Uma força chamada Amy Winehouse | JUDAO.com.br

Trailer do documentário Amy causa a ira da família e levanta novamente as questões sobre limites da fama que acompanham história da cantora desde a sua morte

Parece estranho até para mim dizer isso mas, ao contrário do que acontece com muitos outros artistas dos quais sou fã, eu me lembro do exato momento em que ouvi a voz selvagem de Amy Jade Winehouse pela primeira vez.

Foi em 2009 e eu trabalhava como redatora em uma grande agência de publicidade em São Paulo. Pra variar, tava fazendo hora extra e ouvia a rádio online da emissora britânica BBC, enquanto tentava parir um texto genial às 21h de uma quinta-feira para finalmente poder ir embora para casa. Enfim, um dia típico.

A canção era Rehab. E se eu estava tentando emplacar um bom parágrafo ou criar uma tirada digna de um Leão em Cannes, minhas investidas foram por água abaixo assim que ouvi os primeiros acordes daquela canção.

Parei de escrever e fiquei atenta, ouvindo.

Aquilo era soul. Mas aquilo também era jazz. Aquilo tinha, inclusive, alguns toques latinos na percussão. Aquilo era R&B. Aquilo tinha swag e arranjos maravilhosos de metais e um baixo impactante que fazia uma dupla maravilhosa com a caixa seca da bateria e te impelia a se mexer. Aquilo tinha uma letra bem-humorada e genial, que falava sobre uma garota que se recusava a ser mandada para uma clínica de reabilitação de álcool e drogas porque, no final das contas, ela só tinha exagerado um pouco num momento de fraqueza, estava bem e seu pai, inclusive, a apoiava.

Aquilo tinha um vocal feminino contralto retumbante, rasgado e poderosíssimo que imediatamente me remeteu às grandes divas do jazz e soul como Sarah Vaughan, Aretha Franklin e Nina Simone. Só que mais extravagante, solto, moderno.

Aquilo era Amy Winehouse.

Eu, que canto desde criança, fiquei impressionada com o volume daquela voz. E por volume não quero dizer altura do som, e sim o espaço que ele preenchia. Era grave e com trêmulos e rouquidão naturais, que emprestavam muita veracidade e melancolia às letras interpretadas. Aquela voz tinha sido realmente moldada para o gênero. Forte influência de música negra, Motown, scats, cantoras latinas (Omara Portuondo, talvez?), não sei.

Só sei que choquei. E fui atrás dessa tal de Winehouse.

Bem, primeiramente, para minha total surpresa, descobri que ela era branca (tive o mesmo choque com sua compatriota Joss Stone, na época) – e Rehab fazia parte de seu segundo disco, Back to Black (2006) magistralmente produzido por Mark Ronson (produtor de Lily Allen e Robbie Williams, entre outros) e Salaam Remi. Mais tarde, ao ouvir o álbum inteiro, ele facilmente entrou para o meu ranking particular de melhores que já ouvi na vida.

Fuçando mais um pouco, ouvi Frank (2003) seu álbum de estreia, também produzido por Salaam Remi mas muito mais contido e cunhado no jazz do que nas influências R&B e latinas de Back to Black, a começar por seu título, que homenageia Frank Sinatra. Frank fez muito sucesso na Inglaterra, mas o resto do mundo conheceu, amou e associou Amy para sempre a Rehab e ao seu álbum Back To Black.

Estou escrevendo sobre Amy Winehouse, principalmente porque sou fã, mas também por conta do lançamento do segundo trailer oficial do documentário Amy, de Asif Kapadia (mesmo diretor do documentário Senna), que foi aclamado no Festival de Cannes, mas vem sendo alvo de duras críticas por parte da família da artista.

No início, a família Winehouse foi bastante colaborativa com o projeto, mas agora se posicionou publicamente contra ele e, inclusive, divulgou um comunicado à imprensa dizendo que o longa “presta um desserviço contra os indivíduos citados e seus familiares que estão sofrendo por conta da complicada aflição do vício”.

Ao que parece, o problema é que Mitch Winehouse, pai da cantora, que inclusive teve papel crucial em sua formação musical e carreira, está sendo retratado como “vilão” na trama.

Em entrevista a jornais como The Sun, Mitch chamou a produção de mentirosa, disse que quer entrar com uma ação judicial contra o doc e já pensa em uma cinebiografia mais condizente com a “verdade”, inclusive cogitando que Lady Gaga interprete o papel da filha.

Já Kapadia, o diretor, em recente entrevista no tapete vermelho de Cannes, disse que “não era nossa intenção desapontar ninguém, apenas mostramos o que estava acontecendo em sua vida na época de sua morte”, afirmou à imprensa francesa. “Havia um monte de turbulências, problemas amorosos e com a família, havia um monte de coisas acontecendo e por isso as coisas aconteceram da maneira que aconteceram. Foi isso”.

O produtor do filme, James Gay-Reese, também se posiciona contra a família e acha as críticas excessivas. “Sabemos que é duro. É a filha dele, no final das contas, mas nós fomos muito objetivos. Fizemos pesquisas por longos anos e foi o que encontramos. Achamos um equilíbrio”, finaliza.

Basicamente o documentário (descrito pelo jornal inglês The Guardian como “uma obra prima trágica“) trata de algo recorrente entre os virtuosos do mundo da música: a inabilidade em lidar com a fama.

Nós, pobres mortais anônimos, tentando nos destacar de alguma forma na multidão, nem que seja pintando o cabelo de azul ou usando aquela roupa de super-herói, podemos achar que isso de “não conseguir lidar com a fama” é besteira. Afinal, eles não lutaram por isso? Não foi para isso todo o sacrifício que fizeram, todo o estudo, todo o cuidado? Não foi para isso que dedicaram suas vidas?

Pois é. Mas sabe aquele velho ditado: “cuidado com o que você deseja”? Ele se aplica aqui.

Amy_01Todo mundo já está cansado de ouvir essa história. Já aconteceu antes, no caso da morte ou então de uma série de problemas decorrentes da dificuldade em lidar com a fama: Janis Joplin, Jim Morrison, Hendrix, Ian Curtis, Kurt Cobain, Jonh Lennon, Michael Jackson, Britney Spears, Macaulay Culkin, vários outros cantores, jogadores de futebol e atores brasileiros... a lista segue longa.

A fama é traiçoeira, efêmera e aprisionadora. Por trás de todo glamour e dinheiro está o peso de manter-se perfeito e em alta performance para o público, pra garantir vendas e mais dinheiro. O que acaba acarretando em uma vida dupla, porque, vamos combinar, ninguém é perfeito, e você se sente uma farsa enorme porque não consegue se manter lindo e maravilhoso e educado e cantando/atuando bem o tempo inteiro. Já dizia o grande trovador gaúcho Wander Wildner: eu não consigo ser feliz o tempo inteiro!

Isso acaba com você. Te consome, afeta seu trabalho e, no caso desses indivíduos, sua arte e talento. Acaba te transformando em alguém que você não é. Ao olhar ao redor, você se vê cercado de comensais, assessores, agentes, produtores. E quase nunca de amigos. São desconhecidos que podem ganhar uma boa grana em cima de você, contando seus segredos e revelando sua humanidade para a imprensa, caso acordem de ovo virado. Já pensou viver para sempre com esse fantasma?

Está tudo o tempo todo por um fio. Sua carreira, seu trabalho, sua reputação. Tudo o que é sólido se desmancha no ar. Você está no topo do mundo, mas o preço é esse. É terrivelmente irônico e cruel, mas é a verdade.

Amy era uma garota extremamente simples. Criada no subúrbio de Londres, pelo pai taxista e pela mãe farmacêutica que, por um acaso do destino, eram fãs de jazz e ensinaram o gênero à filha.

Era espoleta, era autêntica. Não levava desaforo pra casa. Mas também sabia ser doce e sentimental e quando começou a estudar música na adolescência descobriu um grande talento vocal, deu vazão aos seus sentimentos escrevendo letras incrivelmente reveladoras e verdadeiras. E ganhou fama por isso.

Dói, de verdade, pensar que uma força da natureza como Amy Winehouse perdeu a batalha contra si mesma e foi vencida pelo vício.

Mas dói ainda mais ouvir julgamentos de pessoas que não fazem a mínima idéia do tamanho da angustia que um viciado passa, dizendo que ela procurou por isso, que mereceu, que jogou seu talento no lixo, que não vale lamentar por drogado... e outros xingamentos que não valem a pena reproduzir.

Ninguém que nasce com um talento e é reconhecido por isso quer jogá-lo no lixo.

Mas às vezes a benção vira maldição. E nem todos tem fibra e referências psicológicas e emocionais para lidar com isso. Amy só queria ser amada por quem ela era QUANDO NÃO ESTAVA CANTANDO. Por quem ela era, de verdade. No dia-a-dia. Com suas falhas e tropeços. E não por sua voz robusta que arrasava quarteirões.

Espero, realmente, que esse documentário mostre ao mundo o lado humano de Amy e faça jus a quem ela era. Sem essa coisa de “ahh, depois que morre todo mundo vira santo”. Não, nada disso. Mas, sim, talvez, depois que perdemos alguém, vemos que poderíamos ter sido mais humanos, menos implacáveis. Mais amorosos. Menos fãs e mais admiradores da centelha divina com o qual foram agraciados. Parem de jogar pedra na Amy.

Amy estreia em julho lá fora, mas ainda não tem previsão para estreia no Brasil. Aguardemos ansiosos. E de coração aberto.