Tungstênio: um filme e duas conversas completamente diferentes | JUDAO.com.br

Conversamos com o diretor, o autor da HQ original e parte do elenco tanto sobre a realidade brasileira e representatividade quanto sobre as escolhas narrativas

Quando tivemos a oportunidade de bater um papo exclusivo com a galera responsável pela adaptação de Tungstênio para as telonas, as duas conversas acabaram naturalmente seguindo caminhos completamente distintos, ainda que complementares — exatamente como acontece no filme/HQ e suas tramas que giram ao redor de um mesmo eixo, se conectam, se entrelaçam, mas têm suas próprias características. Duas entrevistas e um único assunto.

Na sala com os atores Zé Dumont (Seu Ney), Wesley Guimarães (Cajú), Samira Carvalho (Keira) e Pedro Wagner (Liece), durante pouco mais de vinte minutos de conversa, a coisa toda tomou um rumo interessante quando o contexto social de seus personagens entrou em pauta, falando sobre a realidade brasileira e as oportunidades de diferentes grupos sociais.

Para Samira, modelo em sua primeira incursão como atriz, se aprofundar na comunidade de Salvador, a cidade onde a trama se desenrola, foi importante não apenas para a construção da sua personagem, mas também para conexão com sua ancestralidade. Tanto é que a jovem, natural de Piracicaba, diz que ficou completamente apaixonada pela Bahia assim que colocou os pés lá. “Fui pra passar uma semana e fiquei um mês”, revela. “Tenho uma conexão, me sinto muito íntima, muito parte daquele lugar. Então, a gente teve essa preparação lá e, há todo momento, era bombardeada de informações, de sentimentos, de referências e de conexão com a minha ancestralidade enquanto mulher preta”.

Já Wesley Guimarães nasceu em Salvador e cresceu inclusive em uma comunidade muito parecida com a retratada por Quintanilha nos gibis (o autor, aliás, comentou durante a entrevista que passou meses em Salvador absorvendo a cidade e o povo para a criação dessa história). Para o ator, sua própria comunidade foi PIVOTAL para o nascimento do Cajú cinematográfico. “Eu me inspirei basicamente em pessoas que vejo diariamente”, afirmou. “É uma comunidade que é vista de fora como perigosa, é vista como uma comunidade que só tem ladrão, só tem traficante, só tem violência”.

No fim das contas, o ator diz que saiu de Salvador com a oportunidade de falar sobre ele, seu bairro e suas pessoas. “É esse lance de ter oportunidade de mostrar pras pessoas que lá [na sua comunidade] não é isso que as pessoas pensam. Muita gente, depois que viu o trailer, me perguntou: ‘cara, você virou artista?’ Eu nasci artista”, afirma. “Mas também tem a batalha, sabe? A gente rala muito pra chegar num lugar e falar ‘ó, eu sou artista'”.

Wesley e Cajú são retratos de um Brasil dividido pela falta de oportunidades e pela exclusão social. Um exemplo disso é o fato de Wesley ter estudado matérias de sétima e oitava série quando estava na faculdade. Te choca? Pois é. “São oportunidades diferentes, muitas oportunidades não chegam e muita coisa nos é negada desde a educação”, diz Wesley. Segundo ele, o que o diferencia do seu personagem foram “os caminhos e as escolhas, as oportunidades de escolhas, as opções de escolhas totalmente diferentes”.

Para o veteraníssimo José Dumont, intérprete de Seu Ney – personagem que mantém uma relação complicada com Cajú -, o pequeno traficante é o real centro afetivo do filme. “No momento em que ele toma um tapa, ele acredita que está amadurecendo. não está, mas ele acredita. É uma transformação muito bonita”, explica, contextualizando. “Na verdade, não é o Seu Ney que dá o tapa nele, é a pátria. Isso que vocês chamam de pátria. Isso que a gente chama de pátria. Pátria, por quê?”.

Do meu lado, tanto quanto conversar com Wesley enriqueceu minha experiência com a história e me aproximou da realidade de Cajú, o papo com Dumont me fez enxergar mais de perto o odioso Seu Ney – um ex-militar saudoso com a época da ditadura – porque ele acredita que existe uma história de amor paternal entre os personagens. “Eu conheço a história do país, o ranço da herança militar. Eu não sou e não tenho nada a ver com aquele personagem. Essa classe eu não tolero, o tal do torturador e do delator. Então, eu não sou o Seu Ney. Eu sou o Zé Dumont e o personagem tem outras origens”. Mas mesmo com o declarado ranço da herança militar, Dumont acredita que Seu Ney “também tem o direito a amar a vida”.

Para Pedro Wagner, o EMBATE entre Seu Ney e Cajú é o encontro entre dois “Brasis”, da mesma forma que Cajú e Wesley representam o encontro entre a oportunidade e a falta dela. E quando abordo a moralidade dos personagens, o assunto “Brasil” continuou em alta e Wagner comentou sobre a complexidade dos personagens e dos moradores que continuam pescando com bombas, como mostrado no filme. “Teve um dia, quando a gente tava gravando, que a gente escutou [o som da bomba]. Então, eles ainda fazem isso. É completamente ilegal, mas a galera ainda faz”, diz. “E aí, ao mesmo tempo, tem todas essas pessoas que vivem numa linha da miséria. Nos personagens você vê essa complexidade. É um filme realmente de anti-heróis...”. Para o ator, existe uma amoralidade nos personagens porque “talvez seja a única forma de sobreviver quando se está à margem. E o Brasil é praticamente um país inteiro à margem”.

Já na conversa com o diretor Heitor Dhalia e o autor Marcelo Quintanilha, acabamos explorarando questões mais técnicas sobre adaptação e escolhas narrativas – mas partimos também desta questão da moralidade. Ambos, aliás, concordam que personagens complexos são mais interessantes na criação e exploração de suas histórias.

O quadrinista não acredita no maniqueísmo como base para a construção desses personagens e tenta se basear naquilo que o ser humano tem de mais complexo: “Me seduz muito a ideia de que você acabe se decantando por torcer por um personagem que a priori acabe sendo um personagem negativo, malvado. Que de alguma maneira, esse personagem vá te seduzindo ao longo da história através da sua própria humanidade”. O diretor, que declarou abertamente que gosta do lado mais obscuro do ser humano e de questões que levam os personagens ao limite dos seus próprios demônios, acredita ainda que narrativas que exploram amoralidades deixam o público sem saber se podem ou devem torcer para alguém. “Nesse tipo de narrativa, você deixa o espectador sem ter para quem torcer”.

Ele usa como exemplo personagens icônicos da literatura mundial – como Raskólnikov, de Crime e Castigo, de Dostoiévski. “O cara é um assassino, mata duas velhas com um machado e ao mesmo tempo você está com ele o tempo inteiro, dentro da cabeça dele. Ou você pega todos os personagens machadianos, que são uma crítica social ao dia-a-dia. Ou o Balzac, que faz uma crônica da sociedade francesa profundamente, olhando todos os defeitos, todas as complexidades, olhando todas as questões daquele lugar, daquele povo e daquele tempo”.

No momento em que compartilhei minha própria experiência, enquanto espectadora, com as tais amoralidades de Tungstênio, Quintanilha disse achar fascinante essa oscilação da aproximação que podemos ter com a história e os personagens conforme a plataforma. Mas questionado sobre como foi ver sua história ser de alguma forma modificada nos cinemas, Quintanilha afirma ser muito difícil descrever, mas crê que o filme ampliou o que ele criou: “Os atores se apropriaram dos personagens de uma maneira muito particular. Mesmo que eles tenham incorporado esses personagens, qualquer elemento que tenha sido agregado por eles, que tenha sido improvisado por eles durante as filmagens, diz respeito exatamente aquilo que eles viram dos personagens. É fascinante”.

Outro destaque do filme é a bela fotografia de Adolpho Veloso, parte da obsessão do cineasta com o tema, além de sua dificuldade em criar imagens esteticamente feias. “Eu não consigo fazer uma coisa tão realista, porque eu não consigo lidar com o feio, mesmo sabendo que o feio pode ser mais apropriado para uma determinada história”. Usando a fotografia para manter a muito necessária noção de continuidade, já que tudo se passa praticamente em um único dia na praia, a produção utilizou lentes específicas e filmou na contraluz. “[A gente] invertia todas as cenas, com filtro nelas, para que todas as cenas fossem gravadas na contraluz e você tivesse a sensação do sol”.

Uma sequência, em particular, é bastante realista: a da tal pescaria com bombas, que Pedro Wagner tinha dito ainda ser uma prática comum por ali. Dhalia confirma, inclusive, que numa das visitas de locação, a equipe ouviu uma pescaria com bomba. Segundo ele, os especialistas estudaram a possibilidade de usar peixes reais, mas a ideia foi abandonada rapidamente: “Primeiro porque a gente não ia se sentir bem. E segundo porque precisaria de uma autorização ambiental. Então, a gente resolveu fazer em pós-produção”.

A solução? Comprar peixes pescados e que já estavam mortos para usar na cena. “E são sempre os mesmos. E a gente fez a explosão em pós-produção. Demorou para ficar bom, mas ficou”. Ainda sobre minha fixação com os peixes do filme, Quintanilha concordou quando disse que meu primeiro pensamento foram os peixes: “Muitas pessoas disseram que a trama toda se desenvolve a partir de um fato banal. Obviamente se você não é um peixe, claro”.

E ele não está errado.