Tal qual o livro de Ernest Cline, a adaptação para os cinemas é uma imensa homenagem à cultura pop — mas ainda que igualmente irregular, rende momentos bem mais divertidos quando o cineasta resolve encontrar a si mesmo
Quando você termina Jogador Nº1, o livro, tem um problema que fica MUITO claro: as referências. Elas são incríveis, sensacionais, divertidas. Mas elas, mais ou menos como acontece em Stranger Things, servem como muleta narrativa pro autor, Ernest Cline, que depende DEMAIS delas, de suas intermináveis descrições de cenários de jogos clássicos de Atari, de ambientações de Dungeons & Dragons ou de passagens de Monty Python e o Cálice Sagrado, ao invés de usá-las como acessórios para contar as histórias de seus personagens. No fim das contas, a cultura pop se torna mais importante ali do que quem a consome e o aspecto humano fica totalmente de lado.
O anúncio de Jogador Nº1, o filme, com Steven Spielberg na direção, foi um alívio. Porque se tinha alguém que saberia dosar as coisas e transformar as referências a filmes, séries, joguinhos, gibis, desenhos e a porra toda em algo que contribua para uma história de fato e não ao contrário, ah, esse alguém seria o Spielberg.
Mas quando Jogador Nº1, o filme, efetivamente começa, parece que ele vai ser essencialmente como o livro. É tudo em altíssima velocidade: Wade Watts, codinome Parzival, assume o papel de narrador, faz um resumo da história (que, originalmente, não é das mais complexas, sejamos honestos) pra não perder lá muito tempo e depois já joga o espectador no meio de uma corrida, com DeLorean, moto do Akira, King Kong, dinossauro do Jurassic Park, pacotão completo.
Tudo lindo, claro, um visual DESBUNDANTE, de cair o queixo. Mas uma velocidade que deixa tudo meio vazio, quase oca. Se as próximas duas horas fossem como aqueles 15 minutos iniciais, fodeu tudo.
Felizmente, no entanto, são só esses 15 minutos mesmo e o roteiro de Jogador Nº1, cortesia de Zak Penn e do próprio Cline, dá uma pisada no freio bem interessante, enxuga grande parte do que não funciona na obra original e se foca em algo que o escritor parece esquecer ao longo de suas páginas: as pessoas. Quem está por trás dos avatares e do lado DE FORA do Oasis, esta imensa experiência de realidade virtual que conecta todo mundo na Terra de 2045, uma mistura de jogo e rede social criada por um programador excêntrico de nome James Halliday (que é uma mistura de Steve Jobs com Willy Wonka).
Todo mundo usa o Oasis pra tudo, pra trabalhar, pra estudar, pra se divertir. E todo mundo pira quando Halliday morre e revela a existência de um easter egg nas profundezas de seu paraíso repleto de cultura pop antiga, principalmente dos anos 80 e 90. Um easter egg que dará toda a sua fortuna e o controle completo do Oasis pra quem achar o dito cujo, escondido em uma série de pistas e trancafiado por três chaves mágicas, coisa e tal. Aí, todo mundo passa a estudar a vida do cara loucamente em detalhes, sua predileção por filmes do John Hughes e pela discografia do Rush, enfim. A resposta tem que estar lá.
Veja, o filme está muito, mas MUITO longe de ser perfeito. E ele de fato caga quando Spielberg se rende ao saudosismo barato de Cline, ele mesmo um autodeclarado fanático por cultura pop, e se preocupa mais em jogar as referências na nossa cara. A batalha final, diante do castelo do avatar de Halliday, é legal nos primeiros cinco minutos, mas depois dá uma bela cansada — brincar de Onde Está Wally? na tela enquanto desfilam Tartarugas Ninja, Batman, Mulher-Gato, Looney Tunes, personagens de Overwatch, Halo, Street Fighter, Mortal Kombat, Jason, Freddy Krueger, Chuck, Gigante de Ferro, Gundam (aqui, uma ótima saída para substituir o Ultraman e o Leopardon, robô do Homem-Aranha japonês, aliás) e até o Mechagodzilla enche o saco quando a história vai perdendo lugar pra isso.
Mas Spielberg é Spielberg. E a grande referência macro, por trás de tudo, é que Jogador Nº1 acaba se tornando, pelo menos na maior parte do tempo (no caso, o tempo que realmente importa), uma conversa de Spielberg com a sua versão mais jovem, tal qual o próprio Halliday faz em certo momento da trama. É um retorno ao Spielberg mais pop, mais leve, descompromissado e descontraído, mais chiclete. É claramente um Spielberg bem mais Hook: A Volta do Capitão Gancho, E.T. – O Extraterrestre. Um Spielberg que está nitidamente se divertindo.
No melhor momento da trama, disparado, aquele que não existe no livro e que dá até pra dizer que vale a projeção como um todo — e que deveria ter infectado toda a produção, cujo resultado seria bem melhor, vamos combinar — o cineasta nos leva a uma imersão dentro do filme que assombra Halliday por ter sido aquele ao qual levou a mulher de sua vida, cujo amor nunca se concretizou. E aí que os avatares dos personagens entram no Hotel Overlook d’O Iluminado. É simplesmente genial. É de rolar de rir e, ao mesmo tempo, de aquecer o coração. E, nessa homenagem ao cinema dentro do cinema, se cria mais um dos grandes momentos memoráveis da obra de Spielberg. A gente queria mais, aliás. Muito mais.
Um retorno ao Spielberg mais pop, mais leve, descompromissado e descontraído, mais chiclete. Um Spielberg que está nitidamente se divertindo
Se Wade e os outros personagens principais (Aech, Art3mis, Daito, Shoto), aqueles que têm a melhor pontuação nesta caça ao tesouro e que invariavelmente acabam se tornando um time, acabam sendo tratados de maneira bastante genérica e apressada — os momentos em que Parzival descobre as identidades de Aech e Art3mis no mundo real, por exemplo, são esfregados na nossa cara em poucos segundos, sem a profundidade que mereciam, e aí cabe um ponto para a versão do livro — pelo menos Spielberg mostra que sabe lidar bem com um vilão. E o verme corporativo Nolan Sorrento, líder de uma empresa que tenta ganhar o jogo a qualquer custo para dominar o Oasis pra sempre, fica ao mesmo tempo mais ameaçador e caricato, numa ótima interpretação de Ben Mendelsohn.
O mesmo vale para o Halliday vivido por Mark Rylance, ator que está se tornando o queridinho do diretor, que aqui entrega um criador do Oasis mais VEROSSÍMIL que a sua versão de papel, com mais profundidade, mais humanidade, do tipo que você sente vontade de abraçar e dizer “vai ficar tudo bem, cara”.
No fim, Jogador Nº1, mesmo que aos trancos e barrancos, acaba cumprindo um papel que o livro apenas tenta: mostrar que a vida real pode ser mais complicada mas ao mesmo tempo é muito mais empolgante do que a virtual. E fica claro, em certo discurso primordial lá pelo fim da história, que Wade está falando não do Oasis, mas sim do Facebook, do Instagram, do WhatsApp e de como a gente pode deixar certos pequenos momentos e oportunidades passarem, com medo de dar o salto. AQUELE salto.
Neste sentido, a mensagem do filme acaba sendo direta mas ao mesmo tempo fofa, graciosa, tudo embalado numa trilha sonora deliciosa, com direito a Van Halen, Twisted Sister, Joan Jett, George Michael. Baita Sessão da Tarde. Ou, no caso, um ótimo filme pra geração locadora.
Só tem um ponto que talvez mexa com você, fugindo deste contexto: a trama se passa claramente num futuro distópico. E enquanto nossos intrépidos heróis correm de lá pra cá, fugindo dos soldados de Sorrento, fora do Oasis, você vê um monte de gente pobre e maltrapilha vagando pelas ruas com um óculos VR na cara, grudadas em outra realidade para esquecer de sua própria realidade. Assustador, para dizer o mínimo.
O que as fez ficarem daquele jeito? Uma imensa crise econômica e energética, talvez? Deixa isso pra lá, porque o filme é claríssimo ao mostrar que a resposta vai passar praticamente batida, da mesma forma que no livro e, bom, na mesma vibe de grandes clássicos escapistas dos anos 80, afinal de contas.
Se era um pouco DISSO aí que você tava esperando, bom, talvez precisasse de um filme um pouco mais questionador do que Jogador Número 1. Mas nem sempre a gente consegue ter tudo numa coisa só, não é mesmo? ¯\_(ツ)_/¯
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