Walt Disney, agente do FBI | JUDAO.com.br

O criador do Mickey Mouse esteve muito próximo de J. Edgar Hoover e seus G-Men — não só delatando colegas de Hollywood, como também planejando peças de propaganda para o Bureau

Walter Elias Disney sempre foi visto como um empreendedor inteligente, visionário, um cara que gostava de falar que construiu um império a partir de um rato. Quando morreu, deixou inúmeros curtas e longas metragens clássicos, um grande estúdio, a Disneyland e os projetos para o que seria a DisneyWorld. Um legado que continua até hoje e não para de crescer.

Mas ele não era SÓ isso. Seu trabalho não é SÓ esse dos sonhos e magia e enfim.

Não sei se você sabe, mas lá nos EUA existe o Freedom of Information Act, uma lei de 1966 que dá direito a divulgação total ou parcial de arquivos do governo dos Estados Unidos, desde que tenham informações que não mais sejam consideradas confidenciais. Basta pedir. E, bom, o jornalista Pat Brown resolveu pedir a ficha do FBI sobre o nosso querido VALDISNEI recentemente. Antes disponível apenas por arquivos físicos, a ficha corrida do grande nome da animação foi finalmente liberada na internet, e tem, acreditem, 315 páginas — incluindo não só delações feitas pelo Disney, mas também detalhes de suas atividades e participações em outras organizações. J. Edgar Hoover, o famoso diretor do FBI, era realmente minucioso.

Como qualquer arquivo de órgão público, os documentos são uma bagunça. Não há uma ordem cronológica, por exemplo. Mas dá pra identificar que um dos primeiros encontros entre Disney e os G-Men foi em 1936, quando coletaram impressões digitais do pai do Mickey – você sabe, Hoover sempre foi um entusiasta desse tipo de técnica na resolução de crimes. Depois, acompanharam pela imprensa a movimentação de Disney nos sindicatos dos Diretores e Cartunistas, além de receberem relatórios sobre como ele se portava.

DisneyMas foi a partir de 1941 que a PARCERIA começou. Os animadores da Walt Disney Studios fizeram uma greve naquele ano, que teve como estopim a demissão de 19 funcionários – de acordo com o próprio Disney nos documentos oficiais, foram demissões causadas pela queda nos espectadores fora dos EUA, algo motivado pela Segunda Guerra Mundial.

Um oficial do escritório do FBI em Los Angeles foi ouvir Disney sobre a greve, e contou tudo num relatório. Em certo momento, o agente diz que eles não estão interessados na relação empregado-patrão, mas sim em “possíveis violações criminais”. Daí não dá pra ler mais nada, tudo censurado, mas, pela extensão, dá pra entender que o agente e Walt trocaram muitas figurinhas sobre a atividade sindical na Hollywood do começo dos anos 40 – quando Hoover e seus agentes já temiam o “perigo vermelho” e havia muita tensão com os sindicatos.

O relatório continua. Em 1944, um grupo de PICAS GROSSAS de Hollywood (indo de Walt Disney à Gary Cooper, passando por gente como Cecil B. DeMille, Ronald Reagan, John Wayne e Walter Brennan) formou o Motion Picture Alliance for the Preservation of American Ideals, que, basicamente, servia pra defender os diretos dessa galera contra o crescimento da presença dos “reds”, como eram chamados os comunistas. Uma organização que foi acompanhada pelo FBI também pelos jornais, com vários recortes presentes no arquivo sobre Walt.

O medo comunista, aliás, era bem grande: há também um editorial da Variety que conclama os políticos a nomearem quem eram os “reds” infiltrados em Hollywood.

Disney se tornou “amigo” do FBI na caça aos Comunistas

Com esse ~clamor e a partir dos contatos estabelecidos antes, Disney se tornou “amigo” do Comitê de Atividades Antiamericanas, que surgiu na Câmara dos Representantes (tipo a nossa Câmara dos Deputados) e servia justamente pra “manter longe” o perigo comunista dos “lares americanos”. A participação dele nesse comitê também é narrada em diversos trechos do arquivo, seja em matérias de jornal ou em documentos oficiais. O objetivo do grupo? Dar nomes aos bois vermelhos.

Walt Disney indicou muita gente que ele achava que era comunista. Em testemunho numa dessas seções, ainda em 1947, ele chegou a indicar que David Hilberman (uma lenda da animação, um dos responsáveis por Branca de Neve e os Sete Anões e um dos líderes da greve de 1941) era aliado dos comunistas porque “nº 1, ele não tinha religião e, nº 2, ele tinha passado muito tempo no Moscow Art Theater estudando direção de arte, ou algo assim”.

Ignorância não é desculpa, Walt: o Moscow Art Theater é uma companhia de teatro fundada em 1898 e importantíssima pra história do entretenimento, inclusive influenciando a atuação moderna e o desenvolvimento do teatro norte-americano. Deve ser um ótimo lugar pra estudar direção de arte, né?

Há alguns trechos dessas seções na internet, que podem te ajudar a entender o clima daqueles tempos — e ouvir as declarações saindo da boca do próprio Walt.

O resultado desse comitê é bem conhecido: a Lista Negra de Hollywood, instituída no final de 1947 e com nomes de jornalistas, radialistas, músicos, atores, roteiristas, diretores e produtores que seriam ~comunistas, atrapalhando a carreira de muita gente. Até o Orson Welles, em certo momento, esteve nela.

Walt Disney acreditava que tinha realmente um grande aliado no FBI. Em 1954 ele já era classificado como um “contato próximo” pelo escritório de LA, sempre passando informações pra eles. Num desses papos, o executivo ofereceu a Disneyland, que seria inaugurada no ano seguinte, para “assuntos oficiais e para propósitos educacionais”.

Depois, em janeiro de 1956, um memorando para o diretor assistente do FBI e número 3 da organização, Louis Nichols, afirma que Disney se ofereceu pra produzir trechos do Mickey Mouse Club, que já era exibido pela ABC, pra mostrar o quanto os agentes do FBI eram incríveis e como as impressões digitais “servem para propósitos humanitários”. No final, o agente descreve Disney como um contato que “tem sido muito útil”.

Hoover e o FBI notoriamente patrocinaram filmes e séries para elevar a imagem do FBI e acabar com o charme que os gângsteres tinham construído nos anos 20 e 30. Porém, daquela vez, não seria tão fácil. “Acho que não devemos”, diz a resposta, escrita à mão provavelmente pelo Mr. Nichols.

Só que Walt não desistiu. Um pouco mais de um mês depois, no final de fevereiro de 1956, ele procurou o FBI pra uma nova proposta. Além de falar mais uma vez do Mickey Mouse Club, que teria um quadro mostrando como seria a profissão de G-Men, ele propôs uma exibição sobre como o BUREAU usava a ciência para investigar os crimes, que ficaria na seção Science of Tomorrow da Tomorrowland, lá na Disneyland. Só que os visitantes precisavam pagar ingresso pra visitar a exposição (não havia um ~passaporte pra toda a Disneyland, mas sim bilhetes de admissão pra cada brinquedo), o que não era o tipo de esforço que o FBI apoiava. “Eu não penso que possamos fazer algo”, respondeu, mais uma vez à mão, o Mr. Nichols.

Já em novembro 1956, J. Edgar Hoover (numa carta que não tá assinada, sendo redigida numa máquina de escrever e assinada com um CARIMBO) felicitava Walt Disney por receber um prêmio pelo “Conjunto da Carreira” do Sindicato dos Produtores de Cinema. Numa carta também datilografada, mas assinada à mão, o próprio Walt agradecia a lembrança do diretor do FBI.

J. Edgar Hoover

J. Edgar Hoover

De alguma forma, Disney deve ter visto naquela singela troca de cartas que nenhum dos dois escreveu como uma deixa pra finalmente fechar alguma parceria com o FBI. Em março de 1957, ele enviou os produtores Bill Walsh e Bill Park pra tentar mais uma vez emplacar algo no Mickey Mouse Club, que, de acordo com os documentos, teria naquele momento uma audiência de 18 milhões de pessoas. Tem mais: eles também queriam produzir, dentro do programa, um especial sobre os 25 anos do Laboratório do FBI.

Depois de algum vai e vem, finalmente o FBI topou a brincadeira e um cinegrafista começou a gravar as cenas em Washington. Ah, sim, claro: havia a condição dos agentes aprovarem tudo antes da exibição em rede nacional. Dessa forma, quatro curtas foram produzidos com a presença do ator Dick Metzger, que tinha 14 anos e era escoteiro — pra alegria do Bureau, mas isso não impediu de investigarem a vida do pai do garoto. As gravações incluíram também uma rápida aparição do próprio J. Edgar Hoover.

Após ver o primeiro corte, o FBI fez dezenas de observações, como retirar um trecho que Dick pega em uma arma carregada e melhorar a “sequência lógica” das cenas, entre outras coisas. O roteiro também consta no arquivo, incluindo marcações para excluir algumas cenas.

Só que os G-Men queriam assistir a versão final antes da exibição, e sabemos como Walt Disney era com essas coisas – é só ter assistido a Walt nos Bastidores de Mary Poppins pra saber como ele reagiu com esse tipo de demanda vindo da P.L. Travers. Mas tinha sido essa a condição pro projeto acontecer desde o começo, então as coisas chegaram num nível no qual o próprio J. Edgar escreveu exigindo ver aqueles filmes.

O FBI conseguiu finalmente ver o material no dia 24 de janeiro de 1957, com a exibição da primeira parte finalmente acontecendo três dias depois. Hoover mais uma vez escreveu para Walt, mas desta vez elogiando o trabalho feito. Só que era tarde, afinal Disney havia manchado sua imagem de bom ~colaborador.

Ele até tentou, anos depois, repetir a parceria, agora produzindo alguns trechos do Mickey Mouse Club para advertir as crianças sobre o perigo de molestadores, motivado pelo assassinato da pequena Rose Marie pouco antes. Não deu certo: por conta da (má) experiência anterior, o FBI nunca mais faria uma parceria do tipo com Disney.

E assim, vítima do próprio excesso de vigilância que ajudou a incentivar, acabou a carreira de Walter Elias Disney como agente do FBI. Ele morreria em 1966, aos 65 anos.