Mesmo num mundo com fartas ofertas de jogos online, o mercado continua ganhando cada vez mais opções de board games, card games e RPGs tradicionais de tabuleiro – alguns deles, inclusive, saídos da mente de criadores brasileiros
O carioca Wagner Rodrigues dos Santos sempre foi grande fã dos jogos modernos de tabuleiro. O motivo? “A alegria de juntar os amigos ao redor da mesa e ter horas de diversão era bem melhor que ficar via VoIP conversando vidrado na tela do computador ou videogame”, confessa. Depois de jogar o recente Boss Monster, lançado em 2014 pela Brotherwise Games, ele teve uma epifania. Afinal, trata-se de um dungeon builder de mesa cuja grande graça é justamente simular um jogo de videogame do tipo sidescrolling (ação vertical).
“Lembro que, quando eu ganhei meu Sega Genesis, um dos jogos que eu tinha era o Streets of Rage. De todos os estilos de jogos, os Beat’em Ups eram disparados os meus favoritos! Depois de jogar com meus amigos algumas partidas de Boss Monster, pensei que outro tipo de jogo de videogame poderia virar um bom boardgame? A resposta foi imediata: Streets of Rage”. Assim, surgiria o divertido conceito de Beat’ em Up.
O Beat’ em Up é um jogo de mesa que pretende simular a experiência de jogar Streets of Rage, naquela ambientação típica dos clássicos filmes de ação das décadas de 1980 e 1990, como Ruas de Fogo, Massacre no Bairro Japonês e Os Aventureiros do Bairro Proibido. “Os jogadores vivem a experiência de enfrentar estágios, capangas e subchefes para tentar chegar na fase final, enfrentar o chefão e vencer o jogo”, conta Wagner. Todas as imagens têm aquela pegada retrô, meio pixel art. Cada jogador tem uma espécie de tabuleiro individual, que simula o controle do videogame. Mas os golpes, claro, são aplicados utilizando dados.
“A mecânica decisória é a rolagem de três dados de seis faces, tentando formar sequências numéricas (ex.: 2, 3 e 4 ~ 3, 4 e 5 ~ 4, 5 e 6). Duplas e trincas também oferecem bônus! Existem cartas de ataque e defesa que aumentam sua possibilidades de combinações”, explica o criador. Além disso, elementos clássicos como caixas que podem ser quebradas para encontrar itens também fazem parte do jogo. O jogo funciona bem com 2 a 4 jogadores, demorando em média 45 minutos.
Disponível em mesas-teste por enquanto apenas em eventos do Rio de Janeiro como Boards&Burgers, Iron Nerds e Castelo das Peças, Beat’ em Up tem sido muito bem recebido pelos fãs e será oficialmente lançado, em 2015, pela Ace Studios, empresa independente especializada em jogos analógicos. Wagner é apenas um exemplo de alguns corajosos empreendedores que, mesmo em meio a um cenário de franca ascensão de jogos eletrônicos colaborativos, como os MMORPGs do tipo World of Warcraft, apostam na experiência olho no olho e dão a cara pra bater para lançar seus trabalhos. Que o diga o estúdio The Castle Builder, sediado em Piracicaba/SP.
Totalmente viabilizado por meio de financiamento coletivo (atingindo mais que o dobro dos R$ 35.000 inicialmente estipulados), Selene The Fantasy é uma criação original do grupo liderado por Klaus Maximilian. Conceitualmente, a história se passa em um mundo surreal criado a partir da mente de uma garotinha que ficou em coma após ser atingida por um disparo – e é através das histórias contadas por um velho ermitão em sua mente que este mundo se desenvolve. Nele, os Defensores (heróis jogáveis) lutam ao lado de três facções que estão em guerra para capturar poderosos artefatos místicos. Somente com estes artefatos em mãos é possível decidir o destino do mundo e da garotinha Selene.
Em termos práticos, no entanto, trata-se de uma mistura de jogo de cartas e tabuleiro, na qual “você controla um defensor com habilidades únicas, luta lado a lado com seus amigos em equipes de 2 vs 2 ou 3 vs 3, utilizando suas estratégias individuais e em equipe para derrotar seus oponentes e conquistar os artefatos místicos”, explica Klaus.
Conversando com o JUDÃO sobre o projeto, ele admite que é um verdadeiro desafio empreender e criar um jogo. “Os desafios são imensos”, afirma, deixando claro, no entanto, que ainda existe bastante espaço para os interessados em “fazer um bom trabalho e achar seu próprio público”.
Selene The Fantasy é apenas um dos casos de sucesso de financiamento coletivo para a categoria de jogos não-eletrônicos dentro do Catarse – o que inclui o modelo clássico de Masmorra de Dados (que atingiu a impressionante marca de quase R$ 250.000 – sendo que o pedido inicial era de “apenas” R$ 20.000), o jogo de cartas Warzoo (parodiando a trama do clássico A Revolução dos Bichos, de George Orwell) e o satírico Pequenas Igrejas, Grandes Negócios, cujo nome fala por si só, criação do veterano Marcelo Del Debbio – que desenvolveu os sistemas Daemon e RPG Quest, além de ser figura carimbada na saudosa revista Dragão Brasil.
Entre os que ainda aguardam a obtenção do valor total solicitado estão títulos como Olympus, Heróis de Ouro, Numenera e Our Last Best Hope – este último, um interessante RPG cujo sistema colaborativo funciona sem a figura do GM (Game Master) e cuja ambientação se desenrola em um futuro apocalíptico, totalmente desenvolvido pela turma da Arsenal Editora, de Joinville.
O financiamento coletivo é o principal objetivo da dupla santista Fabio Gullo e Persio Sposito. Entusiastas de longa data de jogos de interpretação do tipo RPG, eles resolveram desenvolver sozinhos “um produto profissional e comercial em todos os sentidos, com abrangência, amplitude ou dinâmica temática e mecânica (em termos de regras) suficiente para ter algo a oferecer a todos os tipos de jogadores”, segundo os próprios autores explicam. O resultado tem nome: Metalpunk.
“A intenção é comercializar o jogo em todas as mídias possíveis. Assim, tanto para os apoiadores do financiamento coletivo quanto para o público em geral posteriormente, a ideia é ter opções digitais (o livro vendido em pdf) e impressas (impressão sob demanda a princípio, quem sabe a distribuição e disponibilização em pontos de venda). Temos planos até mesmo para outros formatos além do livro comum, como capas alternativas e até mesmo caixas recheadas de props (itens)”, explicam eles.
Metalpunk tem um quê de Mad Max com Akira – a Terra e a humanidade sobreviveram não apenas a um, mas a dois apocalipses. O hemisfério norte mergulhado numa perpétua era glacial e o hemisfério sul transformado num Saara sem limites. A humanidade, a partir da seleção natural turbinada pelo enigmático megavírus, deu origem aos poderes psíquicos e gerou novas raças. Degenerada, a antiga civilização global regrediu a uma mentalidade e tecnologia medievais na qual, por razões ideológicas e religiosas, os conflitos são resolvidos por combate corpo-a-corpo (“só os fracos e covardes usam armas de fogo”). E é justamente nas regras de combate de seu sistema de regras que eles acreditam que está a chave para o sucesso do jogo.
“O que o nosso sistema tem a oferecer de novo, e que o diferencia de um GURPS ou de um D20, é o que ele tem de mais próximo ou íntimo com o cenário que tenta mimetizar ou representar: um sistema de combate brutal”, explica o duo. “A reação dos primeiros playtesters ao sistema de combate foi tão entusiasmada que baseados nela resolvemos lançar, em breve, esse sistema gratuitamente na forma de um pequeno wargame de duelos individuais ou entre pequenos grupos, intitulado Metalpunk Arena, com o intuito de servir de beta para o sistema de combate além de um preview do jogo completo”.
Fabio acredita que exista uma maneira bem simples de ilustrar o quanto a aposta nos RPGs de mesa ainda faz sentido. “Se eles não tivessem seu lugar e não vendessem – e muito –, a Steve Jackson Games não teria lançado o GURPS quarta edição e sim um MMO genérico, ou a Wizards of the Coast não teria recém-lançado o D&D quinta edição e sim um MMO e passaria a competir com a Blizzard”, aposta.
Os números, de fato, estão bastante a favor. A Amazon gringa afirma que as vendas de jogos de tabuleiro aumentaram numa casa de dois dígitos nos últimos anos, de acordo com reportagem do jornal The New York Times. Da mesma forma, o Kickstarter revela que, em 2013, a quantia total de apoio a projetos envolvendo atividades de mesa foi maior do que a quantidade arrecadada para o desenvolvimento de jogos de videogame: US$ 52 milhões contra US$ 45 milhões, especificamente.
Aqui no Brasil, os resultados também são positivos. Em 2012, a venda dos jogos de tabuleiro representou 10,5% das vendas totais do mercado de brinquedos, de acordo com dados da Associação Brasileira dos Fabricantes de Brinquedos (ABRINQ). Isso é quase três vezes mais, por exemplo, do que o número registrado por brinquedos como patins, patinetes e bicicletas. “Os jogadores querem estar com outras pessoas, não aceitam solidão”, observa Synésio Batista da Costa, presidente da Abrinq, em entrevista ao jornal Gazeta do Povo. “Exceto no que diz respeito a jovens aficionados por games, os jogos eletrônicos têm um poder de entretenimento restrito”.
Para a Devir Editora, um dos maiores nomes em nosso país no que diz respeito a jogos de RPG e card games, o mercado de jogos de tabuleiro está em expansão por aqui. “Mas ainda é difícil dizer quão rentável ele é”, pondera Douglas Quintas Reis. “Os investimentos neste tipo de produto em geral são bastante altos e a carga tributária é sufocante. E, é claro, as vendas nem sempre acontecem antes da hora de pagar as contas. Vamos precisar de mais um ano ou dois para sabermos como é que ele vai funcionar”.
Douglas acha que, inicialmente, houve uma fuga dos fãs de RPG e afins para as mídias eletrônicas, principalmente dos mais jovens. “Depois, como é natural, houve um refluxo e jogos eletrônicos famosos passaram a gerar RPGs de mesa e jogos de tabuleiro como aconteceu com o Warcraft, por exemplo. Além disso, qualquer jogo com a visibilidade destes jogos ajuda, nem que seja indiretamente, pois muda a percepção que o público em geral tem do hobby”.
O porta-voz da Devir afirma ainda que, “mais do que nunca”, a empresa está disposta a investir em produções nacionais. “Para investir em uma determinada área é preciso que haja movimento suficiente nela para que o processo possa sobreviver”, explica Douglas. “Para podermos produzir jogos de tabuleiro brasileiros, é preciso que os jogos de tabuleiro estejam gerando movimento suficiente para financiar este investimento, senão seremos obrigados a pôr um fim na área toda”. E, claro, existem alguns critérios para que estes projetos sejam escolhidos, dentre os muitos que a Devir recebe todos os meses, para receberem a devida atenção. “É preciso a gente se divertir jogando. É preciso que o pessoal acredite que o jogo é viável e é preciso que o autor esteja disposto a fazer uma parceria com a Devir”.
Um dos projetos nos quais a Devir acredita e que deve chegar às lojas até a metade do ano que vem é o jogo de cartas Cafundó, criado pelo trio André Estevez, Jonathas Joba e Pedro Ometto. De perfis bastante distintos enquanto jogadores (um com foco em RPG, outro viciado em jogos eletrônicos, o terceiro interessado em jogos modernos de tabuleiro), eles se uniram e formaram a Tamanduá Jogos, desenvolvendo um jogo que conta a história de aventureiros numa floresta tropical em busca de ouro. Nessa busca, os aventureiros se deparam com diversas criaturas do nosso folclore, tanto mitológico quanto urbano-contemporâneo (Nomyston Inventadson, que não achou o nome na latinha de refrigerante, por exemplo). A idéia é ser um jogo com bastante humor, divertido, bem brasileiro e que promova interação entre os jogadores “e muitas risadas”, defendem eles.
O grupo chegou na Devir meio por acaso – já que Joba conheceu, por acaso, Matheus Fink, um dos sócios da Devir, que é “é primo de um amigo dele”. Joba conversou sobre o Cafundó com o Matheus, que se interessou e marcou uma reunião na Devir com o próprio Douglas Quinta Reis. “Fomos lá só com a ideia do que é o jogo (ainda não tínhamos um baralho de teste com aparência boa pra mostrar na época, hehehe), apresentamos a temática e a mecânica de forma resumida e ele topou na hora. Por trazermos algo fora dos temas habituais, explorando a brasilidade e com uma mecânica divertida, ele acreditou no potencial do jogo”, contam os criadores.
Eles explicam ainda que a experiência de jogar Cafundó é muito distinta de card games consagrados como Magic: The Gathering, Pokémon e Yu-Gi-Oh. “Quisemos fazer um jogo mais leve e com humor, que possa atingir um público além do geek, então não acreditamos que seja uma concorrência direta, um substituto, e sim uma nova possibilidade de diversão, também para quem já joga outras coisas, mas principalmente pra quem não joga”. Além disso, contam, o Cafundó não é um jogo de cartas colecionáveis, “você gasta dinheiro uma vez só, ele vem pronto e permite participarem de 3 a 6 jogadores. É claro que pensamos em expansões pro jogo, que poderão ser acrescentadas ao jogo básico, mas elas também serão pacotes completos”.
Eles nem pretendem ficar restritos às lojas do ramo de RPG, jogos e cultura nerd em geral. “A ideia é que Cafundó esteja disponível também em lojas de brinquedo e até em supermercados”.
O CEO da Gazillion, David Brevik, desenvolvedor do MMO de ação online Marvel Heroes 2015, criador dos clássicos Diablo I e II e ex-presidente da Blizzard, foi também diretor criativo do Dungeons and Dragons Online – e, em papo com a gente durante a Comic Con Experience, ele nos contou com exclusividade que nunca acreditou, nem por um minuto, que esta versão web do jogo pudesse sequer ameaçar a sua versão de papel, lápis e dados de vinte lados. “Estes jogos ainda são muito sociais e muito físicos também”, diz.
“Eu continuo jogando D&D com muita frequência – e eu sou o mestre do meu grupo. Gosto de criar itens físicos, reais, para dar aos jogadores. ‘Ah, vocês encontraram uma joia, então tomem, aqui está ela’. E eles colecionam isso e juntam as peças, como num quebra-cabeças. Isso não é algo que se possa fazer num jogo de computador. É uma experiência muito diferente”, finaliza David.