Em busca de alguma identidade para o homem médio | JUDAO.com.br

Caos. Perdição. Desesperança. Abuso. Loucura. Precisamos quebrar as primeiras regras do Clube da Luta.

Você lembra onde estava quando viu um filme que te mudou, mesmo que você não tivesse, na época, a idade, a experiência ou até mesmo o vocabulário para entender aquilo que viu. É até melhor assim. Você vai voltar e revisitar aquela casa, vai descobrir novos cômodos, vai tentar trocar a fiação pra ver se a luz funciona. Chega um dia em que o filme é completamente outro.

O sentimento quase não existe mais porque VOCÊ não existe mais — pelo menos, não aquele adolescente que se sentiu legitimado décadas atrás.

Para muita gente — muita mesmo — esse filme é Clube da Luta. O… drama? Thriller? Filme de luta? Enfim, a obra de David Fincher ensinou para muita gente nova o que o cinema podia fazer e do que ele era capaz. A adaptação do livro de Chuck Palahniuk chamou a atenção de meio mundo mundo pelo discurso anti-consumismo, pela jovialidade vibrante de se sentir liberto porque tomou um soco na cara. Mas todo mundo ficou tenso mesmo por causa do sabonete.

Edward Norton interpreta um cara comum demais. Que nem merece nome. Que se encontrou preso no paradoxo da ESTASE dos anos 90

É meio difícil imaginar, mas houve uma época em que alguém pensou que “estava tudo bem”. Que não havia mais nada para mudar, que a vida poderia continuar dia após dia indefinidamente. E isso pode criar a estagnação existencial de qualquer pessoa cuja vida é só feita de sentidos comprados a preço barato.

A trágica ironia, especialmente para um filme que tem o final que Clube da Luta tem, é que quase dois anos depois do lançamento, no dia 11 de Setembro, o século XXI começaria duro e sem piedade. O mundo seria outro, sem espaço para calmaria no mar.

O marasmo da existência pela existência, no qual o consumismo vira oxigênio, não cria um caminho feliz. Gera horror. Gera pânico. Para o garotão que não tem mais para onde ir, a solução é procurar traumas. E no trauma, pulando de um grupo de ajuda psicológica para outro, só pela catarse emocional e mais nada, o Narrador encontra até uma iluminação espiritual. Chora, cria um Santo Sudário nos imensos peitos de um outro homem que chora. Mas nada disso dura. Quando uma mulher destrói sua casinha de palha, ele precisa voltar ao mais primário significado do que ele acha que ser homem significa.

Clube da Luta é um filme no qual um homem cria para si mesmo um mundo surreal onde ele vai se “sentir mais homem”.

Tyler Durden, o guru imaginário, pinta uma ilusão da maneira mais funcional possível, usando verdades sedutoras como tinta. A segurança e a estabilidade daquela época criou uma geração de homens-conforto que não tinha agência alguma. Eram só seres responsivos, reagindo ao marketing. Ninguém percebe isso, mas todo mundo sabe disso. Durden quer libertar seus colegas homens dessas amarras. Mas ele quer libertar também a mais adolescente masculinidade tóxica que é possível.

A agressividade aqui brota da depressão de não se ter mais sentido na vida. Ter que encarar a ideia de que “talvez, Deus não goste de você”. Mas se ela é focada somente no ato de responder, afunilada para ir CONTRA alguma coisa ao invés de construir, ela não vai tirar ninguém do lugar. Durden quer mudar a sociedade, mas infelizmente quer moldar a sociedade a si mesmo. Quer que o mundo siga sua vibe. Quer que a anarquia tenha um copyright.

Que tipo de soldado melhor do que o homem médio, sem foco e sem vida?

Deve ser um pouco frustrante para os criadores de um vilão tão emblemático como Durden verem o público tratá-lo como um Robin Hood. Um cara que inventa um exército fascista (Culto à personalidade? Check. Uniformezinho? Check. Falta de lógica? Check), acaba virando tatuagem de centenas de garotos por conta de seus epitáfios inteligentes e sua atitude provocadora. Um mágico cujo truque é fazer desaparecer responsabilidade e construtividade em prol de si mesmo.

Não há melhor metáfora para o que se tornou o “homem moderno”, a “masculinidade”. Ninguém tinha como prever o potencial profético de Clube da Luta. Aquele era um retrato perfeito da época mas, 20 anos depois, re-aplicamos o filme em seu “público alvo”, e o resultado é fascinante.

Nós ainda estamos batendo com a cabeça na parede e pensando que estamos construindo um mundo melhor. Ainda somos “Garotos de 30 e 40 anos”. E isso não tem a ver com “gostar de cultura pop”, “videogame”, “super-herói”. Crescer tem a ver com enxergar a si mesmo em si mesmo, e não num modelo aspiracional e imaginário do Brad Pitt que faz o que não conseguimos — ou em qualquer outro ponto focal de fala grossa que faz a gente lembrar que “somos machos pra caramba”.

Mais do que isso, ainda estamos com medo de quebrar as duas primeiras regras do Clube da Luta. Ninguém quer falar sobre nada disso. Ninguém quer falar sobre como o mundo criou homens disfuncionais. Só queremos continuar “disfuncionando”.

David Fincher no set de Clube da Luta com Edward Norton e Brad Pitt

David Fincher, depois de filmar um sem-fim de clipes musicais, começou a brincar com a ideia de longas metragens. Ele já tinha um clássico absoluto (outro filme que pondera sobre a depravação humana e estrela Brad Pitt) no bolso antes de dirigir Clube da Luta. E aqui ele já escancara mais daquilo que atingiria seu ápice em filmes como Zodíaco e A Rede Social.

Seu uso de câmera – funcional antes de qualquer coisa – é meticuloso, furioso e frio. Uma cena simples de diálogo vai longe em termos de quantos ângulos aborda porque Fincher é obcecado. E porque sua história precisa daqueles ângulos. Nada é preguiçoso, nada é inconsequente.

É sempre bom poder lembrar tanto como Brad Pitt consegue ser esquisito quanto do potencial fulminante de Helena Bonham Carter quando não está tentando ser uma caricatura. Edward Norton pode ser espetacular enquanto disfarçado de “completamente normal”, e nunca podemos esquecer que o filme que ele fez logo antes desse foi A Outra História Americana. A OUTRA HISTÓRIA AMERICANA. Essa ponte não dá para ignorar. E essas coisas todas, o Cinema com C maiúsculo, estão servindo a um propósito, como o próprio Durden diz, espiritual.

Encontrar o significado “do que é ser”, quando esse significado foi embora pelo ralo há muito tempo. Talvez um dos motivos pelo qual o filme “errou seu público” é que, no final, Durden atinge seu objetivo, explode os prédios e joga o mundo econômico no caos. O que não acontece no livro de Palahniuk.

Fincher, naturalmente, transforma a cena num cataclisma emocional perfeito, com a ajuda inesquecível dos Pixies e de sua equipe de efeitos especiais. Mas pensar que Durden vence no final é um pouco triste. Olhar para o mundo de hoje e ver a insanidade que é nossa vida é lembrar, um pouco, que Durden morreu, mas passa bem. Dentro de muita gente, mandando se rebelar “só por rebeldia e mais nada”.

Os filhos de Durden gritam e berram que são homens, e continuam o fazendo com violência, com trauma, ficando mais doentes a cada geração. E, no processo, acham que estão liderando o mundo.

São 20 anos. Já deu de regra um e regra dois.

Precisamos falar sobre o Clube da Luta.