The Wicked + The Divine e uma nova representação nos relacionamentos | JUDAO.com.br

Iniciar a caminhada através de uma cultura pop mais diversa passa pela necessária reivindicação de diferentes arcos em produtos que não sejam considerados “de nicho”

Centenas de toalhas brancas, M&M’s em cores específicas, responder apenas a mulheres durante uma estadia. A lista de exigências de um músico, quanto mais famoso/talentoso ele é, mais o afastam da barreira conhecida como realidade por meros anônimos. A criação de histórias completamente absurdas que se mesclam a uma persona comum e lentamente a empurram a uma dimensão de extraordinário, transcendendo a banalidade dos pobres mortais são as pedras fundamentais sobre as quais nascem nossos mitos.

Esse limite que outrora inspirou a personificação de fenômenos naturais como a chuva, o sol e etc. em deuses dotados de capacidades especiais, hoje foi absorvido pela nossa cultura pop e deu o último salto criativo, originando os super-heróis. Em The Wicked + The Divine, o criador Kieron Gillen dá um passo para trás e cria uma conexão direta entre os deuses de diversos panteões e a música pop.

Na série American Gods, capitaneada por Bryan Fuller (#SaveHannibal) e baseada no livro de Neil Gaiman, deuses atravessam séculos buscando formas de manipular mortais e ganharem instantes de adoração. Nos quadrinhos de Gillen, o retorno de divindades como Lúcifer e Minerva ao plano terrestre toma o caminho mais curto em busca de veneração: a personificação dessas figuras em artistas pop. Letras de músicas, sonoridades diversas, e, claro, a imagem de cada um deles, torna-se a forma mais eficaz de hipnotizar multidões, criando paralelos entre fãs e fieis em cultos religiosos.

Baseando seus protagonistas em arquétipos artísticos básicos como a cantora-compositora Amaterasu (alicerçada em figuras como Steve Nicks, Kate Bush e Florence Welch), músicos que propõem a ruptura de paradigmas sexuais em sua Lúcifer batendo num liquidificador de referências Annie Lennox, David Bowie e Madonna, entre outros exemplos, W+D cobre assuntos como a retroalimentação das inspirações artísticas através das décadas e como a adoração dessas figuras as colocam em espaços tão inacessíveis e privilegiados quanto solitários.

Um sutil detalhe que circunda a narrativa de jovens deuses inconsequentes adorados por um público (um abraço Justin Bieber) fica a cargo das relações amorosas estabelecidas por Gillen entre seus personagens. Nesse universo, a sexualidade é apresentada como um espectro, interesses amorosos e expressões de desejo não atravessam um filtro cerebral de resoluções baseadas em preconceitos, o que faz com que personagens sejam guiados de maneira primitiva por instintos que dão origem a seus relacionamentos.

De modo estranhamente simples para os padrões de produtos de cultura pop, W+D não perde tempo explorando questões como bi e homossexualidade ou criando plots de descoberta da sexualidade em seus cenários. O autor entende que milhares de filmes, livros e músicas já investigaram esse terreno antes e, dessa forma, seus personagens não costumam ser agrupados de acordo com suas manifestações de desejo nem rotulados obedecendo a orientações sexuais. Seu texto reside num momento em que essas questões não são mais objetos de conversa, sendo apenas partes de quem um indivíduo é e, portanto, uma porcentagem mínima de sua personalidade e motivações. Usando a música, mercado relativamente mais livre para expressão de desejos geralmente reprimidos, em comparação à atuação por exemplo, W+E nos presenteia com personagens diversos, representativos de múltiplas comunidades e complexos – para variar um pouco.

A exemplo desse tratamento de personagens, chegamos a outra conversa, que geralmente envolve o aparecimento de minorias em produtos de entretenimento: a existência de papéis para negros, gays, lésbicas e transexuais APENAS onde são ESTRITAMENTE NECESSÁRIOS. Grande problema na discussão sobre representatividade é quando a sexualidade/expressão de gênero só se faz presente se é parte de um plot de personagem. Por exemplo, quando um ator negro só consegue um papel em uma série se houver ~questões raciais~ em seu núcleo ou quando uma personagem trans OBRIGATORIAMENTE precisa ter presente em tela sua caminhada em busca da redesignação sexual.

Obviamente plots sobre a jornada de transição de um transexual ou o momento de saída do armário de uma lésbica quando aplicados a produtos de massa normatizam e criam espaços seguros de manifestação para pessoas que ainda estão em suas jornadas de descobrimento; são necessários e têm seus espaços garantidos. Entretanto, a monotemática envolvendo minorias empurra artistas para guetos onde são escalados para os mesmos estereótipos de papel SEMPRE. A contagem de negros de uma série é maior que 25% de seu total? Provavelmente a narrativa envolve escravidão. Há duas personagens lésbicas num filme? Elas, invariavelmente, se tornarão um casal.

Iniciar a caminhada através de uma cultura pop mais diversa passa pela necessária reivindicação de diferentes arcos em produtos que não sejam considerados “de nicho”, um princípio básico de escrita e criação de histórias e elemento que difere bons personagens de simples caricaturas.