8P! Roberto Spinelli e seu Lovecraft à brasileira | JUDAO.com.br

Cineasta se inspira na obra do Rei do Indizível e faz um média metragem nacional citando Cthulhu e sua turma – e que já foi até exibido no Festival de Cannes desse ano

Físico, pianista, pesquisador em história medieval e cineasta, um cara cujo conjunto de paixões inclui a música, a forjaria de armaduras, tango, futebol americano, mecânica quântica e H. P. Lovecraft. Com uma descrição dessas, um sujeito como Roberto Spinelli, do alto de seus 34 anos, já desperta curiosidade. Mas como se não bastasse, o cara dirigiu um média metragem de 34 minutos com Lovecraft no DNA e que teve sua estreia no Festival de Cannes desse ano. É pouco?

O Caso do Paciente Paulo Eduardo Kelley é uma louvável e singular incursão em nosso cinema de Lovecraft, consagrado escritor do universo fantástico, criador do horror literário moderno, pai do tentacular Cthulhu e do famigerado Necronomicon, o livro proibido dos mortos. A mitologia de Lovecraft já abasteceu Hollywood com seus textos adaptados em filmes como Re-Animator – A Hora dos Mortos-Vivos, Do Além, Dagon, Morte Para um Monstro, À Beira da Loucura, entre outros, e inspirou a vida de gente do naipe de Stephen King, Neil Gaiman, Guillermo Del Toro e John Carpenter. Fora as influências diversas que vão de Star Wars até Evil Dead, passando por Piratas do Caribe até chegar em Game of Thrones.

Feito na cara e na coragem por um fã confesso do escriba de Providence desde os 18 anos, com pouco mais de 4 mil reais, muita brodagem dos envolvidos e quatro anos para ser finalizado, o filme explora de forma honesta, dentro de suas limitações, o viés psicológico do terror cósmico e sorrateiro que espreita nos cantos escuros e os tétricos efeitos de invocar essas terríveis deidades pré-diluvianas na cozinha de casa.

Produzido pela Labirinto Filmes, da qual é sócio, O Caso do Paciente Paulo Eduardo Kelley conseguiu captar muito bem a essência do mal indizível que Lovecraft gosta tanto de escancarar em seus textos.

Na história, Paulo E. Kelley (Rodrigo Bulgarelli) procura a ajuda de um renomado psiquiatra especialista em hipnoterapia, Dr. Claudio Gassner (Murilo Meola). O homem está traumatizado por visões e pesadelos, tentando se ver livre de algo que não pode se lembrar, mas que vem mexendo com seu psicológico e lhe trazendo um medo primal. Todos os estudos, experiências e sessões de hipnose têm se mostrado ineficazes, e conforme o Dr. Gassner vai adentrado na psique de seu paciente e descobrindo seus feitos, cada vez mais se aproxima do limite entre a razão e a loucura. Mais Lovecraft, impossível!

Poster-Caso-Kelley_02-PT-LowO JUDÃO bateu um papo exclusivo com Spinelli sobre sua elucubrações lovecraftianas, a dificuldade de fazer cinema de gênero no país, a escolha pelo terror psicológico ao invés da dupla de sucesso gore/sexo, como foi ver o filho exibido em Cannes e qual conto ele levaria às telas se tivesse orçamento à sua disposição.

1 Como surgiu a ideia de fazer um filme inspirado na obra do H.P. Lovecraft? Aliás, como Lovecraft e o cinema de terror entraram na sua vida?
Comecei lendo-o ainda garoto, 18 anos acho, e me vi viciado naquele horror indizível que flerta com seres ancestrais e realidades tétricas. Lia compulsivamente. Como estudante de física na época, me pegava imaginando algumas das implicações das viagens espaço-temporais descritas por Lovecraft. Todas as minhas aulas de Física Relativística nunca foram tranquilas. Não por conta da complexidade das contas ou da dificuldade dos conceitos – Lovecraft já tinha me feito tais desafios antes. Mas sempre havia uma sombra de terror incomensurável espreitando naquelas dobras temporais, naqueles espaços transdimensionais.

O cinema de terror também me pegou de pequeno, principalmente os mortos-vivos de Romero e os pesadelos de Freddy Krueger. A gente cresce e vai amadurecendo, mas o tema zumbi continua sendo um dos meus preferidos. Apenas me irrito em como, em todo filme do gênero, invariavelmente os sobreviventes sempre acabam cometendo erros idiotas. Às vezes sinto que é uma saída do roteirista para poder resolver certas cenas. Ainda vou filmar minha versão do apocalipse zumbi, mas sem QIs abaixo da média dessa vez. A ideia de fazer um filme inspirado em Lovecraft surgiu sem querer, num brainstorm com alguns amigos (e futuros sócios na produtora Labirinto Filmes) enquanto procurávamos um argumento de tema fantástico para filmar. Seria mais um exercício, sem grandes pretensões. Quando o tema central do filme surgiu – o paciente que precisa se esquecer de algo que não pode se lembrar – sabíamos que era algo para guardar na manga, para filmar mais tarde. Alguns meses depois estávamos roteirizando.

2 A ideia era explorar mais o terror psicológico ao invés de uma escolha fácil em apelar para o gore e forte conteúdo sexual, conceitos em voga no cinema de terror hoje em dia. Como surgiu a escolha desse caminho?

Em sua obra, H.P. retrata prolificamente o terror que vem do mero contato com seres ou objetos ancestrais de origens cósmicas. Os personagens oscilam nos precipícios entre razão e loucura, desafiados por conceitos inomináveis e realidades que não se podem nomear. Não que o gore não faça presença aqui e ali, numa mesa de cirurgia de Herbert West – Reanimador ou em carcaças devoradas em Nas Montanhas da Loucura, mas a minha experiência do terror lovecraftiano sempre foi, antes, mental e psicológica. Me surpreendo, na verdade, como a grande maioria dos filmes inspirados no autor acabam caindo no expediente gore/sexual padrão do cinema de terror. Lovecraft nos brinda com tantos conflitos mentais que é quase um convite ao terror psicológico.

3 No caso dos atores e equipe, foi aquele caso de amigos que se juntam e fazem a coisa acontecer? Todos dividem a paixão pelo Lovecraft, terror e literatura fantástica?

Embora o filme foi finalizado em 2015, nós o rodamos em 2011. Naquela época eu tinha recém concluído um curso de cinema e precisava filmar. O roteiro foi escrito por quatro pessoas (Spinelli, Thiago Meyer, Pedro Ambra e Dominick Meyer), todos amigos e cineastas, mas era eu o mais aficionado por Lovecraft e meio que contagiei a galera. Era cinema independente, sem verba, e portanto chamamos alguns dos colegas de curso que toparam entrar na camaradagem. Os atores, embora profissionais, eram amigos meus de outros curtas e também acreditaram no projeto.

4 Você disse que gastou R$ 4 mil para fazer o filme. O dinheiro saiu do bolso de vocês? Como foi se virar com essa engenharia financeira?

Cada um ajudava com o que podia. Depois resolvemos vender camisetas do filme (que hoje são superexclusivas e disputadas) para completar os R$4.300,00 usados para confeccionar os props, alugar equipamentos e cobrir os gastos de produção. Ainda assim, alguns objetos, em especial o livro Cthäat Aquadingen – um tomo ancestral, com capa de couro, encadernação antiga e páginas empedernidas – tiveram que ser produzidos à mão pelo diretor de arte, que até foi buscar consultoria sobre tal técnica. Com uma verba tão curta estava claro que toda a pós produção seria feita pela gente: montagem, edição, efeitos visuais, colorização, edição e mixagem de áudio, trilha sonora, etc. Justamente por isso demorou tanto – quase 4 anos – para finalizar. Éramos poucos para fazer tudo o que precisava, e nem sempre com tanto tempo livre.

5 O curta foi exibido no festival de Cannes deste ano. Como isso aconteceu? Conte como foi a experiência para você e sobre a recepção do público.

Foi uma grande alegria ser selecionado para Cannes, um dos mais importantes festivais do mundo. Pelo fato do filme ser um média-metragem (34 min) não poderíamos entrar na mostra competitiva que é apenas para curtas e longas, mas só o fato de entrar na programação do Short Film Corner e ser exibido dentro do Palácio do festival foi uma grande honra. Ao final da sessão o público aplaudiu e todos com quem conversei disseram-me ter gostado bastante. Eu estava num estado de felicidade tão indizível que só Lovecraft poderia descrever.

6 Já rodou em algum outro festival? Quais os próximos que ele será exibido?

Finalizamos em fevereiro e o primeiro festival para o qual enviamos o Caso Kelley foi justamente Cannes. Estamos começando a receber as respostas dos outros agora. Nenhum prêmio ainda, mas apenas iniciamos no circuito de festivais e a maioria só acontece no segundo semestre. Acabamos de ser informados que o filme foi selecionado para o Gen Con Film Festival, que ocorre dentro da Gen Con, o maior evento de jogos e RPG do mundo. Acredito que a temática vai agradar o público gamer / nerd / cult.

7 Fazer cinema de gênero no Brasil nunca é fácil. Ainda mais abordando um escritor nada popular como Lovecraft com um universo rico e difícil de ser levado às telas. Quais as principais dificuldades durante a produção, na apresentação do filme ou busca de patrocínio e apoio?

Conseguir patrocínio para falar para um nicho tão específico é muito complicado, por isso acabamos optando pelo cinema independente. Sobre o filme, eu queria contar uma história que pudesse ser apreciada por quem não conhecesse nada do universo de Lovecraft, e quem sabe até servir de convite para mergulharem em seus livros. Porém, o verdadeiro fã vai poder se brindar com uma porção de referências. O Yellow Sign está lá. Um dos tomos mais ocultos, o Cthäat Aquadingen, tem um papel central na história. Um ritual extraído da mitologia lovecraftiana é quase inteiramente profetizado. A narrativa, na qual o protagonista conta a história em retrospectiva, depois de ter sofrido o contato aterrador, imita o estilo do autor. Até o título do filme – O Caso do Paciente Paulo Eduardo Kelley – é uma paródia do livro O Caso de Charles Dexter Ward. Enfim, um prato cheio para o já apreciador do estilo.

8 Se você tivesse a chance da fazer um longa metragem, com orçamento à disposição, de um conto de Lovecraft, qual seria seu escolhido e por quê?

Há alguns anos eu diria o A Sombra de Innsmouth, principalmente pela cena que ocorre no hotel que ainda é vívida na minha memória, mas em 2001, Stuart Gordon filmou Dagon largamente inspirado neste conto e odeio fazer refilmagens. Minha segunda opção seria Nas Montanhas da Loucura, mas esse o Guillermo Del Toro está brigando com os estúdios desde 2004 para viabilizar a sua versão para o cinema.

Acho que ficaria com o O Templo, afinal, uma estatueta de marfim encontrada por um submarino nazista que vai levando gradativamente toda a tripulação à loucura enquanto os conduz para as profundezas do oceano, não atiça a curiosidade? Outra opção seria o Encerrado com os Faraós, que daria um ótimo thriller de terror numa aventura no estilo Indiana Jones.

Pensando bem, creio que a coisa mais expressiva de mostrar no cinema seria o labirinto invisível do conto Nas Muralhas de Eryx. Já consigo imaginar alguns enquadramentos nauseantes para retratar o terror de estar aprisionado num labirinto tortuoso cujas paredes não se pode ver. Ele também já mataria a minha vontade de filmar uma ficção científica, já que esse é um dos poucos contos do Lovecraft que se passam no futuro.