Dorsal Atlântica e a música que não quer ficar em cima do muro | JUDAO.com.br

Batemos um papo com Carlos Lopes, a mente pensante por trás de uma das bandas mais importantes e malditas do nosso rock, e ele falou sobre o novo disco e também, claro, sobre política

“Contra todos e contra ninguém”, começa um tweet recente dos caras do Capital Inicial, cuja imagem complementa: “Ao invés de esquerda ou direita, por que não vamos pra frente?”. No momento social e político em que estamos, em especial depois da linha na areia que foi a execução de uma vereadora democraticamente eleita, não tinha comunicado mais bunda mole a ser feito, mais em cima do muro, mais “sou contra tudo isso que está aí”, sem se posicionar de fato, ainda mais vindo de uma banda de rock — um gênero musical que, historicamente, sempre esteve ligado à contestação, a questionar o status quo, a colocar a faca nos dentes sem medo do enfrentamento.

“A banda punk The Clash entendeu, em 1976, que se tocassem apenas música branca para brancos o discurso de liberdade seria inócuo”, explica o músico Carlos Lopes, em entrevista exclusiva ao JUDAO.com.br. “Ao aproximarem-se da comunidade jamaicana na Inglaterra, adotaram o reggae como mais um elemento de combate ao inimigo comum”.

O músico carioca, outrora Carlos Vândalo, pioneiro do heavy metal no Brasil, a inspiração que faltava para que os irmãos Cavalera colocassem o Sepultura de pé, defende que o rock, pelo menos, já perdeu e muito a sua função contestadora de influenciar a sociedade. “E quando digo rock, incluo punk, hardcore e metal nessa. São poucas as bandas que têm o que dizer e digo isso lirica, ideologica e musicalmente. O samba enredo de 2018 da Tuiuiti, o que mostrou o vampiro golpista, emocionou-me profundamente, melódica e liricamente. Não sinto a mesma emoção com o rock há muitos anos”.

São poucas as bandas de rock, punk, hardcore e metal que têm o que dizer e digo isso lirica, ideologica e musicalmente

Emoção, é bom que se diga, que o recém-lançado Canudos, o décimo álbum de estúdio da lendária e maldita banda Dorsal Atlântica, tem de sobra. Totalmente financiado via financiamento coletivo, o disco conceitual usa o episódio da Guerra de Canudos, o enfrentamento entre o exército brasileiro e o movimento popular liderado por Antônio Conselheiro, entre 1896 e 1897, como paralelo para o momento atual no nosso país. “Seus moradores, enjeitados sociais, ex-escravos e explorados sonhavam com uma vida melhor. Alguns em Canudos até tinham dinheiro mas deveriam submeter-se aos ditames de Conselheiro, que incluíam a repartição dos bens. O governo não poderia tolerar isso. O governo golpista ainda quer destruir Canudos”, explica ele.

Na verdade, a ideia de Lopes é que o último disco da banda fosse mesmo o Imperium, lançado entre 2014 e 2015, que previa a queda da presidenta eleita Dilma Rousseff. “Um disco sobre o golpe republicano que depôs o Imperador D. Pedro II e o novo golpe midiático-jurídico-empresarial de 2016”, compara. Mas não deu pra parar ali: a sucessão de bizarrices que estendeu-se pré, durante e pós o golpe indignou Carlos de tal maneira que ele se sentiu impelido a compor Canudos. “Mas não poderia ser um disco comum e nem mesmo mais um disco da Dorsal. Conceitualmente, Canudos deveria levar o ouvinte ao sertão, contextualizar que o golpe não terminaria com a deposição da presidenta, mas que o movimento golpista prosseguiria”.

O resultado é uma porrada maravilhosa, um dos mais importantes discos nacionais lançados em 2017. Ainda maldito, ainda underground, mas mostrando de fato uma Dorsal diferente — agressivo na atitude e nas letras, traz um Carlos menos preocupado em berrar e mais focado em contar sua história, salpicando a sonoridade com algo que é quase uma literatura de cordel, intrigante, popular, sarcástica. “A música de Canudos deveria adotar uma estética brasileira e não colonizada. As melodias precisavam ser brasileiras, armoriais e exuberantes. A estética nordestina”, diz ele. “Canudos é um grande NÃO ao lugar comum e um enorme SIM à liberdade. Canudos já é história, o nosso mais importante disco”.

Curiosamente, no entanto, muitos dos fãs mais antigos de Carlos Lopes e da Dorsal Atlântica não sacaram, de imediato, que caminho a banda estava pretendendo seguir ali. E conforme ele foi dando entrevistas a respeito e, por fim, liberou não apenas o primeiro single mas também o clipe de Belo Monte, as áreas de comentários dos sites especializados se encheram de coisas como “eita, o Carlos virou PTralha, que absurdo, estou muito decepcionado”.

Para o líder da banda, apesar da defesa de que todos são livres para pensar como quiserem (“inclusive eu, como artista e cidadão”), isso não vem de hoje. “Nos anos 90, quando compus Alea Jacta Est, a ópera sobre o Cristo negro e favelado, alguns fãs da banda disseram que eu havia virado cristão e que por causa disso não apoiariam mais a banda”, recorda, relembrando os primórdios daquela Dorsal, cara pintada meio Kiss, que metia o dedo no assunto religião sem medo de represálias. “Ninguém se deu ao trabalho de ler o álbum, ninguém se colocou contra a escravidão, mas souberam ver um Cristo na capa quando lhes interessou e foram logo apontando o dedo... Nem viram a cor de suas próprias peles, a mesma dos tantos ex-fãs mulatos que tornaram-se black metal naquela época. Assim como hoje, tudo isso é falta de discernimento”.

Chamando estes argumentos de “superficiais”, ele faz questão de relembrar ainda que compôs a faixa Guerrilha (do primeira disco, o brutal Antes do Fim) em plena ditadura, como uma homenagem aos guerrilheiros que lutaram contra o exército no Araguaia. “Sempre fui o mesmo e sempre do mesmo lado”.

Carlos Lopes não tem medo, por exemplo, de dizer uma frase incisiva como “dez, cem, mil bandas de metal não valem um Cartola, um Chico Buarque, e nem uma Legião Urbana”, uma cacetada vinda de um dos maiores ícones do metaaaaaaaal brasileiro. “O metal acha ótimo imitar sotaque de gringo, grunhir como gringo, ter a pele branca e sentir-se parte dessa mentira que é a globalização”. E ele ainda explica este trecho final: “as pessoas foram sendo pouco a pouco lavadas cerebralmente para sentirem-se parte do mundo, quando isso não é verdade. Nisso o brasileiro é especialmente craque: em ser egoísta e não enxergar a realidade. (...) Há amos e servos, países que mandam e países periféricos. A guerra fria não acabou. Conte quantos árabes, negros, muçulmanos, orientais, indígenas e africanos não fazem parte desse mundo globalizado por não sentirem-se parte dele”.

Egresso de uma geração que ouvia uma grande música brasileira, politicamente engajada, em plena ditadura (“Como esquecer O Bêbado e A Equilibrista?”), com um país bem mais fechado, com tudo que chegava aos nossos olhos e ouvidos sendo controlado pela grande mídia e pelas gravadoras, além da censura, Carlos gosta de relembrar aquele como um período de grande efervescência cultural. “Cresci em um prédio ao lado de figuras emblemáticas de nossa história como Rubens Paiva, Zuzu Angel, Raul Ryff (ministro do presidente João Goulart), Alex Viany, Raul Seixas e muitos outros”, revela.

Naquela época, anos 70, Carlos e seus comparsas cabeludos queriam ouvir rock, com guitarra e peso. Mas se esse rock tivesse uma mensagem, melhor ainda. “No rock gringo sempre houve politização, desde Bob Dylan, os Beatles (Revolution), Rolling Stones (Street Fighting Man), The Who (Won´t Get Fooled Again), MC5 (American Rouse). Eram cronistas de sua época e isso marcou-me fundo. Mas aqui no país brazilis não havia politização ou grandes letras nas maiores bandas de rock nacionais, somente havia combate na MPB”. A mesma MPB que inspirou os roqueiros que viriam nos anos 80 e que, pouco depois, se tornou renegada por eles, aliás.

Sobre o futuro da Dorsal pós Canudos, o músico ainda não sabe dizer se este foi o tal canto do cisne ou se, aproveitando o modelo do financiamento coletivo, vem mais coisa por aí. “O que me parece importante neste momento é que o Canudos existe, que ele mostra que a criatividade e a indignação não cessaram e que a Dorsal é única em um cenário de iguais”. Carlos destaca que tanto a história da Dorsal quanto a sua própria não devem, jamais, ser entendidas como parte de uma cena. “Estive conectado à cena de metal nos anos 80, mas o fiz porque meu objetivo era fortalecer uma cena brasileira. Quando percebi, nos anos 90, que os brasileiros não gostavam de ser brasileiros, tornei-me cada vez mais independente. E isso não prejudicou a carreira, mas pôs as coisas em perspectiva. Libertou-me”. Justamente por isso, ele considera que a Dorsal de hoje é livre, artística, madura e mais consciente do que era antes.

Isso também vale, claro, para os outros projetos musicais de Carlos Lopes, a deliciosa banda de rock n’ roll clássico meio cinquentista Mustang e a poderosa Usina Le Blond, com sua veia mais soul music.

“O Mustang e a Usina são a continuidade e a progressão desse livre pensar e não rupturas definitivas”, diz, reforçando que não existe um Carlos metal e outro não-metal. “Sou um artista que ama história, filosofia, política e espiritualidade. Tudo é possível se for artisticamente válido, seja lançar quadrinhos ou gravar samba. (...) Porque nunca fui saudosista, porque vivo o hoje, e crio para os tempos atuais com toda a bagagem que adquiri em 4 décadas. Minha vida é amor, ação, criatividade e liberdade. O rock pesado é uma parte importante de minha história, mas não é a única”.

Quando as pessoas me perguntam quem foram os melhores entrevistados desta minha carreira de mais de 20 anos cobrindo cultura pop, eu sempre coloco o Carlos entre os top 3. Tive a chance de bater um papo com ele por volta de 1999 / 2000, quando ele lançou a essencial biografia Guerrilha — A História da Dorsal Atlântica, e me impressionou a inteligência do cara do outro lado do telefone. Inteligência não neste sentido pedante, acadêmico, o tradicional culto e erudito, mas a inteligência do olhar afiado de quem enxerga o mundo de um jeito diferente.

E fico feliz DEMAIS em ver que um cara que aprendi a chamar de ídolo, não só pela música mas por tudo que ele representa e pelo ser humano que é, só evoluiu. “O mundo não é branco. O capitalismo é um câncer. Para nos libertarmos dessas prisões é preciso abrir mão dessas correntes mentais”, diz. “Não é fácil, não é para todos, mas é necessário libertar-se. Pelo bem do mundo”.

Se isso não é metal o suficiente, numa boa, vai lá ouvir todos os clássicos novamente – mas, desta vez, prestando BASTANTE atenção. Talvez funcione.