Spielberg não é contra o Netflix, é a favor do cinema | JUDAO.com.br

Quando o diretor diz que filmes do serviço de streaming não deveriam concorrer ao Oscar, ele na real tá defendendo a arte que ele domina tão bem e demonstrando conhecer exatamente os problemas de Hollywood hoje em dia

“Uma vez que você se compromete com o formato da TV, você é um filme de TV. Certamente, se é um bom show, merece um Emmy, mas não um Oscar. Eu não acredito que filmes que ganham qualificações simbólicas em uns cinemas por menos de uma semana deveriam poder ser indicados a um Oscar”.

Quem disse isso foi o maior contador de histórias através de imagens que a humanidade já conheceu, Steven Spielberg e, portanto, eu e você deveríamos simplesmente abaixar nossas cabeças e aceitar a verdade — até porque ele tá certo. Se um filme é pensado como TV, ele é TV. É uma matemática realmente simples.

A questão aqui, porém, vai além de Netflix ou quaisquer outros serviços de streaming que produzem filmes poderem indicar suas produções ao Oscar e esbarra em algo que nós já falamos aqui no JUDAO.com.br recentemente: precisam deixar o cinema ser cinema.

Vamos voltar a usar Aniquilação como exemplo. “Nós fizemos o filme para a tela grande”, disse o diretor Alex Garland ao Metro. “Há muita coisa que eu poderia ter feito diferente. Teria filmado literalmente de outra maneira, um outro processo, se era isso que estavam querendo”. Em outras palavras, Aniquilação foi um filme feito para o cinema mas, por conta de um medo até que justificável de que o resultado nas bilheterias não fosse dos melhores, a Paramount resolveu que, tirando EUA e China, o mundo deveria assistí-lo na TV. Ou no computador. Ou no tablet. Ou no celular.

Não no cinema.

“Por um lado é legal e sensacional que esses serviços estejam dando às pessoas espaço para fazer coisas realmente originais, provocativas e desafiadoras”, continuou Garland, que se disse decepcionado com a decisão do estúdio, ao mesmo tempo que entende as vantagens de um lançamento nesse formato... assim como Spielberg.

Na mesma entrevista, dada ao ITV News, em que afirmou que os filmes “de TV” não deveriam concorrer com filmes “de cinema”, o diretor mostrou saber exatamente que o problema não é o Netflix, a Amazon, o Hulu ou o que for. “É um desafio ao cinema, da mesma maneira que a TV no início dos anos 1950 tirou as pessoas das salas de cinema. Hollywood tá acostumada com isso. Nós estamos acostumados a ser muito competitivos com a TV. A diferença hoje é que muitos dos estúdios preferem apenas fazer grandes filmes de sucesso garantido do seu inventário a se arriscar com filmes menores. E esses filmes, que os estúdios costumavam fazer rotineiramente, agora estão indo pra Amazon, Hulu e Netflix”.

AAAAHÁ.

Spielberg é a EPÍTOME do privilégio quando se fala de Hollywood. Até outro dia ele fazia três filmes por ano (estamos em Março e já temos dois, vale lembrar), colocava todos no cinema e tudo bem. Como disse na minha resenha de O Bom Gigante Amigo, ele pode fazer coisas longe do seu melhor, mas ainda o faz como Steven Spielberg faria e isso é maravilhoso, sempre. Não é ele que sofre com os estúdios querendo grandes sucessos de bilheteria, até porque ele é o responsável por uma parte considerável deles; mas Spielberg gosta de cinema, pura e simplesmente, e entende que as coisas estão seguindo por um caminho, acho que posso dizer assim, perigoso.

Talvez o ideal não seja proibir que filmes de serviços de streaming concorram ao Oscar ou outros prêmios, como Cannes, que no ano passado exibiu dois “originais Netflix” e criou uma regra exigindo exibição em cinemas da França. Talvez o necessário seja entender o real problema dessa história e lidar com isso de uma maneira que seja justa com quem trabalhou nos filmes.

Exigir um tempo maior e de exclusividade no cinema pra filmes de serviços de streaming, como a Amazon já faz naturalmente, me parece ser a melhor decisão. Até porque eliminaria o que talvez seja o maior problema de Hollywood com Netflix, que é o fato de eles até colocarem os filmes no cinema pra se qualificarem aos prêmios, mas simultaneamente online.

Mudbound é um original Netflix que, no Oscar desse ano, recebeu quatro indicações, sendo uma delas a de melhor fotografia à Rachel Morrison, a primeira mulher a ser indicada nessa categoria; Alex Garland disse que, na sala de pós-produção de Aniquilação, só se falava como seria ver o final do filme nos cinemas e... Cuén.

Mudbound e Aniquilação são dois desses filmes menores dos quais Spielberg falava. Dois desses filmes que acabam sendo exibidos em serviços de streaming por uma série de razões e que ele acredita que não poderiam concorrer ao Oscar.

No fim das contas, Spielberg tá mais querendo defender o cinema do que sendo contra o Netflix. A frase que acabou ganhando os sites especializados pode soar um tanto antiga, até mesmo errada. Mas, mais uma vez, Spielberg está certo.