Mais de uma década depois, Crise de Identidade volta ao mercado brasileiro | JUDAO.com.br

Excelente minissérie em sete edições, escrita por Brad Meltzer, tinha saído pela última vez por aqui lá em 2007, num encadernado da Panini — e agora retorna numa caprichada edição de luxo da Eaglemoss

Desde a Crise nas Infinitas Terras, uma regra não escrita na DC Comics define que, toda vez que alguém resolve chacoalhar o universo da editora, é preciso fazer uma série que reúna uma quantidade obscena de heróis por página e que, claro, desemboque de alguma forma na morte de um Flash. Mas quando o escritor Brad Meltzer e o desenhista Rags Morales foram convocados para uma nova Crise, lá em 2004, não apenas fizeram uma história bem mais pé no chão, uma trama policial envolvente que nem de longe trata de realidades paralelas ou viagem no tempo, como não mataram nenhum Flash.

O que eles fizeram, no entanto, foi matar um pouco da admiração que o Flash da época, Wally West, sentia por seu tio, o Flash original da Era de Prata, Barry Allen. Muito mais sutil, mas bem mais impactante.

A trama, na real, não termina com uma morte. E sim começa com uma: Sue Dibny, a esposa de Ralph Dibny, o Homem-Elástico — o primeiro dos heróis a abandonar a máscara e assumir de vez a sua identidade secreta. Todo mundo sabia quem eles eram, o casal Ralph e Sue, pauta da imprensa de celebridades e tudo mais. E foi a partir daí que se desenrolou Crise de Identidade, mini em sete edições que finalmente volta a ser encontrada no mercado brasileiro, depois de mais de uma década.

Originalmente, Crise de Identidade saiu por aqui no formato seriado mesmo, uma edição por mês, um ano depois dos EUA, entre 2005 e 2006. Aí então, lá em 2007, a Panini reuniria as mais de 270 páginas em um encadernado único, em versões com capa dura e cartonada. E desde então nunca mais. Totalmente fora de catálogo. Mesmo esta edição de 11 anos atrás acabou se tornando uma espécie de joia rara, dificílima de ser encontrada por um colecionador sem custar um rim. Basta uma voltinha básica pelas redes sociais da editora nos últimos anos pra ver a quantidade de gente pedindo por este relançamento que eles, finalmente, confirmaram que iriam atender em 2018.

Pois então chegamos em outubro e Crise de Identidade tá de volta! Mas, no caso, pela Eaglemoss. É, enquanto a tal nova edição da Panini não chega, a outra editora relançou a série dentro de seu novo selo de encadernados de luxo, DC Graphic Novels – Sagas Definitivas. Tamos falando de um calhamaço de mais de 330 páginas, reunindo não só todos os volumes da série mas também o arco derivado no gibi do Flash, no qual ele encara o tal grande segredo de seu tio Barry e como isso impacta a sua relação com a clássica Galeria dos Vilões.

A morte da Sue, queridíssima na rodinha dos heróis mascarados, é apenas o catalisador para que a gente descubra uma série de decisões controversas que parte da Liga da Justiça, este verdadeiro bastião aspiracional da moral na comunidade dos super-heróis, acabou tomando. A investigação sobre quem teria invadido a casa do casal, equipada com o melhor da tecnologia de quatro mundos diferentes, começa e certos grupos de heróis partem em busca de alguns suspeitos que teriam relação com a cena do crime. Mas este grupo particular de vigilantes sabe da verdade. E que o real culpado só pode ser o Doutor Luz.

É, ele mesmo, um vilão meia boca que durante décadas foi motivo de piada, tendo a bunda chutada pela molecada dos Jovens Titãs inúmeras vezes. Mas antes de ser assim, ele era um maníaco que, muitos anos atrás, tinha invadido o satélite da Liga quando os heróis estavam fora e, ao encontrar a Sue, não apenas a agrediu como a estuprou. Um covarde que pirou quando os vigilantes retornaram e teve que ser contido por todos eles, num ataque de fúria.

E aí veio a decisão: vamos usar os poderes mágicos da Zatanna pra apagar a mente do cara e fazer ele esquecer de tudo isso. Mas e que tal aproveitar a oportunidade e não apenas fazê-lo esquecer mas... mudá-lo? Transformá-lo num cara com uma maldade quase inocente, um bobo, um palhaço? Apagar a identidade do psicopata e torná-lo um gatinho dócil. Fazer, essencialmente, uma lobotomia mística.

Estavam lá Gavião Negro, Átomo, Zatanna, Canário Negro, Lanterna Verde e Flash. Batman, Superman e Mulher-Maravilha sabiam disso? Não, não sabiam. “Pois é, quando os grandões saíam, sobrava pra gente limpar a sujeira”, explica o Arqueiro que, inclusive, não apenas se opôs à decisão inicialmente quando, no meio de uma discussão acalorada, ainda meteu um soco na cara do Gavião, que tem o dobro do seu tamanho e força. Mas e não é que o Carter foi “um cara legal e deixou quieto”?

Aliás, por falar em Oliver Queen: antes de escrever Crise de Identidade, Meltzer debutou na DC com A Busca, um maravilhoso arco de histórias do Arqueiro Verde pós-ressurreição pelas mãos de ninguém menos do que Kevin Smith. E ali estavam plantadas as sementes desta Crise, já que um Oliver meio sem memórias descobre que, na hora de sua morte, contou com a ajuda de um especialista pra dar fim às evidências de sua própria identidade secreta, com o objetivo de proteger sua família e enterrar alguns segredos.

Narrando grande parte da trama da Crise, o defensor de Star City, o sujeito teimoso, cabeça-dura e bastante cabeça quente, é de longe o mais humano dos heróis, aquele que ajuda a desconstruir a imagem mitológica de um Superman da vida, que coloca os pés no chão e vai entender as coisas de um jeito prático, simples e fácil de resolver. É um cara cheio de defeitos, muitas vezes absolutamente insuportável, mas que revela, por exemplo, os planos práticos que a comunidade heroica tem na manga para lidar com a eventual morte de um dos seus, incluindo aí velório e enterro. Pesado? Você não viu nada.

Esta minissérie não é apenas uma história policial fodástica que se passa nos bastidores do universo das roupas coloridas, das capas, das fantasias. É também uma história sobre os seres humanos por trás dos super-heróis. Não é gibi de ação, de pancadaria. É gibi falando sério pra caralho, pra te mostrar que até os teus maiores heróis podem não apenas fazer cagada mas também te decepcionar alguma vez na vida. Pra fazer, como naquele final de Watchmen, você pensar em qual decisão teria tomado? Existe um certo, um errado ou um “fodeu, o que eu faço agora?”.

A principal pergunta, naquele momento em que os heróis da DC já tinham enterrado um monte de pais, esposas, mães, maridos, filhos e filhas, irmãos e irmãos, é uma que tranquilamente pode passar pela sua cabeça de pessoa comum e sem superpoderes: que limite você estaria disposto a cruzar para proteger as pessoas que você ama? E aí vem uma segunda questão: você está preparado pra lidar com as consequências da sua decisão?

Não que, veja, a série não tenha ótimas sequências de luta. Quando um assustado Doutor Luz contrata o Exterminador para defendê-lo, o quebra é simplesmente histórico. Capaz de usar quase 90% de sua capacidade cerebral contra os 10% que o restante da humanidade usa, ele tem reflexos incríveis, uma capacidade brilhante de adaptação e um pequeno plano para lidar com as habilidades de cada um dos integrantes da Liga. Para derrotá-lo, claro, é necessária uma trapaça... adivinha de quem? Dica: ele usa uma flecha.

Só que a grande graça de Crise de Identidade, com suas muitas mortes e tragédias em fila, é a sua capacidade de te fazer emocionar genuinamente e compartilhar das emoções que Morales consegue imprimir tão bem nos rostos de olhos e bocas bastante expressivos. Você fica triste ao ver Ralph Dibny lutando contra a emoção para fazer um discurso no memorial da esposa. Você fica tenso durante toda a sequência em que a residência do pai de Tim Drake, o terceiro Robin, é invadida. Você fica puto da vida quando descobre QUEM é o verdadeiro assassino. E não deixa de ficar genuinamente surpreso ao ver de que forma tanto Clark Kent quanto Bruce Wayne são incluídos na trama... e como o Arqueiro Verde descreve que cada um dos dois lida com o tal “segredo”.

E o maior segredo narrativo aqui é saber construir relacionamentos. As pontes, incluindo aquelas inexplicavelmente queimadas, entre os heróis mais diversos... e muitas vezes até entre heróis e vilões (que, por falar nisso, têm um papel que simplesmente não dá pra imaginar neste enrosco todo). Os diálogos, até mesmo aqueles mais silenciosos, são a grande arma de Meltzer enquanto contador de histórias.

Ano que vem, Crise de Identidade completa 15 anos desde sua publicação original nos EUA. E é impressionante o quanto seus temas espinhosos e sua atitude incômoda continuam estranhamente atuais (tanto lá quanto aqui, infelizmente) e influenciando parte do que a DC vem produzindo HOJE. Afinal, os tais Heróis em Crise de Tom King jamais existiriam se não fosse esta pedra que arrebenta a vidraça da inocência do mundinho dos super-heróis.