Sobre linguagem, cores e filmes | JUDAO.com.br

Tropa de Elite. Osso duro de roer. Pega um pega geral. Também pegou você.

A cabeça da gente funciona de umas maneiras bem incríveis, né? Pra você ter ideia, existem estudos que mostram que a cor azul talvez não existisse até um tempo atrás.

William Gladstone, pesquisador e político, chamou atenção para o fato de que a cor azul não é mencionada nenhuma vez em toda a Ilíada, clássico de Homero. O mar é descrito como tendo uma “cor de vinho escuro” e coisas mais estranhas. Um filólogo chamado Lazarus Geiger deu um passo a mais e notou que a palavra “azul” não consta em escritos antigos chineses, hebreus, islandeses, hindus e árabes.

Estudos mais singulares, um do psicólogo Jules Davidoff e outro do MIT, encontraram o que pode ser uma daquelas explicações que só ajudam a deixar a história mais bizarra. Descobriram que povos cujas línguas não têm a palavra azul em seu vocabulário também têm dificuldade para vê-la... ou ignoram completamente a existência da cor, confundindo-a com verde. E o inverso é verdadeiro: quanto mais termos diferentes para determinadas cores, mais variedades delas são facilmente reconhecidas.

Segundo esses estudos, de certa forma, a existência da linguagem que expressa determinada coisa rege como o nosso cérebro a compreende. Parece que nós não vemos aquilo que não temos linguagem para entender. De uma forma semelhante, por exemplo, psicólogos que tratam crianças conseguem mudar a maneira com a qual elas lidam com emoções extremas simplesmente ensinando palavras que expressam essas emoções.

Linguagem está intrinsecamente ligada ao entendimento. Às vezes você vê surgir um imenso monstro na cabeça de alguém, ou quem sabe na sua própria, e você nem sabe como ele chegou ali. Quem sofre de alguma forma de depressão entende bem do que eu estou falando e a qual monstro me refiro. E uma das maneiras de curar essas mazelas é o ensino de linguagem para compreender e expressar o que nosso cérebro faz com a gente.

Quem está surpreso com as diversas maneiras de pensar que pipocaram nos últimos meses de 2018 e entraram em full force em 2019 também sabem de outro monstro que vimos crescer. Cérebro, compreensão e entendimento são verbetes dos quais temos muita saudade, aliás.

Nem todo mundo achou novidade, pode-se dizer assim, a maneira com a qual a sociedade brasileira abraçou certos aspectos extremos da política e como isso desdobrou o comportamento em sociedade — o mau comportamento. A gente sabe o que estava ali, embaixo da pele, nos nossos porões. A gente se conhece. Mas a ferocidade, a amplitude, ou até mesmo a popularização de um estilo de pensar, ainda que ali, na moita, não pareciam serem tão intensas, tão drásticas. Todo mundo tem um amigo que “saiu da toca”, e com o qual agora não é mais capaz de conversar. Jantares de família viraram uma via crucis. Cheguei a ouvir de duas amigas minhas que mudaram planos (uma delas vai mudar de país) por causa de medo de violência que poderiam sofrer por conta de simplesmente namorarem mulheres.

Para uma nação que quer tanto se livrar do vermelho, está todo mundo com muito sangue nos olhos. E quem sabe esta é uma cor que não necessariamente estava na visão do povo até certo tempo atrás? Talvez nossos conterrâneos precisassem aprender uma linguagem. E quem melhor do que a cultura pop para capitanear esse ensino?

Tem uma lenda, dita por aí nos cantos da internet, que ouvi pela primeira vez quase uma década atrás, da boca de um professor de roteiro. Essa lenda conta sobre a criação de um de nossos mais celebrados anti-heróis, e de como essa criação foi quase um acidente. Conta também muito sobre como funciona o processo de Cinema, com C maiúsculo, que precisa de muito esforço, muita cabeça, muitas ideias e muita colaboração. E talvez por que o milagre da montagem seja, na minha opinião, a parte mais importante do processo todo.

Durante a edição do filme Tropa de Elite, Daniel Rezende, o editor, junto com o diretor, José Padilha, perceberam um problema. Nesta altura da criação do filme, o protagonista do filme era Matias, papel de André Ramiro. Mas algo estava emperrando o flow da narrativa. O ritmo das cenas. Algo não estava encaixando. E o fato de que a atuação de Wagner Moura devorava todo mundo que estava em cena, incluindo o protagonista, não ajudava em nada.

Alguém teve uma ideia. Chamaram o roteirista do filme, Bráulio Mantovani, chamaram Wagner Moura, e gravaram as locuções que recheiam o filme (e que viraram assinatura do diretor em outros projetos, vide Narcos). Remontaram o filme, usando cenas que tinham ficado de fora. O protagonismo mudou: o personagem principal não era mais um aspirante a um batalhão especial da polícia, com o público questionando se ele irá ou não se corromper com toda aquela violência e morte de inocentes (você percebeu que os heróis do filme matam inocentes em alguns momentos do filme, certo?).

Agora a história era daquele que se tornaria a lenda, o Capitão Nascimento. E sua missão era achar um substituto.

No roteiro original, segundo a lenda, o Capitão Nascimento era o vilão do filme. Um vilão não é, necessariamente, só um antagonista. Muitos antagonistas são somente rivais. Um vilão é um personagem que se opõe moralmente aos ideais daquele que é o herói. A ideia original, aparentemente, era um filme no qual veríamos um protagonista idealista tendo seus ideais apodrecidos pela exposição à um personagem imponente, que ao mesmo tempo que é impiedoso e fatalista, também é cativante.

Não há 100% de certeza sobre quais partes dessa lenda são totalmente reais. Mas podemos inferir algumas coisas, em especial por conta do começo de Tropa de Elite 2 – O Inimigo Agora é Outro. Temos uma cena rápida, desconectada do plot principal da história, na qual a locução do Capitão Nascimento anula a jornada do primeiro filme. A promoção de Matias deu errado e Nascimento precisou voltar a ser capitão. Simples assim.

Voltamos praticamente à estaca zero desse personagem. Então o segundo filme bota nosso anti-herói numa outra jornada, ao longo da qual ele entende que o problema do crime e da violência não vai ser resolvido com bala, carranca e contagem de corpos. Ele precisa implodir os sistemas por dentro. O filme termina com uma das imagens mais impactantes e significativas, usando nossos símbolos nacionais num nível sintático que nos acostumamos muito mais a ver no cinema americano.

Mas o que todo mundo lembra sobre o Capitão Nascimento é daquele déspota “bacana”, criador de frases de efeito, com um senso de justiça bastante fascista. Quase ninguém, em termos da amplitude do público viral, ao ver a versão final do primeiro filme, percebeu que a linha de pensamento do novo protagonista era problemática. Nascimento ganhou fãs, que estavam satisfeitos em ver certos pensamentos obscuros serem autenticados por uma figura fictícia, mas muito macho. Fãs que só queriam aprender o lugar certo de enfiar a faca.

Nos Estados Unidos, um governo que, abertamente, acenou de maneira amistosa para os grupos de extrema direita e supremacia branca tirou da toca um monte de maluco que estava só cultivando o ódio. Daí a gente viu o que rolou em Charlottesville.

Aqui, tomadas as devidas proporções, talvez faltasse essa peça do quebra-cabeça. Faltava o povo aprender uma linguagem. Porque assim que aprenderam, começaram a enxergar novas cores, novas formas, novas emoções. Novas formas de enquadrar o desgosto com política e corrupção que mina o país há meio milênio. E aí ficou uma larva no coloquialismo da cultura pop que tanto amamos. Ficou lá, na conta do Papa. E hoje vimos como eclodiu.

Linguagem é uma coisa forte. Ela pode criar lendas e derrubar impérios. E Cinema é uma coisa tão poderosa que ele pode até ser proibido. De maneira nenhuma quero apontar dedos e dizer que um ou outro artista é responsável pela onda de extremismo, de ignorância, de desapego pelos fatos e de “complexo de messias” que invadiu o nosso território intelectual. Esse tipo de coisa dificilmente pode ser prevista e a história vai julgar muito melhor do que nós.

É só mais uma daquelas intermitências do tempo e da evolução da nação. Você dá expressão ao povo e agora o povo se expressa de uma maneira imprevisível. E o ônus pertence a todos nós, porque o Brasil não vai embora. Não vai a lugar nenhum.

Brasil esse, que curiosamente, também tem seu nome tirado de uma cor. AQUELA. Mas quem teria ensinado para nós o significado dessas palavras?