Sobre respeitar o passado sem deixar de olhar para o futuro | JUDAO.com.br

DEZOITO anos depois de seu último álbum, o Faith No More lança Sol Invictus, verdadeiro marco em sua discografia e a prova de que as bandas clássicas não precisam viver apegadas apenas aos seus velhos hits

Sabe, eu tenho um grande amigo que afirma categoricamente que não escuta nada que foi lançado depois da década de 1990. Sério. Nem um único disco. Isso não significa apenas que ele não tem qualquer paciência para garimpar e conhecer novas bandas nascidas nos anos 2000, mas também evita a todo custo os discos mais recentes que quaisquer uma das bandas clássicas que tanto adora andaram lançando nos últimos anos. Iron Maiden, Metallica, Megadeth, Sepultura... Nada.

A gente já discutiu um monte porque, vou ser honesto, sou do tipo que tem a maior preguiça dessa galera que se agarra de maneira quase obsessiva ao passado. Isso vale não só pra música, mas também pra filmes, séries de TV, quadrinhos, a coisa toda. “Ah, porque no meu tempo era melhor”. Putz. Se tranca no seu porão com seus discos velhos e gibis empoeirados e fica lá pra sempre, então, porque o mundo continua andando pra frente.

Sobre não conhecer bandas novas (spoiler: sim, elas existem E AOS MONTES), fico com a opinião de Dee Snider, frontman do Twisted Sister que, ao refutar a frase de Gene Simmons (Kiss) sobre o rock estar finalmente morto, disse que o rock está vivo e saudável, prosperando nas mídias sociais. “As bandas tocando são ainda mais genuínas e com mais sentimentos, porque estão lá por uma única razão: o amor ao rock”. Não custa procurar. Juro que você vai encontrar facilmente um grupo de moleques dispostos a quebrar tudo com guitarra, baixo e bateria.

Mas a respeito de não se dar ao trabalho de escutar o que andam lançando as bandas das antigas, isso acaba impedindo que este meu mano tenha acesso a pequenas pérolas de brilho intenso como Sol Invictus, o recém-lançado álbum de estúdio do Faith No More, o primeiro em nada menos do que 18 FUCKING ANOS, sucessor de Album of The Year (1997). E, fazendo conexão direta com seu disco anterior, estamos diante de um dos melhores álbuns do ano, fácil, fácil. Aliás, sem exagero, é também um dos itens mais fortes e consistentes de sua discografia, incluindo aí os álbuns clássicos. Quer saber o mais legal? Sol Invictus não tem um pingo de nostalgia barata. Ainda bem.

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“A turnê de reunião foi muito legal, mas agora está na hora de ficar um pouco mais criativo”, anunciou no Twitter, em tom misterioso, o sempre explosivo vocalista Mike Patton, quando a banda começou a dar indícios de que estaria gravando um novo disco de inéditas. E a verdade é que, desde que os caras retomaram as atividades em 2009, depois de uma separação que durou 11 anos, eu estava achando estranho que este bando de camaradas de criatividade inquieta não fossem criar nada de novo. E quando eu digo “novo”, entenda “novo” mesmo. Sol Invictus não tem nem sombra do Faith No More moleque, de bermudão e cabelos desgrenhados, com baixo de groove/funk metal tremendo as bases. É um disco maduro, sombrio, intenso. Menos agressivo. Mas ainda assim pesado, surpreendente, inesperado: nada aqui é óbvio, é tudo bastante experimental, cheio de quebradas, viradas. É um disco estranho, esquisito até.

Como aliás, bem se espera do Faith No More, né? :)

O excêntrico Patton, aliás, está em um dos seus melhores momentos aqui, com uma versatilidade que chega a dar gosto. Ele pode pode cantar de maneira grave como na faixa-título, emulando uma espécie de crooner satânico; pode sussurrar de maneira macabra e sinistra como em Separation Anxiety; pode soltar a agressividade roqueira como em Superhero; pode berrar com toda a força de seus pulmões como na sensacional Cone of Shame (uma das melhores do CD, tranquilamente); e pode até declamar o refrão pouco sutil de Motherfucker como se estivesse cantando orgulhoso o hino dos EUA. E, rapaz, dá tudo certo. Tudo. Sempre.

Insisto na minha defesa habitual: este cara é uma das vozes mais incríveis do rock contemporâneo e merecia muito mais reconhecimento do que tem nos dias de hoje.

Dustin Rabin Photography, Faith No More, FNM, Dustin Rabin

Embora sejam uma raridade, os caras do Faith No More não são a única banda clássica que evita a armadilha fácil de se apegar aos hits antigos, regravando o mesmo disco ano após ano. Vamos para a Suécia, por exemplo, onde encontramos o quinteto conhecido como Europe. É sim, eles mesmos, do clássico farofa absoluto The Final Countdown e o seu indefectível teclado que representa todos os excessos musicais dos anos 1980. Depois de um hiato que começou em 1992, os caras se reuniram em 2003 e se mantém juntos até hoje. Já gravaram nada menos do que cinco discos desde o retorno. Ah, você esperava que eles marcassem esta volta gravando aquele rock descompromissado e divertido com cheiro de laquê, né? Engana-se, meu caro.

Vou retomar as palavras de um sábio (no caso, eu mesmo), ditas à época do lançamento de Secret Society, de 2006, um dos meus discos favoritos de todos os tempos, sem exagero: “Para entender do que se trata este Europe de cara nova, tente misturar o peso e a personalidade do hard europeu de grupos como Pink Cream 69; as boas letras, a pegada e a crueza de um U2 em começo de carreira, quando Bono Vox ainda não estava preocupado em salvar o mundo; e a modernidade sonora, sem frescuras ou invencionices baratas, de um Audioslave da vida”. Sacou? ;)

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O Europe também colocou disco novo na rua este ano, War Of Kings, um petardo que mistura este sabor de modernidade com um tempero de rock setentista. É, isso mesmo: o Europe deixa de lado a década de seu ápice e volta ainda mais em suas referências, fazendo ecos de Led Zeppelin em canções lindíssimas como The Second Day e a vibrante Nothin To Ya. Eles poderiam estar fazendo o mesmo tipo de sonoridade hair metal que os consagrou e enchendo o rabo de dinheiro tocando para hordas de nostálgicos? Podiam. Divertidão, né? Mas preferiram se desafiar. E desafiar os nossos ouvidos.

Coisa que uma banda como os alemães do Scorpions preferiram não fazer. E como me dói dizer isso daquela que, outrora, foi uma banda que integrou o meu top 10 de todos os tempos. Em 2010, os roqueiros germânicos anunciaram a sua turnê de despedida dos palcos – truque velho e mal-acabado que já foi usado por dezenas de outros combos roqueiros nos últimos anos, do Kiss ao Judas Priest. Obviamente que não se aposentaram. Aliás, lançaram dois discos desde esta data: Sting in the Tail (2010) e o recente Return to Forever (2015). Vou propositalmente desconsiderar desta história toda o vergonhoso Comeblack (2011), que só trazia regravações sem graça de suas próprias canções e uns poucos covers executados com qualidade duvidosa.

Return to Forever, deste ano, é o exemplo típico: retrato de uma banda sentada confortavelmente em berço esplêndido, gravando um disco genérico, apegado às fórmulas que os transformaram em sucesso. As canções não são ruins, veja. E Klaus Meine, a exemplo de Mike Patton, também está com o gogó dourado em excelente forma. Mas, em nome de Odin, estamos falando de faixas óbvias que caberiam como aquelas músicas medianas, das quais ninguém se lembra, em qualquer outro disco dos Scorpions. É um looping sem fim, uma eterna celebração ao seu próprio passado... e vinda justamente de uma banda que foi capaz de gravar Humanity: Hour I, de 2007, este sim um passo à frente na carreira do grupo. É um disco que inova, que surpreende, que tem coragem de misturar influências diversas, das pitadas de eletrônico ao groove do new metal (não caia da cadeira, eu escrevi isso mesmo e nem fiz o sinal da cruz).

Mas não. Pouco mais de três anos depois, e lá estão eles com Sting in the Tail e uma tentativa de fazer uma nova Big City Nights ou Rock You Like A Hurricane. Que preguiça.

Talvez o exemplo mais emblemático de banda clássica que não consegue se livrar das correntes, no entanto, esteja em outro grupo que também lançou material novo este ano – mas que, não necessariamente, é um material “inédito”. Trata-se do Whitesnake, responsável pela vergonha alheia que foi batizada de The Purple Album. Olha, antes de mais nada, trata-se de um disco errado já a partir do conceito: nada tenho contra discos de covers. Tem alguns, inclusive, que são ótimos. Mas aqui, temos o Whitesnake fazendo versões das músicas do Deep Purple da época em que o vocalista era David Coverdale...que é o vocalista AND dono do Whitesnake.

Ou seja: é Coverdale em busca de um pedação de sua própria nostalgia e admitindo que o Whitesnake não é uma banda. É apenas o seu brinquedo, o seu projeto. Ele É o Whitesnake, o que seja a ser ridículo pensar depois de lembrar da quantidade de formações inesquecíveis que a banda teve. E como não conseguiu chegar a um acordo com Ritchie Blackmore, guitarrista e seu parceiro de Purple naquela época, para uma turnê nostálgica comemorando as canções desta formação, então ele vai lá e regrava com a sua própria “banda”. Que tem capacidade mais do que suficiente para compor alguma coisa inédita ao invés de ficar se masturbando para um passado de glórias.

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Se ainda fosse bem executado, todavia, eu poderia até considerar tentar perdoar este The Purple Album. Mas o resultado chega a dar pena. Talvez apenas Soldier of Fortune tenha ganhado uma roupagem minimamente interessante e delicada. O restante é sofrível. Burn e Stormbringer, os dois maiores hits do chamado Mark III do Purple, perderam mais da metade da força, com uma guitarra fragilizada e sem corpo, sem brilho. Por mim, podiam ir lá e mudar a música inteira, fazer do jeito deles. Mas o lance é que tentaram ser reverentes demais às músicas originais, adaptando-as apenas para a atual realidade da voz de Coverdale.

Sim. Diferente de Patton e Meine, o cantor se expõe de maneira desnecessária, enchendo a voz de efeitos sonoros e eletrônicos para tentar convencer alguém de que ainda dá conta. Mas não consegue. Porque não dá mais conta. Quem viu o Whitesnake ao vivo recentemente sabe exatamente do que estou falando. O grande segredo, num caso como este, é saber qual é a hora certa de parar. Se não quer parar, tá bom. Então se adapte. Entenda as suas limitações. Admita que envelheceu.

Recentemente, o cantor Lucas Silveira, da banda Fresno, deu uma entrevista para a Billboard Brasil na qual dizia: “A banda que não envelhece com seu público, fracassa”. Isso vem justamente de um grupo que, recentemente, rasgou o rótulo de emo, pisou em cima e entregou alguns dos trabalhos mais honestos, inteligentes e inspirados de sua trajetória de 15 anos. Lucas, cara, você não poderia estar mais certo. E pelos DOIS lados.

Estas bandas que se recusam a envelhecer, que se recusam a amadurecer, a experimentar alguma direção sonora que as leve para frente, estão seguindo rigorosamente os anseios do seu público. Que não quer envelhecer. Que está satisfeito com aquelas mesmas músicas de sempre.

Honestamente, nesta parada toda, nem tem certos ou errados, como em tudo no mundo da cultura pop. Tem o que você escolhe como certo pra você. O meu amigo que só curte as velharias e se recusa a ouvir qualquer coisa nova, putz, provavelmente amaria estes “novos” dos Scorpions e do Whitesnake.

Eu, no meu caso, fico com o Europe e, principalmente, com o Faith No More. E já tô feliz. Porque consigo muito bem curtir o passado. Ele está lá, ao meu alcance, para ser ouvido quando eu quiser, a um play de distância. Mas isso não me impede de experimentar o futuro. E diacho, ele é bem saboroso.