Objeto de discussão há alguns anos na União Europeia, diretiva polêmica sobre direitos autorais acabou de ser aprovada no Parlamento Europeu. E tudo isso que você tá ouvindo é real.
E lá estava eu, na virada do século, sem barba na cara, solteiro, nos meus primeiros anos como jornalista especializado em cultura pop, cobrindo toda a treta do Napster, com a indústria do entretenimento já batendo cabeça sobre como lidar com a questão dos direitos autorais na internet. Quase vinte anos depois, aqui estou eu, barba grisalha na cara, casado pela segunda vez e pai de dois filhos, mais de 20 anos de carreira cobrindo cultura pop e AINDA vendo a indústria do entretenimento batendo cabeça sobre como lidar com a questão dos direitos autorais na internet.
A bola da vez se chama, pelo nome completo, de The European Union Directive on Copyright in the Digital Single Market 2016/0280 (em tradução livre, “Diretiva da União Europeia sobre o Mercado Único Digital”), que dá pra ler na íntegra bem aqui. O batismo pomposo diz respeito a um projeto, que já circula no Velho Continente desde 2016, para se limitar a forma pela qual o conteúdo protegido por direitos autorais é compartilhado em plataformas digitais — e isso justamente em um território que, por definição, já é bem mais rigoroso em relação ao assunto do que se pode ver aqui no na América Latina ou mesmo nos Estados Unidos.
Como funcionam estas tais diretivas por lá? Basicamente, estamos falando de uma forma de legislação que traça um objetivo que os países membros devem atingir caso haja uma aprovação final. Se esta diretiva passar, portanto, espera-se que todos os 27 países integrantes do bloco político e econômico (já considerando a saída definitiva do Reino Unido) adequem as suas próprias legislações domésticas para que elas fiquem em linha com os termos da diretiva.
A medida já tinha sido aprovada em Junho pela Comissão de Assuntos Jurídicos do Parlamento Europeu, antes de chegar à votação de fato. Nesta segunda fase, foi rejeitada na primeira votação, que rolou em Julho, mas a proposta acabou sendo de alguma reformulada graças à pressão de muitas partes e então aprovada numa segunda votação que rolou em Setembro, mais especificamente no dia 12, com 438 votos favoráveis e 226 contrários. O que vai rolar, a partir de agora, são negociações informais entre o Parlamento — que funciona quase como a nossa Câmara dos Deputados — e os outros dois órgãos que compõem o bloco, no caso a Comissão Europeia (instituição politicamente independente que representa e defende os interesses da União) e o Conselho Europeu (suprema autoridade política, que por exemplo resolve disputas entre os Estados-membros).
Estas três organizações vão então decidir uma posição formal, a ser novamente apresentada para a Comissão de Assuntos Jurídicos. Fechado o texto final, eis que ele vai para última e definitiva votação no Parlamento, possivelmente em Janeiro de 2019. Foi aprovado? Então os integrantes da União Eurpeia terão até dois anos para adequar suas leis, o que pode gerar significativas variações de país para país.
Mas qual é, na real, a grande treta aqui?
Bom, ainda que, pelo menos NA TEORIA o argumento da defesa dos direitos autorais para quem produz conteúdo soe interessante e bastante justo, sabemos que NA PRÁTICA iniciativas do gênero costumam não funcionar lá muito bem justamente por serem encabeçadas não por quem produz de fato mas sim por associações que costumam representar, um doce pra quem adivinhar, a grande indústria. Neste caso, tamos falando de um processo que inicialmente contava com o apoio de órgãos como a Society of Authors (sindicato de escritores profissionais, ilustradores e tradutores literários), mas aí entrou na roda a Alliance for Intellectual Property and Proponents (coalizão de 20 organizações que incluem a MPA, Motion Picture Association, e a Film Distributors Association) e logo depois, ora ora quem apareceu, gravadoras como a Universal Music Group e a Warner Music Group. ¯\_(ツ)_/¯
Mesmo com a tal revisão atual, dos 17 artigos que compõem a diretiva, alguns deles soam bastante problemáticos. O 12o, por exemplo, propõe a proibição da postagem em redes sociais de fotos e vídeos de uma partida esportiva por qualquer um que não seja o organizador oficial do evento. Tá bom, a discussão a respeito da cobertura por parte da imprensa é um pouco mais complexa e, em tese, não estaria coberta nesta proibição. Mas e se eu fui ao diabo do jogo? Eu paguei pela merda do ingresso, correto? Quando tentar subir no meu perfil do Instagram, um filtro automaticamente vai me proibir?
Aí, a gente pula para o tal Artigo 11, um dos pontos centrais da discussão, que já é outra grande cagada, pois pretende regulamentar a atuação dos chamados agregadores de notícias, como o Google News. A ideia aqui é fazer com que estes tipos de sites paguem pela utilização dos chamados snippets, prévias do conteúdo destes sites, quando eles aparecem nas plataformas. “Os veículos de imprensa precisam obter remuneração justa pelo uso digital de suas publicações por serviços-provedores de informação da sociedade”, afirma o texto da diretiva. Além disso, já que o objetivo seria “incentivar a inovação e apoiar as start-ups“, os eurodeputados excluíram do texto e portanto do âmbito de aplicação “as microempresas e as pequenas plataformas”.
Na prática, estamos falando do pagamento de uma espécie de “licenciamento” do conteúdo para disponibilizar links que contenham o título e pequenos trechos das notícias/matérias. O texto da proposta diz ainda que se forem “meros hyperlinks acompanhados por palavras individuais”, as plataformas agregadoras não precisarão pagar e, em certo momento, torna igualmente uma exceção o uso “legitimamente privado e não-comercial por usuários individuais” — o que já é um alívio. Mas aí fica a dúvida: se estamos falando de um indivíduo, pessoa física, que atende pelo codinome de “influenciador digital”, aquele cara com uma base imensa de seguidores, aí ele poderia ser cobrado?
Além disso, falando especificamente sobre um Google ou Apple News da vida, a partir de quantas palavras podemos considerar um trecho que deva ser submetido a pagamento ou não? Porque, vale lembrar, em 2014, o Google News retirou publicações espanholas de seu serviço e encerrou as atividades no país quando uma medida similar foi adotada na Espanha, obrigando serviços como este a pagarem uma taxa mensal para a Asociación de Editores de Diarios Españoles (AEDE). E pior: a lei não permitia que uma publicação se manifestasse contra a decisão e resolvesse oferecer seu conteúdo de graça. Nada disso.
“Como o Google News não é uma iniciativa feita para ganhar dinheiro (não mostramos nenhuma propaganda no site), esta nova abordagem não é sustentável”, afirmou o Google, em comunicado oficial. “Nós criamos valor real para estas publicações gerando tráfego para os seus sites, o que os ajuda a gerar receita de publicidade”. Embora na época veículos como a prestigiada revista Wired tenham deixado claro, ao noticiar esta decisão, o quanto os agregadores de notícias eram importantes para eles mesmos, dando um pico de audiência quando uma matéria é destacada principalmente na plataforma do Google, José Gabriel González, representante da AEDE, afirmou ao WSJ que apenas 5% do tráfego médio das publicações na Espanha advinham do Google News.
MAAAAAAAAS quando o Google anunciou sua decisão, a AEDE enviou um comunicado aos seus integrantes em tom bastante preocupado, dizendo estar sempre aberta à negociação, ao diálogo, mas sabendo da posição de “domínio” do Google, iria pedir a intervenção das autoridades para proteger os “direitos dos cidadãos”.
No começo de 2015, a AEEPP (Asociación Española de Editoriales de Publicaciones Periódicas) pediu ao instituto NERA um estudo sobre o impacto do acontecido — deixando claro que a ideia teria partido de um pequeno grupo de publishers que argumentavam que os agregadores se beneficiavam dos esforços das publicações sem remunerá-las apropriadamente. O resultado: Queda de mais de 6% nos acessos apenas nos primeiros meses, fazendo com que publicações menores tivessem índices ainda mais drásticos, com quedas acima de 14%. Ou seja, conforme queríamos demonstrar, todo mundo se fode, mas os pequenos / independentes se fodem AINDA MAIS.
Nessa brincadeira, todo mundo se fode. Mas os pequenos e independentes se fodem AINDA MAIS
E então, senhoras e senhores, pulamos para o Artigo 13. Aquele que se tornou sinônimo da própria diretiva e que tem, de fato, sido o alvo das maiores porradas até o momento. “Os serviços online que permitem o compartilhamento de conteúdo e os detentores dos direitos originais devem cooperar para garantir que trabalhos protegidos e não autorizados não estejam disponíveis”, diz a diretiva, sem explicar muito bem do que se trata. Então, a gente explica: basicamente, sites que permitem produção de conteúdo gerado pelo usuário em larga escala, tipo um Twitter, Facebook ou YouTube da vida, devem ser responsabilizados se o conteúdo publicado infringir direitos autorais.
Como fazer isso, minha gente, é que são elas. Porque se você segue a descrição do artigo ao pé da letra, a ideia é que estas novas medidas funcionassem meio como o Content ID do YouTube, sistema de impressão digital desenvolvido pelo Google usado para identificar e gerenciar conteúdo protegido por direitos autorais. Neste caso, no entanto, quando o YouTube encontra uma correspondência, pode rolar uma reinvindicação — ou o vídeo pode ser bloqueado ou então continuar no ar só que sem gerar receita de anúncios para o dono do canal, mas sim pro dono do material com copyright — ou o chamado “strike”, quando o vídeo é tirado do ar.
No caso da diretiva da União Europeia, no entanto, tudo levava a crer, em rigorosamente todas as defesas, que a ideia é que a foto, o vídeo ou o áudio sejam bloqueados ANTES do conteúdo ir ao ar. Inclusive, uma versão anterior do texto da proposta falava em “proporcionar tecnologias de reconhecimento de conteúdo”. A versão mais recente, a que foi aprovada pelo Parlamento, no entanto, foi mudada para “será dada especial atenção aos direitos fundamentais, ao uso de exceções e limitações, bem como à garantia de que os encargos para as PMEs [pequenas e médias empresas] continuem adequados e que o bloqueio automatizado de conteúdo seja evitado”.
No anúncio da notícia mais recente para a imprensa, o Parlamento deixa claro que “qualquer medida tomada pelas plataformas para verificar os uploads não devem impedir a disponibilização de obras ou outro material protegido que não violem os direitos de autor, incluindo as obras e o material protegido abrangidos por uma exceção ou limitação aos direitos de autor”. E complementa dizendo que as plataformas “terão de estabelecer mecanismos de reclamação e recurso CÉLERES e eficazes para os utilizadores, para que estes possam reagir em caso de eliminação injustificada dos seus conteúdos. Qualquer queixa apresentada deve ser processada sem demora injustificada e submetida a controle humano e não a algoritmos”.
Mas se não teremos, portanto, bloqueio automatizado, ele terá que ser POSTERIOR. E pelo texto, ele deve passar por algum tipo de controle/filtro humano, pelo menos em alguma etapa do processo. Imagina o tamanho da estrutura que vai ter que ser criada pra isso? Só que ainda tem um ponto fundamental aqui que foi justamente o que fez o Artigo 13 ser chamado de “meme ban”. Porque não está e muito possivelmente não vai ficar claro em nenhum momento tão próximo o que diabos pode ser considerado um conteúdo protegido por direitos autorais, seja ele analisado por um robô ou por um exército de pessoinhas.
Explico: você, pessoa física, sujeito simples e comum da internet, vai lá subir/usar aquele GIF do Chris Pratt surpreso em Parks & Recreation para responder um amigo. Ou então aquela imagem do Michael Jackson comendo pipoca em Thriller pra dizer que tá ali nos comentários só pra apreciar a treta. Ou quem sabe a imagem da Mônica com o ATA bem grandão na tela do computador, sabe? Pois é. Todas estas são imagens com direitos autorais reservados das quais a internet se apropriou para fazer piada. Se levarmos a diretiva europeia ao pé da letra, tudo isso estaria total e completamente proibido. A eurodeputada Julia Reda, do Partido Pirata da Alemanha, contrária à este projeto, resume bem em seu tweet: “conteúdo perfeitamente legal como paródias & memes serão apanhados no fogo cruzado”.
Quem também se posicionou diretamente contra a iniciativa, mas é claro, foi a galera da CCIA (Computer and Communications Industry Association), influente grupo de lobby da turma do Vale do Silício tipo Google, Facebook, eBay, Amazon e Netflix. No dia 22 de Outubro, a CEO do YouTube, Susan Wojcicki, publicou um textão no qual alerta para os perigos do impacto que a diretiva pode trazer. “Como está hoje, o artigo 13 é uma ameaça para que milhões de pessoas — de criadores profissionais à usuários comuns — continuem a subir conteúdo em plataformas como o YouTube. Se for implementado desta forma, ameaça acabar com centenas de milhares de trabalhos, incluindo o de criadores, artistas e todos que eles empregam”.
Em um segundo artigo, ela ainda reforça sua posição: “a abordagem do Parlamento é pouco realista em muitos casos porque mesmo quem detém os direitos autorais discorda sobre quem é o dono daqueles direitos. Se nem eles concordam, é impossível esperar que plataformas abertas que hospedam estes conteúdos tomem as decisões corretas”.
O deputado alemão Axel Voss, relator da diretiva no Parlamento Europeu, afirma estar satisfeito porque, apesar da “campanha” levada a cabo pelos gigantes da internet, há agora uma maioria na assembleia que apoia a necessidade de “proteger o princípio de uma remuneração justa dos criadores europeus”. Segundo ele, tem havido um debate muito acalorado sobre esta diretiva e o Parlamento ouviu atentamente as preocupações de todos. “Acredito que, depois que a poeira baixar, a internet será tão livre quanto é hoje, criadores e jornalistas receberão uma parcela mais justa das receitas geradas pelas suas obras e perguntaremos porque este barulho todo”. Resumindo? Não, ele não ouviu nada e a maior parte da indústria ainda está tão perdida sobre como lidar com os ambientes digitais como estava na época do Napster. ;)
Nossa liberdade de expressão online é preciosa demais para ser desperdiçada como munição em uma batalha corporativa
Pra quem mora na Europa, fazer graça com o episódio da vez de The Walking Dead e Game of Thrones, por exemplo, é um hábito corriqueiro que pode estar com os dias contados. Porque, conforme dizem diversos estudiosos dos meios digitais, a internet só se tornou o que é hoje por conta da capacidade inata de cocriação de conteúdo e da habilidade de remixar aquilo que vem das fontes oficiais.
“Os advogados olharam para a questão dos direitos autorais por meio de uma lente bastante particular: aquela das grandes companhias de mídia, com seu controle sobre os canais de distribuição diminuindo cada vez mais”, afirmou Reda, em editorial pra Wired com o título pouco sutil de O Artigo 13 vai matar a internet por engano. “O maior espaço público que já inventamos não deve se tornar uma vítima de tentativas de usar a lei de direitos autorais para resolver problemas não causados por ele. Nossa liberdade de expressão online é preciosa demais para ser desperdiçada como munição em uma batalha corporativa”.