Lápis com borracha | JUDAO.com.br

Houve um tempo em que eu também pegava emoções negativas, enfiava numa garrafa e as escondia onde ninguém pudesse encontrar. Nunca estive tão bem… até eu entender o que é “estar bem” de verdade.

Eu sempre questionei meu vocabulário. Sei que tenho alguns vícios quando escrevo, mas prefiro dizer que são assinaturas. Mas palavras, poxa... Tem vezes que eu realmente acredito que elas me faltam, especialmente na hora de exclamar alguma coisa, na hora de elogiar, na hora de, enfim, expressar algo de bom que eu tou sentindo.

Se você procurar, vai ver o tanto de vezes que eu digo que algo ou alguém é maravilhoso. É quase um resumo, um “olha você é muita coisa, eu sinto isso tudo, mas eu tenho vergonha de usar algumas palavras, outras eu nem conheço, então só vou dizer que é maravilhoso”. Genial eu também uso bastante — já usei mais, mas hoje prefiro definir assim gente como Steven Spielberg e James Cameron. Quem eu defino como maravilhoso? Taika Waititi, se vamos ficar entre diretores e roteiristas de cinema.

Quando eu quero demonstrar meu DESCONTENTAMENTO, porém, eu consigo me expressar melhor. As palavras aparecem mais facilmente, se encaixam melhor e, qualquer coisa, sempre temos um palavrão pra usar. O que isso diz sobre mim eu ainda não sei e prometo falar com a minha psicóloga sobre isso, mas é o que acontece.

Quando a segunda temporada foi lançada e, depois, nas premiações, eu ouvi muita gente dizer o quanto Fleabag e sua criadora e estrela, Phoebe Waller-Bridge eram maravilhosas e geniais, engraçadíssimas, perfeitas e sem defeitos. Fui assistir ver, então, do que se tratava e logo no segundo capítulo, quando ela olhou pra câmera e disse alguma coisa que iria acontecer na sequência, parei.

Se era tão genial e maravilhosa e engraçada e perfeita, como isso poderia ser aceitável? Como olhar pra mim e dizer “essa pessoa vai fazer isso” e, na sequência, “isso” realmente ser feito pela pessoa, poderia ser um exemplo de bom roteiro? Nunca tive problemas com quebra de quarta parede, mas ali era exagero. Era um mal uso de um recurso que pode ser bem interessante.

O tempo passou e muita coisa aconteceu na minha vida — ou, mais especificamente, dentro da minha cabeça. Até que, dia desses, conversando com o nosso glorioso Oda, comentamos sobre a peça ter sido liberada online e, ouvindo o que ele disse sobre a série, resolvi dar uma nova chance. Com outros olhos e outras ideias, sem nenhuma expectativa.

Parte desses olhos e ideias tinha a ver com um resgate do que é importante pra mim, do que sempre foi importante pra mim. Um retorno a coisas e pessoas que, no fim das contas, sempre estiveram lá pra mim de alguma maneira e que eu, tentando seguir em frente, sempre em frente (uma maneira bonita de dizer que eu só queria fugir de certos momentos e experiências passadas da minha vida, não se engane). Eu resolvi parar de correr completamente fechado e parar um pouco, olhar pra trás e me abrir.

A tal chance veio logo na sequência. Num dia eu tava assistindo a AEW pela primeira vez, no seguinte eu tava ali dando play em Fleabag novamente. Não quis reassiatir aos primeiros episódios, mas sim prosseguir a partir do terceiro — me pareceu o certo a ser feito e até que foi tudo bem. O que tinha de importante ali costumava ser relembrado o tempo todo, inicialmente de um jeito muito “olha, é disso que estamos falando”, depois de uma maneira muito mais... natural. Como se a série começasse a se encaixar, episódio após episódio. O roteiro, as ideias, as histórias, tudo começou a engrenar direitinho. Aí, assim... Como é que as pessoas conseguem se mostrar tão empolgadas e animadas com uma história tão pesada, complicada, triste? Como isso pode ser genial, maravilhoso, perfeito e sem defeitos? Como que se fala sobre essa série sorrindo?

Fleabag é triste, Fleabag é desconcertante, Fleabag é pra nos fazer ficar quietos, sem reação. É pra nos fazer rir, mas de nervoso. Ok, as vezes a gente tem um alívio aqui ou ali. Mas a razão desse alívio é qual, especificamente?

Fleabag é uma porrada. Forte, violenta, seca, crua. Não alivia pra quem bate, nem pra quem apanha. Sangue escorre do nariz, a mão dói. Ninguém está feliz com aquilo. E nem poderiam ficar.

Veja... Não me entenda errado. Phoebe Waller-Bridge é maravilhosa. Basta vê-la fora da série, existindo simplesmente, pra perceber isso. O quanto outras pessoas gostam dela, o quanto ela consegue produzir, o simples fato de ela ter arranjado um job como roteirista de um filme do James Fucking Bond, a franquia mais “meninas não entram” de que se tem notícia. Ela pode ser considerada, também, genial por muita gente. Ela é REALMENTE muito boa em retratar histórias tão humanas, tão reais (que, não, não são exatamente autobiográficas).

Mas seu trabalho em Fleabag... Não é como se a gente pudesse levantar e aplaudir. É algo tão pessoal, tão interno, que a gente quer na verdade é dar um abraço — e não um de consolo. Um de “eu sei exatamente como é isso”. Me parece errado dizer que sou fã de alguém por alguma coisa que disse ou escreveu, se essa coisa é tão triste e tão ressoante. É como se eu tivesse batendo palmas pra mim, ao invés de absorver e entender tudo o que é dito e passado e tentar, a partir disso, ressignificar certos aspectos da vida real, ou da personalidade.

Fleabag machuca. E isso não é genial, nem maravilhoso. Isso é só... A maneira como as coisas são na verdade. Cruéis. Dolorosas. Ou, pelo menos, é assim que eu enxergo, assim que bateu e ressoou comigo — tanto que, é, eu prefiro a primeira temporada à segunda. Penso que há muito mais ali naqueles primeiros seis episódios do que nos últimos seis — que são, de fato, mais leves e mais divertidos.

Só que eu sou homem, né? A segunda temporada é muito mais sobre ser mulher, enquanto a primeira é sobre existir enquanto ser humano. Amigos, família, relacionamentos... Talvez minha preferência esteja aí — e também no fato de que não consegui comprar a história com o Padre.

Eu já sabia da história do “vai passar”, mas nem foi esse o, vamos dizer assim, problema. Eu acredito que eu esperava algo de diferente ou, pelo menos, mais diretamente relacionado à primeira temporada. Alguma coisa com a qual eu pudesse me identificar mais com a própria própria SACO DE PULGAS, e não com a irmã dela — que é o que acabou acontecendo.

Falei de você na terapia

Comecei nesse mundo mágico da terapia há pouco mais de dois anos, quando também iniciei meu tratamento psiquiátrico, tomando dois antidepressivos e dois ansiolíticos. Em todo esse tempo, em todas as sessões e consultas, provavelmente a coisa sobre a qual eu mais comentei é um sentimento de culpa. Uma coisa que eu coloquei em mim — que eu SEMPRE coloquei em mim — sem nunca ter tido exatamente reais motivos pra isso.

O que aconteceram foram erros. Erros que eu cometi, erros que foram cometidos próximos de mim. Erros que, quando foram cometidos, o foram porque quem errou não sabia como fazer diferente. Não tinha tudo o que era necessário pra evitar esses erros.

As vezes eu sinto raiva da minha mãe por ter me deixado chorando no palco de uma apresentação de fim de ano de escolinha infantil, filmado tudo e achado as coisas engraçadas? As vezes. Eu, que pela maior parte da vida, dava risada dessa história (até escrevi sobre ela aqui e também falei sobre ela aqui), percebi o quanto ela me fez ser quem eu sou. O quanto tantas outras coisas relacionadas aos meus pais, inclusive a morte do meu pai, me fez sentir e pensar coisas que eu sinto e penso hoje — o que é normal, quando o relacionamento entre pais e filhos é também normal e saudável, o que não foi o caso comigo.

Adianta, porém, eu esperar um pedido de desculpas da minha mãe? Adianta eu QUERER isso?

Minha psicóloga sempre bateu nessa tecla, as diferentes psiquiatras com quem me consultei também. “Os erros não nos definem” foi a frase que eu mais ouvi durante esses dois anos, com diferentes formatos e palavras. E, por mais que eu soubesse disso na teoria, na prática a história era outra. Eu sabia que eu não poderia ser definido por erros, especialmente depois que eu os reconheci e passei a agir pra não cometê-los mais. Todo mundo erra, todo mundo se machuca, todo mundo machuca o outro. “Everybody hurts”, já diriam Michael Stype e Andrea Corr.

Então veio o último episódio da primeira temporada de Fleabag. Claire joga na cara dela o que ela fez com a melhor amiga. Eu não lembrava dos dois primeiros episódios, como disse, e não tinha me ligado que aquilo tinha acontecido nas cenas de flashback anteriores... o choque foi grande. E eu só pensei como ela engoliu aquilo, um erro enorme, e tava lá, todos os dias, enfrentando a vida. É uma merda. Dói. Vai sempre doer, pra caralho. Vai ser impossível esquecer. Mas o que foi feito, foi feito... E não dá pra voltar atrás.

A única coisa possível, a partir daí, é seguir em frente. Quer dizer: as únicas coisas possíveis a partir daí é aprender com o erro e seguir em frente. É onde Fleabag surge: “e se a minha melhor amiga tivesse morrido? E se fosse minha culpa?”.

Song for the man

Alguns dias depois de terminar a série, assisti ao documentário Beastie Boys Story que, como você pode imaginar pelo título, conta a história dos Beastie Boys. Pretendo falar sobre o filme em outro momento, mas aqui acho que cabe um trecho que acabou se ligando muito bem ao que eu tava sentindo em relação a Fleabag.

Quando lançaram o álbum Hello Nasty, em 1998, que eles mesmos afirmam ter sido o melhor da carreira por uma série de razão, Ad-Rock foi questionado sobre a hipocrisia de terem dito tudo o que disseram na época de Licensed to Ill, o primeiro álbum, lançado quando eles tinham todos cerca de 20 anos, e agora ter uma música como Song for the Man, que questiona as atitudes machistas dos homens — inclusive os da própria banda. A resposta me pegou, provavelmente da mesma maneira que pegou Mike D, pelo que ele diz no filme:

Eu prefiro ser um hipócrita do que a mesma pessoa pra sempre

A música, pra quem nunca ouviu ou só quer relembrar, tá aqui embaixo.

Eu já fui chamado de hipócrita, que eu me lembre, duas vezes — ambas quando eu mostrei uma mudança radical de comportamento e/ou ideias, e isso me incomodou. Ou melhor: me machucou, bem fundo. Mesmo o JUDAO.com.br já teve essa coisa de hipocrisia em cima, com a mesma motivação que levou a questionarem as músicas dos Beastie Boys. Como alguém ousa pensar e agir de uma maneira num momento da vida e, num outro, pensar e agir de uma maneira totalmente diferente e, pra todos os efeitos, melhor?

Phoebe Waller-Bridge, através de Fleabag, mostra que somos todos defeituosos, em um ponto ou outro. Todos temos nossos problemas, todos cometemos erros, tem gente que nos ama mas não consegue gostar da gente... E tudo bem. Esse é o grande saldo da série, ao meu ver: tudo bem. A vida é uma desgraçada, ela vai querer te foder do pior jeito possível e muitas vezes vai conseguir... AH VAI.

A gente vai rastejar, se ralar todo, vai fazer merda pra caralho. Vai se sentir horrível, vai questionar um monte de coisa. Mas isso não significa que a gente não possa respirar. Que a gente não possa, no fim do dia, só fechar os olhos e respirar. Um ar puro, tranquilo. Um ar que traz consigo a lealdade daquelas pessoas que correriam no aeroporto por nós, apesar de tudo o que fizemos. Um ar que nos faz, enfim, seguir em frente da maneira correta: sem fugir.

Um ar que, agora, eu consigo perceber que me faz ainda querer abraçar Phoebe Waller-Bridge com um sentimento de “eu sei como é isso tudo aí que você escreveu”. Mas também eu provavelmente choraria largado. E agradeceria, por ela ser tão foda.

Genial.

Maravilhosa.