Um sussurro na insanidade: quem é esse tal de Lovecraft? | JUDAO.com.br

“Cthulhu” é um xingamento? Dunwich fica em Sergipe? Se eu comprar 10kg de linguiça, dá para vinte comer? Prepare-se pra conhecer o homem cuja tarefa era descrever o indescritível ;)

O ser humano é uma espécie que costuma fazer menos sentido do que pular de paraquedas sem paraquedas. Eu, por exemplo, sempre que estou em algum lugar isolado e sombrio — tipo um sítio ou o coração da minha ex —, adoro ouvir histórias de terror só pra depois não conseguir dormir direito. Mais ou menos o que acontece quando o Peter Jackson deita na sua cama neozelandesa e começa a pensar na cagada que ele tá fazendo com O Hobbit.

Pode ser por causa da adrenalina ou do ciclo de Krebs — eu não mandava bem em biologia —, mas a questão é que grande parte de nós gosta de sentir medo. E pra isso existem excelentes filmes de terror, mas nada é melhor pra fazer você se borrar do que um prato de ostras estragadas. Ou um bom livro do gênero.

Enquanto o cinema te mostra exatamente o que você deve temer, as obras escritas deixam a sua imaginação fluir. OU SEJA, a sua mente acaba gerando coisas mais assustadoras até mesmo do que o próprio autor concebeu. Afinal, o seu cérebro sabe exatamente do que você tem mais medo. E um dos mestres do horror psicológico era H. P. Lovecraft, o homem cuja tarefa era descrever o indescritível. ;)

De uma história sofrida, histórias fantásticas

Imagine o seguinte cenário: você ainda é criança e presencia seu pai contrair sífilis, mergulhar na piscina da insanidade e morrer. Sua mãe, transtornada pela perda, desenvolve uma relação patológica de amor e ódio contigo e começa a te vestir com as roupas do falecido patriarca. Aliado a isso, você ainda é frequentemente assolado por diversas doenças — muitas delas, psicológicas — e se vê forçado a mudar significativamente de padrão de vida após a morte do seu avô, que sustentava a família. Ah, avô esse que costumava te botar pra dormir lendo histórias de terror.

H. P. Lovecraft

H. P. Lovecraft

Bizarro, né? Pois seja bem-vindo à vida de Howard Phillips Lovecraft, conhecido por aí como “o responsável por todos os seus pesadelos” ou simplesmente H. P. Lovecraft.

Nascido em 20 de agosto de 1890, em Providence, Rhode Island (‘MERICA!), a vida do cara foi só desgraça: por mais que hoje ele seja reconhecido como um gênio da literatura, Lovecraft foi vítima de um câncer no intestino e morreu em 15 de Março de 1937, aos 46 anos, sem ter conseguido publicar um livro sequer (alguns dos seus contos eram publicados em revistas que reuniam vários contos de vários autores e faziam um puta sucesso naquela época, mas só). :/

Mas o legal é que ao invés de sentar num canto e deixar o mundo rir por último, Lovecraft se dedicou à literatura desde cedo (cedo MESMO, tipo 2, 3 anos de idade), criando contos fantásticos e horripilantes — grande parte baseada em pesadelos que ele mesmo tinha. Algumas pessoas até especulam se foi justamente esse foco em escrever que o impediu de ficar maluco. Com um background desses, calcule o quão forte era a mente desse cara. ;)

O horror psicológico

Até o fim do século 19, o terror literário era essencialmente sobrenatural. Fantasmas, lobisomens, sogras, vampiros, e por aí vai. Influenciado pelo BOOM da ciência na virada do século, o diferencial do Lovecraft foi que seus contos flertavam com a ciência. Ou seja, suas criaturas não eram simplesmente monstros e ponto final. Elas vinham de outras dimensões e de diferentes planetas, questões que tavam em pauta na época.

Além disso, o cara é um dos poucos autores que conseguem aterrorizar o leitor sem mostrar o que o personagem tá vendo. Para pra pensar: se os seres lovecraftianos são de outras dimensões e não fazem sentido pras nossas mentes, como que o protagonista de cada conto seria capaz de descrever com palavras o que ele viu? É a mesma estratégia adotada por Steven Spielberg muitos anos depois em Encuralado e Tubarão: não mostrar o monstro, o que só aumenta o suspense.

De onde vem o terror então? Se você nunca leu nada do Lovecraft, pode ser meio difícil acreditar, mas o CAGAÇO vem justamente da reação dos personagens, aliada aos ambientes super detalhados e à pouquíssimas descrições de alguma parte da criatura em cena (“pude ver um tentáculo”, “uma garra”, “o Dalton Vigh”, etc). O horror lovecraftiano é implícito, mental e psicológico. Impressiona como o BORRAR DE CALÇAS das pessoas no papel consegue transbordar pra quem tá lendo também.

Por onde começar?

A obra de Lovecraft é super extensa e existem contos pra todos os gostos, desde os mais científicos até os com pegada mais sobrenatural. Vale avisar que as obras do cara dividem o mesmo universo, meio Marvel mesmo. OU SEJA, é melhor ler na ordem de cada tema/criatura (nada que uma googleada não te informe).

Ainda tô bem longe de ler tudo que o cara escreveu, mas a seguir estão algumas histórias que me tornaram fã do autor. Além de terem tornado o meu sono mais difícil, claro. ;)

A Cor que veio do Céu

A Cor que Caiu do Céu

The Colour out of Space
Publicado originalmente em Amazing Stories (Setembro de 1927)
Arte: vashar23 / DeviantArt

Também conhecido por aqui como A Cor que Caiu do Espaço, esse foi o primeiro conto do primeiro livro que eu li do cara. E que sorte!

Na trama, um narrador sem nome começa a investigar o que aconteceu com uma área rural abandonada de Arkham (isso aí! Você acha que a inspiração do Asilo Arkham do Batman vem de onde? :D) que os locais chamam apenas de “brejo maldito”. O homem entra em contato com Ammi Pierce, morador da região visto como louco pelos locais, que passa a relatar suas experiências pessoais com Nahum Gardner, fazendeiro que vivia exatamente no lugar amaldiçoado. É revelado então que tudo começou quando um meteoro caiu nas terras de Gardner e, antes que os cientistas pudessem examiná-lo, ele encolheu até desaparecer, deixando pra trás apenas glóbulos de cor que são referidos como tal apenas por analogia (lembra da “descrição do indescritível”? Então).

Animais deformados, plantações que brilham no escuro, insanidade e morte são o que tornam esse conto um dos mais assustadores do autor.

Cthulhu

O Chamado de Cthulhu

The Call of Cthulhu
Publicado originalmente em Weird Tales (Fevereiro de 1928)
Arte: Eike Braselmann

São grandes as chances de que você já conheça a entidade mesmo sem conhecer Lovecraft, talvez de nome ou visualmente. Nessa história primordial do mito de Cthulhu, após descobrir algumas notas e a estátua de uma estranha criatura (um híbrido entre polvo, dragão e homem) deixadas pelo seu falecido tio avô, Francis Wayland Thurston começa a pesquisar sobre cultos que idolatram os Grandes Antigos — seres milenares que habitam a Terra desde os primórdios do tempo, em especial, Cthulhu. Mesmo espalhados pelo mundo, os grupos entoam o mesmo cântico: “na sua morada R’lyeh, o morto Cthulhu aguarda sonhando”.

A história que Thurston descobre é tão impressionante que uma escada que sobe num ângulo impossível é um dos elementos mais normais dessa trama. SINTA O NÍVEL.

Um Sussurro Nas Trevas

Um Sussurro Nas Trevas

The Whisperer in Darkness
Publicado originalmente em Weird Tales (Agosto de 1931)
Foto: Divulgação / The Whisperer in Darkness

O conto segue a história do professor de literatura Albert N. Wilmarth que, após uma enchente fazer com que “coisas estranhas” apareçam flutuando nos rios da região, começa a revirar lendas antigas sobre monstros que vivem nas montanhas inabitadas de Arkham. O professor então recebe uma carta de Henry Wentworth Akeley, um homem que vive isolado e afirma ter provas de que Wilmarth deve cessar suas investigações sobre as criaturas, pra sua própria segurança. Akeley afirma que os seres são reais e, a cada nova correspondência, relata que os ataques dos monstros à sua propriedade estão ficando cada vez mais intensos.

Um Sussurro Nas Trevas é suspense puro até a última palavra. Pra mim, é o conto mais assustador de H. P. Lovecraft.

Nas Montanhas da Loucura

Nas Montanhas da Loucura

At the Mountains of Madness
Publicado originalmente em Astounding Stories (Fevereiro/Abril de 1936)

Uma das histórias mais famosas do autor, que serviu de inspiração pro clássico O Enigma do Outro Mundo, Nas Montanhas da Loucura é narrado em primeira pessoa pelo geólogo William Dyer, professor da Miskatonic University. Logo de cara, é revelado que Dyer está escrevendo uma carta cuja intenção é impedir que uma nova expedição científica à Antártica aconteça. Em uma missão anterior liderada pelo próprio geólogo, estudiosos da universidade descobriram fantásticas e aterrorizantes ruínas além de uma cadeia montanhosa mais alta que o Himalaia. Um grupo menor, liderado pelo professor Lake, é enviado na frente pra atravessar as montanhas e descobre os restos de 14 antigas formas de vida completamente desconhecidas pela ciência.

Quando a expedição principal perde o contato a equipe de Lake, Dyer e o resto de seus colegas viajam até o acampamento avançado apenas pra encontrá-lo completamente devastado. Homens e cães foram massacrados, e as criaturas sumiram. É aí que o geólogo e um estudante chamado Danforth decidem pegar o avião e sobrevoar as montanhas, descobrindo que elas, na verdade, são paredes de uma colossal cidade abandonada. Daí pra frente, as coisas ficam mais loucas que o Coringa depois de usar ácido

FUN FACT! o diretor Guillermo del Toro já tava com tudo certinho pra levar Nas Montanhas da Loucura pros cinemas quando Ridley Scott foi lá e lançou Prometheus, cuja história sobre a criação da vida terrestre remete um pouco ao conto lovecraftiano, fazendo com que a adaptação fosse engavetada. Não bastava ser ruim, Prometheus ainda tinha que cagar outro projeto maneiríssimo. OBRIGADO, BABACAS.

Onde encontrar, outras mídias e o fim da loucura

As obras do Lovecraft hoje tão em domínio público e o Site Lovecraft tem um grande acervo de contos em português pra você baixar. Se você é do bonde do livro físico, é um pouco mais complicado achar edições recentes à venda nas livrarias, mas nada que uma visita a um sebo não resolva — já foi tudo lançado por aqui. ;)

Além da obra escrita, recomendo bastante o board game Eldritch Horror, baseado no universo lovecraftiano. Tem muitas regras e é um pouco demorado (estilo Game of Thrones), mas é um cooperativo super bem feito, com elementos de RPG e um bom desafio pros jogadores. E se você já conhecer o autor, claro, fica ainda mais bacana. :D

E quando o assunto é cinema, são poucas as adaptações diretas das histórias de Lovecraft. Um Sussurro Nas Trevas, por exemplo, ganhou uma adaptação em 2011. Mas o que tem de filme que claramente foi influenciado pela obra do cara, não tá no gibi. O Nevoeiro, O Enigma do Horizonte, À Beira da Loucura e o clássico previamente citado O Enigma do Outro Mundo são apenas alguns excelentes exemplos.

Tá esperando o que então? Reúna toda a sua sanidade e vá desvendar os mistérios dos Grandes Antigos. Só cuidado com mudanças súbitas na sua correspondência, nunca aceite colocar seu cérebro num pote e não esqueça que pinguins cegos são sinal de perigo! ;D