As primeiras HQs produzidas no Brasil estão disponíveis de graça na internet! | JUDAO.com.br

Senado Federal faz parceria com app e liberou de graça Memórias d’O Tico-Tico, As Aventuras de Nhô-Quim & Zé Caipora e O Guarani

Pouca gente sabe disso mas, desde 2002, o Senado Federal oferece um serviço chamado Biblioteca Digital. Basicamente, estamos falando da digitalização, para download em PDF, de obras clássicas da nossa literatura. Assim, simples, fácil e direto, de graça, sem entraves. Parte deste acervo inclui também, vejam vocês, histórias em quadrinhos. Aquelas dos primórdios da produção cultural do nosso país.

A treta é que além do serviço ser pouco conhecido, o visual do site é bem pouco atraente pro leitor eventual de gibis, por exemplo, numa pegada bem internet do começo dos anos 2000, quadradão, coisa e tal. Então, numa tentativa de tornar não apenas o serviço mais popular mas também disseminar um pouco mais como tudo começou por aqui para um público que, ainda bem, começa a dar mais atenção à produção daquele bando de manos e minas ralando um bocado nas Alamedas dos Artistas da vida, o Senado fechou um acordo com o aplicativo Social Comics pra liberar a leitura de pelo menos três títulos destes icônicos por lá também.

Sim, a gente sabe que o Social Comics é pago, coisa e tal. Maaaaas o legal aqui é que você pode baixar o app e criar uma conta gratuita. E aí vai poder ler na íntegra Memórias d’O Tico-Tico, As Aventuras de Nhô-Quim & Zé Caipora e O Guarani.

O nome O Guarani, que você pode reconhecer das aulas de literatura, é isso mesmo que você tá pensando: uma versão em quadrinhos do romance icônico de de José de Alencar, publicada originalmente no ano de 1937. Atualmente em domínio público, a obra de 1857, publicada primeiro no formato folhetim, é de longe a mais popular de Alencar — ambientada na primeira metade do século XVII, nas florestas lá do interior do Rio de Janeiro, a trama gira em torno do índio Peri, da tribo dos Goitacases, parceiro fiel do fidalgo português D. Antônio de Mariz e, portanto, protetor incansável de sua filha Cecília (a quem passamos a conhecer pelo nome de Ceci).

A adaptação ficou a cargo do pintor, jornalista, historiador e ilustrador carioca Francisco Acquarone, que atendia pela alcunha de F. Acquarone. Entre os anos 1937 e 1938, o cara se especializou em fazer estas versões de romances para o formato HQ. No jornal O Globo Juvenil, por exemplo, fez a quadrinização de Os Primeiros Homens na Lua, de H.G. Wells, e As Minas de Prata, do mesmo José de Alencar. O trampo com O Guarani rolou para o jornal Correio Universal — e são justamente as 122 páginas deste volume 235 da publicação que estão disponíveis para leitura.

Já no caso de Memórias d’O Tico-Tico, estamos falando de uma edição especial organizada pelo pesquisador Athos Eichler Cardoso e com imagens restauradas por Josias Wanzeller da Silva, que reúne raridades da revista O Tico-Tico, a pioneira na publicação de quadrinhos no país, lançada pelo jornalista Luís Bartolomeu de Souza e Silva e que circulou, via editora O Malho, entre os anos de 1905 e 1977. Foi nesta revista que personagens como Mickey Mouse (aqui batizado originalmente como Ratinho Curioso), Krazy Kat (Gato Maluco), Popeye (Brocoió) e Little Nemo deram as caras pela primeira vez. Esta edição especial, no entanto, tem as primeiras experiências gráficas de José Carlos de Brito e Cunha, o J. Carlos, com aquele que podemos considerar o primeiro herói nacional dos quadrinhos infantis: Juquinha, surgido em fevereiro de 1906.

O personagem, que chegou a superar em popularidade outra estrela da revista, o Chiquinho (que depois descobriu-se ser “inspirado” no personagem Buster Brown, do americano Richard Felton Outcault), era o típico garoto travesso de classe média que começava a trazer elementos do cotidiano brasileiro. Um de seus amigos era justamente o primeiro personagem brasileiro negro dos quadrinhos (representado, como você pode ver, de maneira bastante problemática), um garoto que atendia pelo nome de... Giby. O coadjuvante se tornou tão, mas tão marcante pros leitores que seu nome virou sinônimo de “moleque”, foi ainda mais aportuguesado/simplificado, ganhou um I no final e mais tarde se tornou aquele sinônimo de história em quadrinhos no Brasil que tanto conhecemos (muito, obviamente, graças à revista de mesmo nome que o Grupo Globo publicou a partir de 1939).

As Aventuras de Nhô-Quim & Zé Caipora

O terceiro título, no entanto, merece uma atenção especial: As Aventuras de Nhô-Quim & Zé Caipora é uma reunião de tiras de duas HQs que, além de serem consideradas as primeiras do nosso mercado (ou, pelo menos, as primeiras a concentrar a maior parte dos elementos narrativos da arte sequencial que lhe permitam ser chamada como tal), também são algumas das mais antigas de que se tem notícia no planeta.

Estamos falando de uma compilação de 2002, que a editora do Senado Federal publicou impressa reunindo os dois famosos personagens escritos e desenhados pelo italiano Ângelo Agostini, aquele mesmo que dá nome a uma das mais tradicionais premiações dos melhores das histórias em quadrinhos no Brasil. Estamos falando de tiras que ocupavam as páginas centrais da revista Vida Fluminense a partir de janeiro de 1869 (vinte anos antes da Proclamação da República, pense nisso).

Sobre Nhô Quim, são as desventuras bem-humoradas de um caipira tentando se adaptar à vida na cidade grande, neste Brasil ainda em clima imperial — que depois seria substituído no papel principal pelo tal Zé Caipora que, de alguma forma, segue a mesma lógica, só que levando um atrapalhado homem urbano vivendo no Rio de Janeiro do final do século XIX para o ambiente da roça, lidando com bichos, índios e afins.

No geral, sim, as três leituras são clássicas e obrigatórias, claro, mas vamos levar em consideração que estamos falando de obras DATADAS, ainda cheias de estereótipos de gênero e etnia, que podem e DEVEM ser discutidos — e que, no fim das contas, também nos ajudam a entender como evoluímos enquanto sociedade e enquanto produtores/consumidores de arte. E, ao perceber certas coisas que ainda não mudaram, também nos mostram como ainda precisamos evoluir MUITO mais.