Como parte do processo de emcimadamurização da Marvel Comics, o novo editor-chefe da Casa das Ideias resolveu colocar panos quentes no assunto de um jeito que acalma a galera do ComicsGate e vai contra todo o legado da editora
O ano era 2015. E lá estávamos nós, encerrando mais uma temporada do ASTERISCO, que nem ASTERISCO era ainda, discutindo, ora vejam vocês, a relação entre política e cultura pop. E cá estamos nós, TRÊS FUCKING ANOS depois, ainda sendo obrigados a falar sobre isso porque, né, a quantidade de gente que insiste no discurso “deixem a política fora dos meus filmes / gibis / músicas / séries / joguinhos” só aumentou, inacreditavelmente, de lá pra cá.
“O homem é naturalmente um animal político”, já dizia Aristóteles. E a definição dele faz sentido, já que o termo vem originalmente de “politeía”, uma denominação relativa a todos os procedimentos da pólis, a tradicional cidade-estado grega. Portanto, era algo que dizia respeito a tudo que os cercava enquanto sociedade, comunidade, coletividade. Política é uma parada que tá ao nosso redor o tempo todo, que afeta a nossa vida e que, durante muito tempo, resolvemos que era “chato” ou “complicado” discutir e deu no que deu.
O fato é que a cultura pop é um espelho do mundo. E como abrir esta janela pra ver o que tá rolando lá fora e não deixar a política entrar? Pois é. E aí me vem o principal porta-voz de uma das maiores editoras de quadrinhos do planeta e manda um “não podemos ir muito fundo na política”.
Durante a edição deste ano da TerrifiCon, o novo editor-chefe da Marvel Comics, C.B. Cebulski, participou de um painel (que dá pra ouvir todinho aqui) com os roteiristas Nick Spencer e Charles Soule, além do repórter John Siuntres, falando sobre o futuro da empresa. E aí uma pessoa da plateia perguntou, dado o histórico da editora, que tipo de mensagem eles pretendem passar para os leitores de hoje justamente no tipo de mundo que estamos vivendo. E aí que veio ESTA resposta, diretamente do Cebulski. A coisa do “não podemos ir muito fundo na política”. WTF?
“A Marvel sempre foi, como Stan [Lee] sempre disse, o mundo fora de nossa janela. É o reflexo dos tempos modernos em que vivemos. A Marvel nunca se esquivou disso, do que aconteceu com o 11 de Setembro ou o que estávamos fazendo com Império Secreto. E vamos continuar essa tradição”, começou dizendo ele, prometendo até que teremos alguns lançamentos futuros na Casa das Ideias que vão refletir as coisas que estão acontecendo no mundo real. Só que... “No entanto, uma das coisas que quero ter certeza é, quando contamos essas histórias – não sei como colocar isso da forma correta – elas ainda precisam ser entretenimento. Se quisermos ver o mundo real, podemos ligar a CNN, podemos ligar a TV, podemos pegar um jornal e ver o que está acontecendo lá. E sim, é nossa responsabilidade como editores de histórias em quadrinhos, especialmente a Marvel, considerando a história que temos, para refletir esses momentos, eles ainda precisam ser divertidos”.
Ninguém aqui tá dizendo pra tirar o aspecto “diversão” da coisa, mas não se posicionar, querer aplicar este rótulo de “é só ficção”, é um pecado
Cebulski afirmou que os personagens podem tomar partido, escolher lados, virar o mal, voltar para o bem, mas ainda precisam cumprir primordialmente a função de entreter. “Antes de mais nada, não importa quais eventos do mundo real vamos refletir, eles serão ficção e eles terão o estilo clássico que Stan sempre trouxe para eles. Eles serão sérios, mas podem fazer você sorrir”.
Então, parece meio ÓBVIO que gibis são entretenimento. Que cultura pop é diversão, que uma HQ do Homem-Aranha não equivale a um programa jornalístico da BBC... mas sabemos MUITO BEM que não são raras as vezes que a literatura e mesmo os quadrinhos flertam com o menino jornalismo, com resultados quase sempre brilhantes. Ninguém aqui tá falando que é pra tirar o aspecto “diversão” da coisa toda, mas não se posicionar, querer aplicar o tempo todo este rótulo de “ah, calma, é tudo ficção”, é um pecado. Aliás, mais do que isso, é fechar os olhos e não enxergar passado e presente da própria editora na qual ele trabalha.
É o Cebulski deixando de lembrar que o Capitão América socava a cara dos nazistas e do próprio Hitler em plenos anos 40, que os X-Men já falavam franca e abertamente de direitos civis nos anos 60, deixando de sacar que um novo mundo pede um novo Pantera Negra e eles foram buscá-lo justamente na pena de um cara como Ta-Nehisi Coates, que o Homem de Gelo se revelar gay é igualmente uma decisão política tanto quanto abordar o #BlackLivesMatter pela ótica de Miles Morales ou a nova Miss Marvel ser uma garota muçulmana.
Isso é a Marvel. Assim como é também Star Wars, Star Trek, o punk rock, The Handmaid’s Tale, Senhor dos Anéis e Game of Thrones.
No fim, todavia, até que faz sentido ouvir o Cebulski dizer uma parada assim, como parte de um grande processo de bundamolização que a editora vem sofrendo, querendo ficar tranquilinha ali em cima do muro, apostando pra caralho em diversidade de um lado enquanto muda a cronologia recente pra colocar personagens como Riri Williams e o Falcão à parte tentando dizer ao Comic Book Guy comum que ele não precisa mais se preocupar, o mundo continua exatamente como ele conhecia. Diversidade vira uma coisa À PARTE. Não misturamo com os clássicos. Tá tudo bem pra todo mundo, gregos e troianos, eles não arrumam briga e ficam ali cima do muro.
A merda é que um Cebulski da vida parece não entender que este discurso só reforça o posicionamento do chamado ComicsGate, aquele mesmo grupo de sujeitos que dizem estar “preocupados com a atual qualidade das histórias em quadrinhos”, afirmando que uma série de artistas estão sendo contratados apenas para cumprir cotas e não têm talento de fato, que não fazem histórias de alto nível e que estariam sendo responsáveis pela “feminilização de homens, masculinização de mulheres” e outras paradas que, sério, dá vontade de bater a cabeça na parede só de ler.
Sim. ESTES CARAS.
Os mesmos caras que atacaram publicamente a Chelsea Cain naquele episódio da camiseta Ask Me About My Feminist Agenda, da Harpia. E que também atacaram Heather Antos e demais autoras que homenageavam Flo Steinberg no infame caso do milkshake. E que muito provavelmente são o mesmo naipe de cara que, no último episódio da terceira temporada de Preacher, ficaram emputecidos ao descobrir que um dos nazistas usava um boné vermelho da “grife” Make America Great Again.
“Não dava pra vocês deixarem política de fora da série? Agora eu vou ter que dizer adeus ao Preacher“, escreveu um. “Acho que não vou mais dar uma chance nem pra esta e nem pra próxima temporada de Preacher“, mandou outro. Gozado que estamos falando de um programa de TV inspirado em uma série de quadrinhos que tem um arco tão poderoso quanto Salvation, aquele no qual os supremacistas brancos da Klu Klux Klan, aqueles mesmos que voltaram à tona com força total no atual governo americano, são ridicularizados por Jesse Custer em pessoa.
“Nunca imaginamos que ter o Hitler na série seria tão relevante assim”, disse o produtor, Seth Rogen, durante o painel deste ano na San Diego Comic-Con. “Eu queria que não fosse. Quando fizemos isso pela 1a vez, foi algo como ‘isso é loucura’. Mas agora é algo como ‘eita, tem muita coisa que podemos dizer’ porque o Hitler faz parte do show”.
ISSO é se posicionar. ISSO é não ficar em cima do muro. E isso quer dizer que Preacher é uma série menos divertida do que poderia / deveria? Mas é CLARO que não.
Se colocar deste jeito em cima do muro, como o editor-chefe da Marvel Comics fez, é não apenas dar ouvidos ao que estes imbecis têm a dizer, mas também dar a eles um bom punhado de razão. E isso, NUMA BOA, é algo que ninguém, em qualquer espectro da cultura pop, deveria querer.
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