Uma injustiça de 75 anos finalmente tem data pra acabar | JUDAO.com.br

Bill Finger, co-criador do Batman, vai finalmente aparecer nos créditos em Batman vs. Superman e na segunda temporada de Gotham. Demorou, sim. E tudo pode ser culpa de um contrato maldito assinado lá nos anos 40…

O mundo não é justo, infelizmente. Santos são criados e verdadeiros mártires são completamente esquecidos, sem merecer uma pequena notinha de rodapé nos livros de história. No entretenimento não é diferente. Principalmente quando lembramos o começo das histórias em quadrinhos, um momento no qual essa coisinha chamada “crédito” não era vista da mesma forma que é hoje.

Apesar de por 75 anos o quadrinista Bob Kane ser creditado pela maioria como o único criador do Batman, existe um outro nome, o de Bill Finger, que teve papel importante nesse surgimento e consolidação do herói.

Os Estados Unidos ainda se recuperavam da Grande Depressão na segunda metade dos anos 1930 enquanto os pulps, revistas baratas com histórias de ficção, e as revistas de histórias em quadrinhos se popularizavam como um entretenimento das massas e acessível. Por 10 centavos (US$ 1,69 no dinheiro de hoje), dava pra comprar uma revistinha 64 páginas e algo entre 8 e 12 HQs cheias de emoção, aventura, terror, mistério. Foi quando Jerry Siegel e Joe Shuster tiveram uma grande sacada e, de repente, criaram um novo furor: o Superman, que inaugurou as histórias em quadrinhos de super-heróis.

A Detective Comics Inc., que publicou a estreia do Homem de Aço, percebeu que precisava popular seus outros títulos com aqueles personagens super-fortes de roupa colante. O artista Bob Kane então criou um personagem chamado The Bat-Man (sim, com hífen).

Digamos que ele não era exatamente o que se poderia esperar de um novo Superman: o personagem não tinha superpoderes, muito menos era alienígena. Na verdade, The Bat-Man tinha mais relação com personagens como o Fantasma (que surgiu em 1936, mas não tinha superpoderes e não era considerado um super-herói), Zorro, Sombra e Morcego (estes três vindos dos pulps). Porém, o visual do personagem era fortemente inspirado no Azulão, com uniforme vermelho, além de ser loiro e usar uma máscara domino (no estilo daquela que, depois, seria usada pelo Robin), além de adicionar asas de morcego. Não ia funcionar.

Recentemente, o livro Bill The Boy Wonder, de Marc Tyler Nobleman e Ty Templeton, contou essa história, inclusive reconstituindo o que seria a primeira versão do Homem-Morcego.

Bill Finger

É aí que entra o roteirista Milton “Bill” Finger.

Em uma festa, Kane conheceu Finger, que se interessou pelo personagem e deu várias sugestões, como aproximar mais o uniforme ao do Fantasma, torná-lo algo mais próximo de um detetive e também dar o nome de Bruce Wayne (que teria cabelo preto) ao alter-ego civil do herói. A dupla então produziu a primeira história do personagem, sendo Finger o roteirista e Kane o desenhista.

A HQ, que misturava mistério, investigação, um super-herói mascarado e um visual com inspiração no filme Nosferatu, foi aprovada pelo editor Vin Sullivan e publicada em Detective Comics #27, com data de capa de maio de 1939. O personagem já era bem próximo daquele que conhecemos hoje e o resto, você sabe, é história. O que você não sabe é que Kane já tinha um contrato de freelancer com a Detective Comics Inc., tendo apresentado o personagem pra editora anteriormente ao envolvimento de Finger e, seguindo as regras daqueles tempos, levou o crédito sozinho.

Já em meados dos anos 40, os criadores do Superman procuraram Kane para os três juntos renegociarem os acordos com a DC — e, possivelmente, ir à Justiça –, já que eles haviam sofrido um baque com o fim das tiras de jornal de seus personagens e os super-heróis já não vendiam mais como antes. O que Kane fez? Foi pro pau junto? Não, ele contou tudo pra sua mãe DC.

Aí vem a cereja do bolo: além de usar a informação dos dois colegas como moeda de troca, Kane passou a chantagear a editora, afirmando que ele havia assinado o primeiro contrato, como freela, e criado o personagem quando ainda era menor de idade. Assim, o papel não teria validade e o Batman era dele, não da DC.

Incrivelmente, não existia uma certidão de nascimento ou outros documentos legais que pudessem confirmar a verdadeira data de nascimento do artista. A própria família dele respaldava essa versão, afirmando que o quadrinista tinha nascido em 1921. Mas Bob Kane morreu em 1998 e em sua lápide consta: nascido em 24 de outubro de 1915.

Bob Kane

Sem ter como provar isso naquela época e com medo de perder seus dois principais personagens, a DC abriu as pernas no novo acordo. Nele, Kane recebeu parte dos direitos da criação, um número mínimo de páginas que seriam produzidas anualmente diretamente pelo estúdio do quadrinista (incluindo pagamentos bem gordos por elas) e, dizem, a garantia de que seria creditado por toda a eternidade como o único criador do Batman.

Alheio a tudo isso, Finger continuou envolvido com o herói e, em Batman #1, ele co-criou o Coringa ao lado de Kane. A base é bem clara: o protagonista do filme O Homem Que Ri, interpretado pelo Conrad Veidt. Apesar do próprio Bob Kane confirmar que Finger esteve envolvido na origem do vilão, até essa história é bem polêmica. Jerry Robinson, assistente de arte do Kane, morreu afirmando que ele havia criado Coringa, versão confirmada por alguns historiadores.

Finger também dizia que foi o criador do Pinguim (algo disputado pelo Bob Kane), do Charada e do Homem-Calendário, além de ter escrito as primeiras aparições do Espantalho e da Mulher-Gato. Outros importantes elementos iniciais do personagem, como a Batcaverna, o Batmóvel, o Robin e até o nome de Gotham City foram criados ou co-criados pelo roteirista.

Em vida, Bill Finger nunca recebeu nem crédito, nem nenhum centavo

Apesar de ter sido importante nesse começo do Homem-Morcego, Bill Finger desenvolveu uma má-fama de ser extremamente lento ao escrever, isso numa época que o personagem já tinha inúmeras revistas mensais com diversas HQs em cada uma. Tanto é que, em certo momento, ele chegou a ser substituído por Gardner Fox, mas acabou voltando. Finalmente, Finger deixou o estúdio liderado por Bob Kane e foi trabalhar diretamente pra DC e pra a outra editora do grupo, a All-American Publications.

Foi lá que ele co-criou o primeiro Lanterna Verde, Alan Scott, e o Pantera, entre outros personagens e elementos que são característicos dos heróis da DC Comics até hoje. Porém, isso se perdeu – ao menos do grande público. É que os créditos nas HQs da editora foram se tornando coisa rara, o que levou o nome de Finger a continuar quase que totalmente despercebido pelos leitores. Crédito só constava lá em casos raros, nos quais havia alguma obrigação contratual. Era o caso de Bob Kane com o Batman, claro.

Nos anos 80, Kane chegou a dar entrevistas em algumas oportunidades, afirmando que Finger merecia sim ser citado como o co-criador do Homem-Morcego, inclusive em sua auto-biografia Batman and Me. Mas ele nunca teve ações práticas para isso.

Bill Finger, em vida, não só nunca recebeu nenhum crédito pelo Batman, como nunca viu ao menos um centavo pelo personagem além daqueles pagamentos por página que escreveu.

Michael Keaton de Batman, ao lado do Bob Kane

Michael Keaton de Batman, ao lado do Bob Kane

Foi apenas em 2007 que, pela primeira vez, a DC Comics emitiu um press release no qual citava que Finger havia criado o Batman ao lado de Kane. Ano passado, rolou o nome na capa como roteirista na republicação da estreia do personagem, que comemorava os seus 75 anos. Agora, de acordo com o Hollywood Reporter, o nome de Bill Finger vai aparecer creditado na segunda temporada da série de TV Gotham e no filme Batman vs. Superman, sendo a primeira vez que seu nome aparece em outra mídia, algo histórico e importante.

O comunicado oficial sobre o assunto informa que a “DC Entertainment e a família de Bill Finger estão felizes em anunciar que chegaram a um acordo que reconhece a importante contribuição do senhor Finger para o universo de personagens Batman” – por “família”, entenda-se Athena, neta e única herdeira conhecida do quadrinista.

Além disso, Diane Nelson, presidente da DCE, diz que “Bill Finger foi fundamental no desenvolvimento de muitos elementos-chave que enriquecem o universo do Batman, e estamos ansiosos para construir o reconhecimento desse papel significante na história da DC Comics”.

Batman vs Superman

Bonito, né? Bonito, sim, principalmente se você pensar que muita gente na indústria dos quadrinhos lutou e pressionou por esse reconhecimento. Mas... Reparou que o comunicado não diz com todas as letras que Finger co-criou o Batman, que é algo que está nas entre-linhas? Bom, pode ser que a DC, por conta daquele contrato eterno, seja proibida de fazer isso.

Se essa história for verdadeira – o que o comunicado da DC Entertainment dá a entender que é, sim – é provável que não veremos nenhum “Batman created by Bob Kane and Bill Finger”, talvez algo como “Batman created by Bob Kane, with elements and inputs from Bill Finger”. Mas só vamos ter certeza quando a segunda temporada de Gotham estrear, o que acontece hoje, segunda (21).

Mesmo que for assim, por linhas tortas, essa não deixa de ser a solução de uma injustiça que já dura mais de 75 anos.

Pena que Bill Finger morreu 1974, com 59 anos, e nunca teve a oportunidade de ver esse rolo finalmente resolvido. De qualquer forma, pode ter certeza que ele está sorrindo, esteja onde estiver. Afinal, o mundo finalmente poderá agradecê-lo por ter ajudado a criar um dos maiores heróis da mitologia moderna.