher que esteja apenas com vontade de transar e o mito da bitch em busca de dinheiro ressurge com força neste imaginário coletivo.

No Brasil, a inserção da mulher dona da própria sexualidade em gêneros musicais mais fechados ainda engatinha, mas ganha força com a existência de rappers como Lurdes da Luz e Flora Matos, seguindo um movimento de libertação que já vem mais avançado do funk, graças a artistas como MC Carol e Valeska Popozuda.

Outro rapper que que se tornou alvo recente da filosofia do NÃO PASSARÃO foi Tyler, The Creator que teve de cancelar sua turnê australiana após uma campanha que pedia a negação de seu visto de entrada no país pelo grupo feminista Colletive Shout.

Tyler lançou em 2015 Cherry Bomb, um álbum tão impressionante por suas bases agressivas influenciadas pelo rock e o punk (que inspiraram também o Yeezus de Kanye West), quanto pelas inúmeras letras em seu repertório que descreviam violências contra a mulher. “Nós preferimos visitar a Austrália quando ela não estiver cercada de controvérsia”, Tyler disse em comunicado oficial. “Eu amo meus fãs de lá e espero poder retornar em breve. Não usem drogas”.

Rap_04

Tyler, The Creator

Parte dos fãs que defendem as faixas de Creator apelam para o lema “Kill people burn shit fuck school” sobre o qual o artista fundou seu coletivo – refrão da música Radicals que, essencialmente, significa “falo o que eu quiser, como eu quiser, sobre quem eu quiser e na hora em que eu quiser”. O problema é que violência pelo seu simples uso sem qualquer função social ou efeito de crítica é artisticamente vazia. Comparar o movimento dos Panteras Negras, por exemplo, e sua ideologia de agressividade em resposta ao racismo não é o mesmo que defender Tyler e suas letras de estupro.

O jogo mudou e definitivamente os artistas têm de começar a testar formatos em que as músicas não precisem de um judas para ser malhado em suas faixas. Rappers da velha guarda iniciaram suas carreiras num momento histórico onde a sociedade via como menor o impacto da cultura pop no cotidiano e por isso reduzia o direito de fala da mulher com o clássico argumento “ah, não liga, é apenas entretenimento”. Os tempos são outros.

Dos artistas que pretendem sobreviver aos novos tempos, Snoop Dogg prometeu não escrever mais músicas onde diminua a importância da mulher e Jay-Z divulgou um comunicado oficial onde pedia desculpas pelas faixas onde usava linguagem menor ao se referir à elas.

A mudança pode ser lenta, mas se negar a apoiá-la é cavar a sepultura da própria carreira.