Quando as histórias dos bastidores são tão legais quanto a própria HQ | JUDAO.com.br

A história da dupla Lillo Parra e Jefferson Costa, roteirista e desenhista da obra La Dansarina, consegue encantar tanto quanto o gibi, que se passa em São Paulo, no início dos Século XX

Olha só, não dá pra negar que, num momento como este, com toda a questão dos refugiados sírios tocando o mundo e fazendo os países discutirem a imigração como há muito não se via, a trama de La Dansarina, publicado pelo selo Quadro a Quadro, ganha novo significado, que dá uma cor toda especial a uma trama que já é bastante forte e envolvente.

O gibi, ambientado na capital paulista, conta a história de Petro, um garoto de 12 anos, filho de imigrantes. “Em 1918, o mundo enfrentou uma das piores epidemias da história da humanidade, a Gripe Espanhola, também apelidada de La Dansarina. Petro foi infectado e quase morreu. Nas semanas que passou febril, sua mãe esteve o tempo todo ao seu lado”, conta o roteirista Lillo Parra – que, ao lado do desenhista Jefferson Costa, bateu um papo sensacional com o JUDÃO. “Só que, quando ele acordou, quem estava morta era sua mãe. E ele descobriu isso da pior maneira possível: o corpo dela estava há três dias no pátio do cortiço, a céu aberto, porque o serviço de remoção de corpos da época simplesmente não apareceu”.

O escritor explica que, na época, esta não era uma situação tão surreal assim: eram tempos em que havia mais corpos do que covas e os cemitérios não davam conta de tantos mortos. “E é ali, no pátio do cortiço, ao lado do corpo INSEPULTO de sua mãe, que Petro decide que irá ele mesmo enterrá-la”, revela. “Mas para isso terá que atravessar uma cidade devastada e caótica. É, portanto, a história de um menino comum que se vê envolvido numa situação terrível. Sua viagem e a maneira como vai superando os obstáculos que aparecem são a verdadeira história de La Dansarina”.

A ideia surgiu por volta de 1998/1999, depois que Lillo leu um artigo chamado La Dansarina: a gripe espanhola e o cotidiano na cidade do Rio de Janeiro, da professora Nara Azevedo de Brito, da Fundação Oswaldo Cruz. “O Rio de Janeiro que ela nos mostra é um dos piores cenários que podemos imaginar. Nada funcionava, os corpos apodreciam nas calçadas, a população não tinha esperanças, o governo foi totalmente ineficaz em assistir à população...”

Essa história ficou mais de 15 anos perambulando na cabeça do roteirista, se construindo, se moldando. Na época, ele era ator de teatro e, claro, sua primeira intenção foi fazer daquilo uma peça. Mas nunca aconteceu. “Eu tenho 43 anos e passei 20 deles no teatro”, conta, começando uma OUTRA história que é tão interessante e instigante quanto a de La Dansarina. “Em 2010 decidi dar um tempo dos palcos e aí, pra não ficar parado, criei um blog pra falar de gibi – uma das minhas grandes paixões. A galera curtiu a maneira como eu escrevia, comecei a conhecer pessoas do meio, uma coisa foi levando à outra até que pintou um convite pra trampar com a Editora Nemo”.

Agora, corta pro Jefferson. Que, aos 20 anos de idade, trabalhava na área de... manutenção de aeronaves. Quando fez 21, uma luz se acendeu na cabeça dele. E o cara mudou de vida radicalmente. “Estava decidido a trabalhar com desenho, e logo percebi que narrar, contar histórias com imagens, era o que queria fazer. É o que venho fazendo desde então, de diversas formas”, conta. “Lá se vão outros 16 anos”, incluindo aí trabalhos em Fudêncio e seus Amigos e Megaliga de VJs Paladinos, da saudosa e antiga MTV.

Foi nos bastidores da Nemo é que a dupla se conheceu. Em um de seus trabalhos para a editora, Lillo foi apresentado a Jefferson e ambos trabalharam em A Tempestade, adaptação da obra homônima de William Shakespeare. “Com o projeto já rolando descobrimos que morávamos em bairros vizinhos, o que facilitou bastante as conversas”, diz Lillo. “Fizemos o trampo e no processo ficamos amigos. Logo depois da finalização do álbum, já discutíamos a possibilidade de uma nova parceria, o que nos traz até La Dansarina“. Jefferson completa afirmando que, mais do que roteirista e desenhista, ambos são contadores de histórias narrando juntos o mesmo roteiro. “O Lillo já tinha esse roteiro martelando na cabeça por mais de uma década. Me apresentou uma primeira versão, e a partir daí discutimos tudo juntos até o último instante, antes de ir para a gráfica”.

Lillo explica ainda que sua experiência como ator foi fundamental para a sua imersão no mundo dos roteiros – e para o desenvolvimento de uma obra com uma visão social tão crítica e incisiva como La Dansarina. “Durante 10 anos, fui integrante do Teatro Popular União e Olho Vivo. O Olho Vivo é um grupo que tomou porrada da ditadura, foi perseguido, viveu à margem do show business durante décadas exclusivamente pelas idéias que defendia (e defende até hoje): um teatro popular, feito pelo e para o povo, contando (ou recontando) a história sob o ponto de vista do cidadão comum”. A ideia do grupo é fazer espetáculos encenados na periferia, em associações de bairros, salões de igrejas, praças... “Depois de uma década ali dentro, é impossível sua arte não ser influenciada. (...) Tudo o que está na HQ passa obrigatoriamente pela visão de arte que adquiri nos anos em que fui ator do Olho Vivo”.

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Uma coisa que ele faz questão de deixar clara é que La Dansarina é uma ficção e ponto. “É uma história totalmente inventada, de um menino que atravessa uma cidade devastada pra enterrar sua mãe numa capela da periferia. Essa é a história e ela poderia se passar em qualquer período, seja durante a epidemia de peste negra da Idade Média quanto num hipotético surto de Ebola num futuro não muito distante”. O que ele quer evitar? Que a HQ seja enquadrada como ficção histórica. “Este é um entendimento equivocado de que a trama fala do período histórico através de uma subtrama. E nada poderia estar mais longe da realidade”.

Lillo explica que existe uma diferença gritante entre fazer uma história descrevendo um fato histórico e fazer uma que esteja inserida num fato histórico. “Na primeira situação há um compromisso com a realidade e com os fatos historicamente aceitos. Na segunda o único compromisso é com a história que você está contando, mas não necessariamente com a realidade. E exatamente por se tratar de uma ficção nós tivemos toda a liberdade possível, inclusive com fatos e dados históricos reais. Por exemplo, o presidente eleito Francisco Rodrigues Alves foi infectado e morreu de gripe meses depois, sem sequer assumir o posto. Isso é um fato histórico e nós mostramos isso no gibi. A questão é a maneira como fazemos isso”.

Uma curiosidade interessante é que La Dansarina não foi financiado via crowdfunding como grande parte dos lançamentos relevantes em quadrinhos que temos visto nos últimos anos. A verba partiu da Secretaria de Cultura do Governo do Estado de São Paulo, via ProAC, o chamado Programa de Ação Cultural, que tem editais anualmente para incentivo de projetos em áreas como dança, música, literatura, cinema e quadrinhos. Os beneficiados pelo ProAC devem obrigatoriamente oferecer contrapartidas sociais, na forma, por exemplo, de exibição de espetáculos a preços populares ou gratuitos. No caso de HQs, exemplares devem ser cedidos para bibliotecas e escolas públicas, por exemplo.

“Embora seja bastante antiga, era apenas uma idéia na minha cabeça até eu e o Jeff decidirmos contá-la. Em cerca de 40 dias formatamos o projeto, preparamos as páginas de amostragem que o edital exigia e nos inscrevemos. Deu certo”, conta Lillo. Ele reforça que, por mais que se trate de dinheiro público, não existe qualquer direcionamento editorial por parte da Secretaria de Cultura. “E também nunca soube de algum autor que tivesse enfrentado problemas nesse sentido. Mas é claro que há de se prevalecer o bom senso. O autor que apresenta um projeto no edital não pode ser ingênuo ao ponto de achar que vai produzir um álbum com conceitos racistas, misóginos, homofóbicos ou de doutrinação religiosa e sair impune de uma dessas”.

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O lançamento de La Dansarina dá à dupla tanto orgulho quanto o fato de que a obra faz parte da exposição Quadrinistas Brasileiros, parceria entre o Centro Cultural Brasil Haiti e a AQC – Associação dos Quadrinhistas e Caricaturistas do Estado de São Paulo, aberta até o dia 18 de setembro lá no Haiti. O convite partiu do amigo e também roteirista de quadrinhos André Alonso, curador da exposição. “Esse é um daqueles convites irrecusáveis. Num país onde 70% da população vive em condições deploráveis, onde milhões de pessoas passam o dia com biscoito de barro, recusar um convite desses não é uma opção”, conta Lillo.

A dupla dribla a hipocrisia e não diz coisas como “estamos ajudando a levar cultura a um povo que não tem nada”, que é algo que eles consideram “demagogia barata” porque ainda vai demorar muito tempo pra que a estrutura cultural de um país devastado comece a se reerguer. “Mas a própria existência da exposição já é um passo nesse sentido, pois revela uma preocupação genuína na recuperação do país. Uma nação que foi durante décadas exposta às mais terríveis privações não se recupera da noite pro dia num passe de mágica, mas sim a partir de pequenas iniciativas, através da força de vontade de pessoas honestas e dispostas a reverter um quadro de penúria total”.

A trama sobre a gripe espanhola no Brasil lá pelos idos de 1900 parece mesmo bem legal. Mas a história de um ator de teatro engajado que vira roteirista e de um mecânico de aviões que vira desenhista, fazendo uma HQ que vai parar no Haiti, vai, é tão legal quanto. ;)