Ainda que seja a melhor coisa produzida pela Marvel e Netflix desde Jessica Jones de fato, isso é o de menos.
Eu tinha assistido aos dois primeiros episódios de Justiceiro quando mandei uma mensagem pro nosso querido Thiago Cardim perguntando se ele conseguiria resumir a origem do personagem nos quadrinhos pra mim. Ok, a família dele foi morta. Por quem? A mando de quem?
“Então... Originalmente, e isso talvez seja o motivo do filme com o Thomas Jane não ter funcionado de fato pra mim”, respondeu a mesma pessoa que gostou de Os Defensores, “Castle era um fuzileiro naval fodástico, um cara que resistiu aos horrores da guerra, mas que lá, no campo de batalha, descobriu seu lado negro, um cara que se sentia ‘à vontade’ matando (ainda que não desse pra dizer que se sentia BEM).”
“Ele voltou pra casa, família, muito amor, e aí eles tavam num picnic no Central Park, viram uma execução feita por uma gangue mafiosa. Todo mundo foi baleado pra não sobrarem testemunhas, incluído ele e sua família... Mas ele sobreviveu. Ou seja: a morte da família do Frank não tem rosto, não tem um mandante, não foi POR CAUSA DELE. E por isso a ‘missão’ do Justiceiro não é uma vingança contra ALGUÉM em particular, mas sim contra TODOS os criminosos que vê pela frente. Como alguém já disse nos gibis (não lembro bem quem), a morte da família Castle foi ‘efeito colateral'”.
No universo das séries do Netflix, esse também é o resumo do que fez Frank Castle ajudar o Demolidor a colocar Wilson Fisk na prisão e agora, na sua própria série, o que o faz terminar o trabalho iniciado em 2016. Só que, ao contrário dos quadrinhos, sua vingança agora tem uma cara. Ou pelo menos uma bandeira: os Estados Unidos da América.
É exatamente nesse ponto em que Justiceiro, que estreia nessa sexta (17), consegue ser tão brilhante quanto assustadora. Tão fundamental quanto desnecessária.
Colocando o Exército, a CIA, Homeland Security e “os valores americanos” como os vilões da história, Justiceiro não só transforma um psicopata em um personagem com o qual a gente se importa de alguma maneira (e como deveria ser nesse caso, mesmo) como lida de maneira bastante direta com alguns problemas que atingem em cheio a sociedade, especialmente a americana.
O primeiro, e mais claro, é o tal do transtorno de estresse pós-traumático, do qual praticamente todos os personagens, de uma maneira ou de outra, sofrem. Isso acaba humanizando essas pessoas, nos fazendo NO MÍNIMO sentir algum tipo de empatia por gente como Frank Castle ou Lewis Walcott (brilhantemente interpretado por Daniel Webber), um garoto de 26 anos que só consegue dormir em um bunker cavado dentro da própria casa, no meio do frio de Nova York.
Lewis, aliás, é o protagonista de uma história quase que paralela demais, sobre essa coisa do (des)armamento, que talvez saia como um TIRO PELA CULATRA, especialmente por não ser exatamente muito clara no que quer dizer e porque, bom, a abertura da série é toda baseada em armas que, no fim, formam a caveira-símbolo do personagem. AINDA ASSIM, é interessante, amedrontador de ver o que essas duas coisas podem fazer, quando juntas, e revoltante quando a gente enxerga os motivos pelos quais isso acontece.
As semelhanças não são apenas coincidência.
Assim como Jessica Jones, que é uma série sobre abuso antes de ser uma série “de super-herói”, Justiceiro é, bem à margem do que podemos chamar de MCU, quase totalmente independente, uma série sobre tudo o que a guerra pode causar num ser humano e como ele lida com isso. É necessária uma boa dose de empatia para entender o que as duas querem passar e, no caso de Justiceiro, pra não reclamar que o cara não sai matando todo mundo só porque fez algo ruim e que alguns episódios podem parecer chatos. Eles são, no máximo, lentos. Contemplativos.
Demora, por exemplo, para que Frank Castle volte a ser o Justiceiro que conhecemos — com a caveira no peito e tudo mais.
O problema é que Justiceiro parece seguir a mesma fórmula das outras séries Marvel / Netflix quando o assunto é nos fazer perder o interesse em determinados momentos então há sim uma bela de uma barriga, que quebra completamente o ritmo da história. Nada como Luke Cage, por exemplo, que tem pelo menos cinco episódios a mais; mas um ou dois a menos, baseado em tudo o que vimos, teria deixado Justiceiro mais certinho. Isso e o roteiro que, nossa senhora, como se perde.
Às vezes tem muita história paralela, muitos personagens que aparecem, desaparecem e de repente voltam pra resolver alguma coisa. É um texto bastante mal amarrado no geral, que não justifica muitas coisas, mas que não chega a machucar a série, exatamente. Ela continua interessante, APESAR disso.
Mesmo que Frank Castle não se dê bem com outras pessoas, a química que ele tem com Micro, vivido por Ebon Moss-Bachrach, é maravilhosa. O ator funciona perfeitamente bem como o h4(k3r paranoico, ainda que num momento ele não consiga ver sangue e, em outro, diga que queria ter sido veterinário enquanto aplica pontos num homem machucado... interpretado genialmente bem por Jon Bernthal.
O que o cara fez pelo Justiceiro, personagem, é quase inacreditável. Com poucos movimentos faciais ele muda COMPLETAMENTE uma expressão e transmite, com o olhar, EXATAMENTE o que ele tá sentindo. De medo à raiva pura, nada passa despercebido. NADA. É impressionante o que ele faz.
Dessas séries da Marvel / Netflix, Justiceiro é a que tem as melhores atuações, dignas de prêmios. Jon Bernthal merece alguma coisa no Emmy do ano que vem.
Deborah Ann Woll me fez pela primeira vez achar sua Karen Page realmente interessante e fica claro que o problema nunca foi ela, mas sim a maneira como a personagem foi escrita ou dirigida. O mesmo não vale pra Amber Rose Revah que, como a Agente Dinah Madani, parecia sempre estar segurando alguma coisa em sua atuação.
Mas quem me chamou a atenção mesmo foi Paul Schulze, que interpreta o “Agent Orange”. Que cara sensacionalmente escroto. Você sente por ele o mesmo ódio que Frank Castle sente. A mesma vontade de machucar. É incrível a atuação dele que, embora seja a PERSONIFICAÇÃO do vilão, não é o grande antagonista da história.
Ben Barnes, o Príncipe Caspian, embora em momento algum convença do que quer que ele queira convencer como Billy Russo, não atrapalha em nada. Ele nunca parece ser o grande amigo de Frank Castle, nem o filho da puta que de fato é. Mais uma vítima do transtorno pós-traumático, seria mais um “daqueles” vilões da Marvel, se dessa vez eles não tivessem ido pra um lugar que no máximo encostaram um dedo, com Jessica Jones.
Com Justiceiro, eles foram com os dois pés no peito.
Separando completamente o cinema do que é feito para TV, Justiceiro é de longe a obra mais madura produzida pela Marvel, em diversos sentidos. Sabe exatamente o que quer dizer, pra quem dizer, como dizer... E diz. O timing pode não ser dos melhores, mas não me parece que vai existir um timing bom pra esse tipo de história em algum momento próximo.
Escorrega, eu diria, no que essa dupla de Marvel e Netflix provavelmente exige que seja feito, ainda que dessa vez não tenha rolado aquele lance de contar uma história até o sétimo episódio e, então, depois de um plot twist, contar uma história quase que completamente diferente.
Até por isso, se coloca automaticamente entre as melhores de todas as séries e temporadas e é quase um alívio, depois de tudo o que vimos nos últimos anos, poder dizer que uma nova produção Netflix + Marvel é realmente boa.