Conversamos com o roteirista da premiada história em quadrinhos nacional inicialmente sobre blues. Mas a coisa foi para muito além disso. ;)
“Cara, é uma loucura, né?”. Quando Rob Gordon diz esta frase, que descreve a sua sensação ao ver até onde o seu Terapia chegou, o roteirista transborda uma alegria quase infantil. Pudera: leitor de quadrinhos há mais de trinta anos, ele começa a escrever uma série deles na internet junto com Marina Kurcis e Mario Cau. Que vira um encadernado transformado em realidade via financiamento coletivo. Que começa a receber sucessivos elogios da crítica especializada.
“E, de repente, estamos nós três no palco do HQMix, recebendo um prêmio. Dois anos depois, estamos lá de novo. Puta sentimento bom de estar ali, de ver a história que nós criamos ganhar esse peso todo. Você tem vontade de sair dali, voltar para casa e escrever quinze, vinte páginas de uma vez só”, diz.
Neste papo com o JUDÃO, a gente fala sobre o futuro da série, sobre o processo criativo dele... mas começamos, claro, falando sobre blues, um gênero que Gordon ama tanto quanto o heavy metal, outra de suas paixões/obsessões musicais. Mas ele já avisa: “Muita gente acredita que Terapia é uma história em quadrinhos sobre blues. Eu não vejo assim”.
Então, como diria o mestre B.B.King: “Hey, everybody, let’s have some fun?”.
1 Por que a escolha pelo blues? Por que não o rock, por exemplo?
Para responder isso, eu preciso voltar lá para o começo de Terapia. Quando estávamos começando a desenvolver a história, eu percebi que o personagem central era muito carregado emocionalmente. Ele tinha muitas dúvidas e inseguranças. Ele precisava ter uma válvula de escape, de preferência uma forma de arte, onde ele pudesse expressar o que sente. Foi quando eu percebi que o blues seria perfeito para isso. Porque o Garoto é um outsider, um sujeito que não se encaixa muito bem no mundo onde vive. A paixão dele por blues antigos reforça isso. Eu tive amigos com quem conversava sobre música na adolescência; você também teve. Eu duvido que ele tenha um amigo que goste das mesmas músicas que ele, com quem ele pode conversar sobre isso.
2 Você acha que Terapia seria diferente se o gênero escolhido fosse, por exemplo, o jazz?
Sem dúvida. Como eu disse, o blues é uma válvula de escape do Garoto, mas a importância da música na história é ainda maior, porque o personagem praticamente pauta sua vida por esse tipo de música. Aliás, o blues é quase um traço de personalidade da história. Então, qualquer outro gênero musical faria Terapia ser diferente, não só porque o personagem central mudaria, mas a própria trama. Eu penso sobre isso, às vezes. Gosto muito de heavy metal também, então eu estou escrevendo uma página e penso “como isso aconteceria se ele gostasse de metal, e não de blues?”. Talvez a situação fosse a mesma, mas a resposta do personagem e o desenrolar da história certamente seriam diferentes se estivéssemos pensando em Slayer e não em Muddy Waters, porque são emoções diferentes. Certamente teríamos outro Terapeuta completamente diferente também.
3 Sei bem, pessoalmente, o quanto o blues é importante na SUA vida. O quanto Terapia tem de biográfico, na real?
Na verdade, ele tem muito de biográfico meu, da Marina Kurcis, que escreve os roteiros comigo, e do Mario Cau, que faz a arte. Essa é a vantagem de você escrever sobre uma pessoa comum: você pode levar suas experiências pessoais para o personagem. Mas a maior parte do que você vê na história são situações novas, criadas para o roteiro. Mas Terapia tem também situações inspiradas nas experiências pessoais de nós três. É curioso que quando começamos a produzir Terapia, nós três fazíamos terapia. Então, algumas situações vieram daí, das nossas próprias terapias. Mas tem passagens, também, que são baseadas em experiências de cada um de nós três, mas que vivemos anos atrás. Acho que em Terapia isso é bem dividido: temos uma parte igual de cada de um de nós três na história.
4 Aliás, como VOCÊ definiria Terapia para um leitor que nunca leu o gibi de vocês?
Boa pergunta, nunca pensei nisso. Muita gente acredita que Terapia é uma história em quadrinhos sobre blues. Eu não vejo assim. Eu também não acho que seja sobre psicologia, já que a função dela não é didática. Toda a base teórica de psicologia está ali, com a Marina. Mas isso não é uma repetição de teorias, a Marina aplica tudo aos diálogos para eles ficarem reais. De uns tempos para cá, eu tenho visto Terapia como uma história sobre a passagem da adolescência para a vida adulta, quando você começa a questionar onde seus sonhos se encaixam no mundo real. Acho que essa é uma das magias de Terapia: eu vejo a história de um jeito, e talvez o Mario veja de outro e a Marina de um terceiro modo. Mas, para a pergunta não passar em branco... Eu diria que é uma história sobre uma pessoa de vinte e poucos anos comum.
5 Quando está escrevendo Terapia, o que usa para se inspirar? Música, por exemplo? Existe alguma coisa que NÃO seja blues que funcione neste processo?
Depende. Muitos leitores que falam comigo perguntam qual blues eu ouço para escrever Terapia. Ou seja, eles já partem do princípio que eu ouço blues enquanto escrevo. Eu entendo isso, já que a história é totalmente ligada ao blues... Mas nem sempre eu ouço blues quando escrevo. Eu gosto de escrever com música, mas não necessariamente blues. Na verdade, eu tenho fases musicais, e fico passeando pelo que gosto. Tem momentos que ouço rock clássico o dia inteiro; aí eu mudo e fico dois meses ouvindo música clássica; depois, três meses ouvindo heavy metal... Então eu costumo escutar o que estou ouvindo no momento. Isso vale para qualquer coisa que eu escrevo – e se eu desligo a música no meio do texto é porque ele está difícil de fazer. Mas em Terapia muitas vezes eu preciso ouvir blues, não para me inspirar, e sim como fonte de pesquisa, já que muitas vezes músicas e trechos de letras são citados na trama.
6 Escrever uma HQ tão intimamente ligada à música nunca te fez ter vontade de... Escrever música?
Ôpa, muito. Mas acho que isso vale para qualquer fã de música, né? Na verdade, eu já escrevi um blues. Foi quando eu fiz minha tatuagem com a capa do Blues do Robert Crumb no braço e, para falar sobre ela, eu escrevi um pequeno blues no meu blog (naquele esquema blues clássico mesmo, com estrofes compostas por três versos, que são pergunta, repetição da pergunta e a resposta). E foi extremamente divertido. Na verdade, nós temos ainda que escrever e gravar blues, como recompensa do Catarse. Não rolou ainda pela questão geográfica – eu e a Marina moramos em São Paulo, o Mario em Campinas – mas vai acontecer.
7 Quais são os próximos planos para Terapia, aliás? Um novo encadernado?
Um novo encadernado, com certeza. Mas temos que esperar a história avançar um pouco mais. O primeiro Volume contou com sete episódios, a ideia é fazer o segundo com o mesmo número de páginas de quadrinhos, além do material extra. Depois disso... Bem, nós já estamos conversando sobre o final de Terapia. Isso acontece faz tempo, na verdade. Mas, de uns meses para cá, estamos conversando de forma mais concreta, já pensando em pontas que podemos começar a amarrar. E aí... Bem... E aqui eu falo por mim. Eu acho que tem outras histórias de Terapia que merecem ser contadas. Personagens que aparecem rapidamente, cumpriram seu papel na trama mas... Não sei. Eu gostaria de contar a história de alguns deles. Talvez uma edição especial? Uma participação em uma coletânea do Petisco? Não sei, é algo que precisaria ser conversado.
8 Quais são os próximos planos para Terapia, aliás? Um novo encadernado?
Nós nunca pensamos, mas quem pensou foi um leitor. Uns meses atrás recebemos um e-mail... Eu não lembro ao certo o que era, mas era algo sobre um trabalho de faculdade em que Terapia ia virar um curta ou uma peça de teatro. Mas nunca vingou, nunca mais ouvimos falar disso. Mas eu acho que funcionaria sim como um curta, ou mesmo como uma peça de teatro. Mesmo porque a linguagem é parecida, né? Não é exatamente igual, mas é parecida. Terapia foi a primeira HQ que escrevi. Então, eu me baseei no meu próprio repertório de leitor de quadrinhos para aprender a dar ritmo nas páginas. Mas também usei muito o cinema. Tem páginas que eu escrevo pensando puramente em cinema. Algumas páginas o roteiro apenas indica onde a ação se passa e dá uma pinceladas gerais; mas, em outras, a parte visual já está toda escrita no roteiro. Alguns capítulos atrás eu me lembro de colocar para o Mario uma referência indicando cenas do Sergio Leone para guiar os “cortes” de um quadro para o outro. Então as linguagens meio que se misturam. Provavelmente mais cinema que teatro, mas eu acho que daria para adaptar sim.
Três músicas que definiriam bem Terapia.
Putz, só três? Vamos lá. Eu iria de The Sky is Crying, do Elmore James, porque gosto de usar a chuva como elemento narrativo. Everyday I Have the Blues, na versão do Memphis Slim, pois é sobre isso que é nossa história, né? Sobre aquele blues que não sai da alma, não importa o que você faça. Mas eu tenho certeza que o Garoto adoraria que eu colocasse The Healer aqui. A versão do John Lee Hooker com o Santana.
Três músicas que seriam uma ótima trilha para ouvir Terapia.
A primeira que me ocorre é First Time I Met the Blues, do Buddy Guy. Crossroad, do Robert Johnson também, para dar aquele toque de lama, de estrada de terra. E fechamos com How Long, How Long Blues, do Leroy Carr.
Uma música que define o seu processo criativo para escrever Terapia.
Aqui é mais fácil. Aqui com certeza seria I Can’t Be Satisfied, do Muddy Waters. É o sentimento que eu uso para escrever. A nova página precisa ser melhor que a anterior, o novo capítulo precisa ser melhor que o anterior.
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