No aniversário de 50 anos de Star Trek, um dos personagens mais sensacionais da franquia terá a sua vida pessoal revelada – e já era hora disso acontecer
Quando assisti à Jornada nas Estrelas pela primeira vez, fiquei encantado. Era uma aventura espacial, uma ficção científica que audaciosamente ia onde nenhum homem jamais esteve. Não no espaço, mas no futuro, ao mostrar que a Terra havia superado a maioria de suas diferenças, tornando possível criar um mundo sem fome, sem guerras, sem dinheiro, sem TV e, principalmente, mais igual. Russos, asiáticos, mulheres, homens e aliens dividiam a ponte de uma nave épica, a Enterprise.
Obviamente existiam problemas, guerras e diferenças – todos colocados bem longe no espaço. E uma cagada na representação dos Klingons, mas isso é papo pra outra hora.
Porém, faltava um detalhe, que só fui perceber muito depois: todos os personagens eram, ao menos aparentemente, heterossexuais. Será que é esse mesmo o futuro da humanidade? Bom, essa discussão vai acabar: John Cho, o atual Sulu, confirmou ao Herald Sun que veremos o personagem casado com um outro homem em Star Trek: Sem Fronteiras. Juntos, eles terão uma filha.
E isso é incrível.
Dá pra entender as escolhas de Gene Roddenberry, lá nos anos 1960, para a mitologia de Jornada nas Estrelas. O criador já foi muito longe em diversos aspectos, como trazer o primeiro beijo “interracial” da TV (entre Kirk e Uhura) e colocar um asiático (chineses eram mais vistos por serem comunistas, enquanto os japoneses ainda eram odiados por conta da Segunda Guerra Mundial) e um russo (eram tempos difíceis da Guerra Fria) na tripulação da Enterprise. Já foi muito.
Ir além disso era complicado. Jornada não era nenhuma campeã de audiência, principalmente por estar à frente de seu tempo. Havia, veja só, até grupos que viam o Spock como uma representação do demônio e pediam o cancelamento da série. Imagina, então, se houvesse um personagem homossexual? Em 1966? Pois é.
Nos anos 1980, quando Gene – que era simpatizante do movimento LGBT – idealizou a Nova Geração, ele chegou a anunciar que haveria um personagem homossexual. Inclusive, ele incentivou um episódio, Blood and Fire, escrito por David Gerrold, que abordava o assunto e trazia uma alegoria sobre a AIDS. Porém, o roteiro nunca saiu do papel e Roddenberry morreu em 1991.
Foi só em 1995, no episódio Rejoined de Star Trek: Deep Space Nine, que rolou o primeiro beijo lésbico da franquia, entre Jadzia Dax e Lenara Kahn – justificado pelo fato dos simbiontes que habitavam as duas personagens, Dax e Kahn, anteriormente haviam habitado um casal, explicando o sentimento entre as personagens.
Esse foi o quinto beijo entre duas mulheres na história da TV dos EUA.
De lá pra cá, os tempos mudaram. Da mesma forma que precisávamos de um beijo entre um negro e uma branca nos anos 60 e um beijo lésbico na década de 90, precisamos agora de personagens de destaque que sejam diversos e representem as mal diferentes pessoas da nossa sociedade. Até mais do que isso: que, neste futuro (quase) perfeito de Star Trek, representem aquilo que almejamos para todos nós no nosso próprio futuro.
Nesse contexto, Hikaru Sulu ser canonicamente gay faz todo o sentido. Na série e nos filmes clássicos, a vida pessoal do personagem nunca foi muito retratada. O próprio nome “Hikaru” só foi aparecer em 1981, em um livro, assim como o fato dele ter nascido em San Francisco só foi mencionado na mesma década. No filme Star Trek: Generations, da década de 1990, introduziu a filha de Sulu, Demora.
Em 2005, na vida real, o ator George Takei, que interpretou Sulu em toda a fase clássica da saga, assumiu publicamente um relacionamento de 18 anos com Brad Altman. “Não é realmente sair do armário, que sugere a abertura de uma porta e passar por ela, é mais como uma longa, longa caminhada que começa através de um corredor que começa a se abrir”, disse, na época, o ator, que passou a lutar pelo direito de casamento entre pessoas do mesmo sexo após o veto do governador Arnold Schwarzenegger.
Quando finalmente o casamento foi regulamentado na Califórnia, em 2008, Takei e Altman se casaram. Por isso, ver Sulu seguindo os passos da vida real e mostrando o resultado dessas lutas é sim algo significativo. Uma bola dentro do Simon Pegg, coroteirista de Sem Fronteiras e quem deu a ideia de encaixar um pouco da vida pessoal do ALFERES no filme.
“Infelizmente, é uma mudança na criação do Gene, no qual ele colocou tantos pensamentos. Eu acho que é muito lamentável”, disse o ator para a Entertainment Weekly. Não que ele seja contra ter personagens LGBTs na mitologia de Star Trek, mas que deveria ser feito com alguém totalmente novo no contexto da franquia. Mudar algo pré-estabelecido pelo criador dos personagens seria, na visão do Takei, ir contra toda a energia e ideias que ele botou ali.
“Eu falei pra ele: ‘Seja criativo e crie um personagem que tenha uma história sendo gay, ao invés do Sulu, que foi hetero durante o tempo todo, e então você revela que ele estava no armário”, disse ao ator, relembrando o momento no qual John Cho contou a novidade. “Eu disse: ‘Este filme está saindo no aniversário de 50 anos de Star Trek, o 50º aniversário da homenagem a Gene Roddenberry, o homem do qual sua visão nos acompanha há meio século. Honre-o e crie um novo personagem’. Eu insisti com eles. Ele me deixou sentindo que isso ia acontecer”.
É fácil entender a posição do Takei. Veja: há 50 anos ele carrega esse legado de Star Trek. Ele deve muito na vida ao Roddenberry e à série. Ver qualquer mudança nisso é, de certa forma, sentir que um pouco da sua vida foi tocado, modificado.
A questão é: quando é que alguém disse, na série, que o personagem era heterossexual?
“Eu amo muito e respeito George Takei, seu coração, coragem e humor são uma inspiração. Mas, sobre o que ele disse sobre o nosso Sulu, eu preciso respeitosamente discordar dele” afirmou Simon Pegg em um comunicado divulgado nessa sexta. “Ele tá certo, é lamentável, lamentável que a versão do cinema do universo mais inclusive e tolerante da ficção científica nunca tenha tido um personagem LGBT até agora. Nós poderíamos ter introduzido um personagem novo, mas ele ou ela seriam definidos apenas pela sexualidade, seria o ‘personagem gay’, ao invés de ser definido por ser quem era, e isso não é demagogia?”
Criar um personagem LGBT e introduzi-lo assim, sem mais nem menos, no cânone de Star Trek neste momento em que a franquia recicla elementos do original poderia ser arriscado, soar artificial e que está lá, apenas, por estar. Tanto não é fácil, como já vimos, que até hoje numa história de 50 anos Jornada nas Estrelas NUNCA teve um personagem realmente gay, lésbica, transexual ou bissexual, ao menos abertamente ou sem ser uma metáfora, em todos os filmes e séries já produzidos. Também nunca os vimos audaciosamente explorar histórias sobre os direitos LGBT.
Diversidade é mais do que isso. É mostrar que grandes personagens são como todos nós. E Hikaru Sulu é um grande personagem, alguém destinado a ser capitão de nave estelar (na cronologia original ele chega a ser capitão da Excelsior) e, querendo ou não, com uma história ligada a do próprio George Takei e na luta do ator por igualdade.
“Justin Lin, Doug Jun e eu amamos a ideia de ser alguém que já conhecíamos porque o público já tem uma opinião sobre o personagem como ser humano, sem nenhum preconceito. A orientação sexual é só um dos vários aspectos pessoais, não característica definitiva”, continuou Pegg. “É importante notar que em nenhum momento a gente sugere que nosso Sulu tenha ficado no armário, por que precisaria? Só é algo que nunca apareceu antes”. Provavelmente teremos um momento, rápido, para conhecer a família dele – algo parecido com o que foi feito com o Gavião Arqueiro em Vingadores: Era de Ultron. Tanto lá quanto aqui foram criados elementos que não existiam no material original e que só servem para dar mais profundidade aos personagens. Sulu continuará sendo tão bom (ou até melhor) do que sempre foi.
Pra Simon Pegg, aliás, Roddenberry provavelmente teria curtido a ideia — tanto que chegou a falar abertamente sobre a Nova Geração abordar esse assunto. “Eu não acredito que sua decisão de fazer a timeline principal da Enterprise totalmente hétero foi artística, mais uma necessidade do tempo. Star Trek recebe o amor necessário por ter o primeiro beijo interracial da TV, mas Plato’s Stepchildren [o episódio em que o beijo acontece] foi o que teve menos audiência de todos”.
Essa não será a primeira mudança do reboot nos conceitos originais de Jornada nas Estrelas. Uhura e Spock nunca se envolveram nas histórias de Roddenberry, Vulcano nunca foi destruída, Kirk nunca perdeu o pai jovem e se tornou um adolescente-problema, a Enterprise nunca foi tão grande... Se você for purista, passará longe do novo filme – e a família do Sulu será o menor dos problemas.
Uma das belezas do reboot de Star Trek, em 2009, é que é uma história que não apaga a cronologia original. Ao contrário: foi construído que todos os acontecimentos dos filmes e séries até ali levaram o velho Spock e Nero (junto com um monte de romulanos) ao passado, que foi alterado e se tornou algo novo. Tudo que acontece conta e ainda é relevante, inclusive a história do velho Sulu.
Takei, meu velho, fique tranquilo. Apenas aconteceu que o mundo mudou, graças à luta de caras como você e o Roddenberry. Vamos torcer, agora, para que o futuro da humanidade seja tão bonito quanto é na visão de vocês.