A Terrível Elizabeth Dumn se prepara para enfrentar os demônios engravatados nos EUA | JUDAO.com.br

Batemos um papo com Arabson Assis, autor da HQ brasileira que vai ganhar sua versão americana via Image Comics, e também com o responsável pela adaptação/tradução, ninguém menos do que James Robinson

Pra conseguir o que tanto queria, Faustino Dumn fez lá aquele já tradicional pacto com o Diabo, o Belzebu, o Capeta, o Satanás, o Lúcifer, o Cramulhão, o Mochila de Criança. Ganhou muita grana, virou pastor de uma igreja e tudo. Mas 20 anos depois, na hora de pagar a sua parte, adivinha, o cara não quis não e resolveu botar na conta da própria filha, Elizabeth, que está em um internato e com quem o velho progenitor tem um relacionamento complicadíssimo. E aí o caldo entorna. Pro lado do Diabão, é claro. Porque a garota é osso duro de roer.

Pra conseguir o que tanto queria, o quadrinista capixaba Arabson Assis, natural de Iúna, nem precisou fazer qualquer pacto com Satã. Na real, o cara — que já tinha uma carreira como chargista / ilustrador no jornal local A Gazeta — “só” precisou levar uma de suas ideias ENFIM pro campo da materialidade. “Sempre tive uma ligação muito forte com essa mídia, desenhando desde que posso me lembrar, sem no entanto, ter algo finalizado para mostrar a alguém. Uma vergonha”, explica ele, em entrevista ao JUDAO.com.br.

Ele escreveu. Ele desenhou. E aí surgiu A Terrível Elizabeth Dumn Contra os Diabos de Terno. Publicada, republicada e agora prestes a ganhar sua versão exportação, com o nome The Terrible Elisabeth Dumn Against The Devils in Suits.

O gibi, que será lançado em formato one-shot pela Image Comics no mês de novembro, teve a tradução feita por ninguém menos do que o premiado James Robinson, escritor britânico com passagens memoráveis por HQs como Starman e Sociedade da Justiça da América. “É um escritor excepcional e experiente. Eu o lia quando jamais poderia imaginar que um dia fossemos trabalhar juntos”, descreve Arabson. “Conhece o público americano e, claro, tenho que confiar em suas escolhas”.

Descrevendo-se como um apaixonado pela história e pela própria Elisabeth desde a primeira vez que colocou os olhos nela, Robinson chama a história da garota rebelde que encara o demônio de frente como “única” e a arte como “maravilhosa”. Ele afirma, também nesta conversa com a gente, que fica muito orgulhoso de poder ter permanecido fiel aos diálogos. “Eu só adicionei o fluxo e a cadência do inglês, que poderiam se perder na tradução literal. No entanto, acho a história muito cativante em sua forma original”, explica. “Me faz lembrar tanto um conto de fadas macabro quanto uma história de horror tradicional. E que ainda permanece muito verdadeiro ao lugar onde foi inicialmente criada: o Brasil. Dá pra sentir o gosto do país e das pessoas lá conforme você lê e vê a arte. Não queria perder isso”.

Mas, apesar de lisonjeado pelos elogios, o brasileiro não tem frescura ao admitir que James não apenas traduziu como ajudou a adaptar a história, tendo total liberdade. O autor conta ainda que, na versão nacional, fez deliberadamente algumas escolhas que exigiam um pouco mais do leitor e que foram modificadas para a edição em inglês.

“Eu tinha decidido que os flashbacks não teriam falas. Nem os quadros se modificariam para indicar a mudança do tempo, nem mesmo a cor, já que era tudo em preto e branco. Teria que ter um entendimento pelo contexto”. Ele diz que prefere as coisas assim, aquela cena que de início causa um estranhamento, como se não fizesse parte da narrativa em um primeiro momento. “Mas devo reconhecer que essa tendência pode ir além vez em quando. Às vezes as coisas parecem muito claras para nós apenas por estarem dentro de nossas cabeças”.

O processo todo rolou via IHQ Studios, empresa de gerenciamento do trabalho de quadrinistas brasileiros pro mercado internacional e que funciona como o braço internacional da da escola de arte Instituto HQ e da IHQ Editora — todos sob a gestão incansável de Klebs Junior, professor e ilustrador, ele mesmo um artista que fez nome com trabalhos pra Marvel, DC, Valiant e Malibu.

“O Klebs enviou para o James e o James mostrou pro pessoal da Image. Tive a sorte do James gostar e se empolgar com a HQ”, revela Arabson. Percebe-se. :)

Originalmente, A Terrível Elizabeth Dumn Contra os Diabos de Terno saiu como publicação independente em 2013, quando o autor conseguiu a grana para o financiamento via edital do Programa de Ação Cultural (ProAC), da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo.

“Com um contrato assinado, só tive que me concentrar em produzir, já que a publicação era por conta do programa de incentivo à cultura”, conta. “Depois de pronto, mostrei pra algumas pessoas do meio e recebi um retorno bacana”. Um destes apoiadores foi o nosso bom veterano Sidney Gusman, entusiasta dos quadrinhos nacionais, que ajudou a fazer barulho com a obra do cara. Dali pra cair nas mãos do Klebs, foi um pulo.

Então, em 2016, a HQ foi republicada, com lançamento na comic con de São Paulo e tudo, lá pela IHQ, recebendo a pompa e circunstância que merecia, sendo elogiada por quase todo mundo do meio e recebendo merecidas indicações ao HQ Mix, inclusive. “No relançamento pelo IHQ Editora, contive o impulso de redesenhar as páginas”, confessa o autor. Ele também confessa, aliás, que este salto do gibi pro mercado americano já estava nos planos há algum tempo, mas acabou não acontecendo antes por sua própria culpa. “Levei muito tempo para liberar os arquivos para o Klebs”, detalha, rindo. “Acho que levei quase um ano pra mandar os arquivos. Depois disso, fluiu relativamente rápido, pelo menos para mim, que não tenho experiência alguma nessa área de contratos internacionais. Na verdade, não achei que algo assim fosse acontecer”.

Pois é, mas aconteceu. E sem nenhum percalço no caminho. Aliás, pra quem tinha dúvidas, o fato de ter sido um projeto desenvolvido com a ajuda providencial do ProAC não dificultou em rigorosamente nada. “Não houve nenhum problema nesse sentido. Tão logo a obra fosse publicada pelo programa, os direitos eram todos do autor para que ele negociasse como e com quem achasse melhor”, explica Arabson. “A única exigência era a de que o Governo a publicasse primeiro”.

Apesar de bem brasileira, como Robinson fez questão de frisar, a narrativa visual detalhista e expressiva do desenhista carrega elementos como um certo tocador de violão cuja história lembra demais um certo Robert Johnson, o lendário blues man americano que diz-se que teria vendido a alma ao diabo na encruzilhada das rodovias 61 e 49 em Clarksdale, Mississippi. Junte isso com uma pitada do trágico poema Fausto, do alemão Goethe, pra entender que a história é suficientemente universal pro público de lá poder pegar o espírito da coisa tanto quanto o daqui. “De certa forma, acho que todas as histórias são universais, apenas o modo de contá-las é pessoal. A mitologia e a literatura estão repletas de narrativas de pactos com seres metafísicos. A textura é que é particular”, opina o autor. “Ouvi histórias assim em minha pequena cidade quando era um menino, e não creio que quem contava tenha lido Fausto ou ouvido Robert Leroy Johnson nem lido sua biografia. O canto do universo também é universo”. E ainda tem espaço pra tirar onda e filosofar: “Ademais, é um bom conselho o de [Leon] Tolstói: se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”.

Por falar em pintar, aliás, esta é outra das grandes mudanças da versão brasileira pra americana, que será toda colorida, com trabalho de Anderson Cabral. “O trabalho de colorização cria muito mais apelo comercial em uma publicação de quadrinhos”, diz o próprio colorista.

“Independente desse fato, as histórias em quadrinhos precisam funcionar em preto e branco, e o Arabson realiza isso muito bem nesse livro. Sua arte é riquíssima em detalhes e foi um desafio muito agradável acompanhar seu ritmo aplicando as cores nesse trabalho. Creio ter cumprido meu papel em deixar o material dentro dos padrões que sugerem essa demanda americana além de contribuir um pouquinho com o clima da história”.

A ideia, no fim das contas, é que este lançamento gringo de A Terrível Elizabeth Dumn Contra os Diabos de Terno seja um primeiro passo de uma parceria com a Image pra levar os gibis do IHQ pros Estados Unidos — e Arabson conta que outros, inclusive, já estão sendo negociados.

Mas a dobradinha Arabson / Robinson promete não parar por aí, já que existe uma HQ chamada Os Cinco em andamento, com roteiro do britânico e arte do nosso brasileiro. “Ainda estamos trabalhando nisso”, conta Robinson. “É um trabalho em andamento, definitivamente. Eu adoro o trabalho do Arabson tanto em cenas de ação quanto em sequência de diálogo, então quis muito continuar trabalhando com ele. Os Cinco (The Five) vai ser algo único. Eu o tenho chamado de Cidade de Deus encontra Isaac Asimov”.

EITA que mescla parece BEM interessante, hein?