As rimas de Sabotage ainda pesam uma tonelada | JUDAO.com.br

Disco póstumo recém-lançado, no qual amigos produziram as faixas inacabadas do rapper de São Paulo, só ajudam a provar a sua importância, tudo que ele foi e o que poderia ser

Se a sua visão do que é rap se baseia na sonoridade cheia de flertes com a MPB e um monte de outros gêneros de caras como Emicida, Criolo, Rashid, Rael e Projota, talvez você se espante ao experimentar escutar Sabotage, o disco póstumo apropriadamente batizado com o nome artístico do rapper paulistano Mauro Mateus dos Santos.

Mesmo com a ESMERADA produção e direção musical dos caras do coletivo Instituto (Tejo Damasceno, Rica Amabis e Daniel Ganjaman), o álbum tem vocais que soam bem mais duros e ríspidos, muito pelo impacto potente de suas letras, puro rap nacional numa pegada mais underground, independente mesmo. É um jeito bem diferente de fazer rap, mais sujo, mais incisivo.

Mas mesmo assim, vejam só, muito provavelmente caras como Emicida, Criolo, Rashid, Rael e Projota talvez nunca tivessem aparecido pro mundo se não fosse pela forte influência do “mestre”, como alguns deles mesmos já chamaram repetidas vezes. Porque Sabotage ouvia os gringos como o Nas e o Wu-Tang Clan, mas também curtia bossa nova, Chico Buarque e Pixinguinha, diferente do que muitos rappers mais tradicionais surgidos na mesma época preferiam escutar. Ele falava em “renovar” estes sons. No fim, Sabotage era aquele rap nacional clássico, tradicional, mas também era já um começo de mistura, um caldeirão musical que ainda começava a borbulhar. Tinha um tempero diferente.

Sabotage era tudo isso. E muito mais.

Como diz o título do primeiro e único álbum de Sabotage, lançado em 1999, o rap é compromisso. E o compromisso de todos os amigos do artista envolvidos nesta obra, produtores e participações especiais, era finalizar as canções inacabadas do que deveria ter sido o seu segundo álbum sem tirar delas o que era a real essência do Maestro do Canão. As vozes gravadas na semana de seu assassinato, em 2003, soam dolorosamente atuais. Demorou 13 anos para ficar pronto? Demorou. Mas, honestamente, dá pra dizer que valeu cada minuto da espera. Discaço, fácil, fácil um dos melhores do ano.

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O álbum abre com Mosquito, que recebe uma densa camada eletrônica graças ao trampo dos caras do Tropkillaz. Mas isso não esconde o que tem que ficar em primeiro plano. Aliás, pelo contrário: torna os versos de Sabotage ainda mais protagonistas, intensos, sombrios. “Catou papel pra viver / Na moral, foi difícil / Depois que o homem inventou o revólver / Todos corremos perigo”, diz ele, rimando ao lado das vozes dos filhos Tamires e Wanderson, que tiveram os direitos autorais do álbum revertidos em seus nomes depois que cada um dos convidados optou por tornar sua participação voluntária.

Superar (“é coisa pra superstar”, brinca o rapper) é forte e truculenta, cheia de graves vibrantes, e traz ainda a participação do americano Shyheim, ligado ao Wu-Tang Clan. Que baita contraste, por exemplo, com o violão quase acústico que embala O Gatilho, que tem musicalização da Céu, ou com o delicioso swing de Maloca é Maré, com Rappin’ Hood metendo um sambinha daqueles clássicos, pé de morro, do jeito que ele sempre curtiu.

Por tudo que aconteceu, por ser um disco lançado depois de sua morte, por sua trajetória de superação saindo de uma vida no crime e se encontrando na música, algumas faixas ganham contornos ainda mais emocionais porque ajudam a contar a história de Sabotage. Canão Foi Tão Bom, é linda, emocionante, do tipo que pega na veia, enquanto o cantor vai falando sobre as lembranças de seu passado e sobre o carinho que ainda tem pelo bairro no qual cresceu.

Gravada um dia antes do rapper morrer, Quem Viver Verá, chamada em outras ocasiões pelo nome de trabalho Favela é Um Bom Lugar, ficou ainda mais forte em sua celebração ao cotidiano de luta de quem mora na periferia – e todo o preconceito que isso traz – por ter as batidas do DJ Cia, do RZO, que trabalhou vigorosos e certeiros samples de metais, e vocais adicionais de Dexter. “Aí, Sabota, tamo junto e vamos além / tamo em campo e este jogo vai virar / Não duvide, quem viver verá”, diz o ex 509-E para o saudoso amigo.

Talvez a faixa mais forte deste Sabotage, o disco, no entanto, seja justamente a mais longa. País da Fome: Homens Animais é uma espécie de continuação direta de País da Fome, de seu disco de estreia. Também produzida por Cia, originalmente ela não tinha refrão, mas ganhou inserções de noticiários reais sobre a morte de Sabotage (“ele estava encontrando a redenção na vida através da arte”, diz um deles) enquanto o próprio vocalista fala das pessoas que já se foram, dos amigos, dos familiares, da própria mãe.

É uma espécie de despedida do rapper para aqueles que ele jamais teve a chance de dizer adeus da forma mais apropriada. “O medo não é mesmo o lugar perfeito para guardar as horas”. Não é. Nunca foi.

País da Fome também é, no fim das contas, um pouco a nossa despedida do Sabotage

Ao lados dos camaradas do Racionais MCs, dá pra dizer que Sabotage é de longe um dos nomes mais influentes do rap brasileiro. Foi embora cedo demais, ainda tinha muito a produzir, muito a dizer, muitos PETARDOS SONOROS para disparar. A música da Nação Zumbi fala sobre o “maracatu que pesa uma tonelada”. Pois bem. O rap do Sabotage também pesa uma tonelada. E ainda tinha potencial pra pesar bem mais.

Que esta última tonelada de rap ajude a aliviar a dor e as saudades. E a plantar as sementes de mais uma nova geração de caras que tenham muitas rimas pra fazer.