Garotas, ti amo desgraça | JUDAO.com.br
18 de janeiro de 2018
Girls

Garotas, ti amo desgraça

A vida ainda vai acabar matando a gente

Solidão. Fodida e inegociável, que esvazia e fuzila com lembranças e culpa por não conseguir evitar essas mesmas lembranças, que estão onde quer que você olhe. Um tempo atrás passei uma hora e meia sentado na porta da minha casa sem conseguir entrar. Vizinhos, o vigia da rua, carros e bicicletas passaram por mim, mas eu não conseguia nem mesmo me preocupar em tentar esconder o choro irracional. Tinha um saquinho com uma caixinha de mentos e dois prestígios que comprei de um moleque que passava vendendo doces pelas mesas do bar onde eu estava mais cedo. Aquele saquinho ali, pendurado na minha mão, parecia a única bagagem disponível naquela aparente fuga.

Mandei uma mensagem para um amigo com quem não falava há mais de um mês, tínhamos nos desentendido por uma questão que não convém levantar aqui. Ele me respondeu: “Em dez minutos tô aí”. Só isso. E em menos de uma dezena de minutos, ele chegou, me convidou a entrar na minha própria casa e passou quatro horas conversando e chupando bala comigo na sala, até que fizesse sentido eu ficar sozinho no lugar onde vivo há sete anos.

Não dava mais pra continuar bebendo pra tapar buraco. Aliás, é uma terapia que não indico, moçadinha. Parece charmoso, mas, na real, é uma pá que cava o fundo do buraco sozinha. Ficar doido é para celebrações e conversas niveladas, curtir um astral. Quando a gente não tá legal, vira roubada. Na noite seguinte, eu comecei a ver Girls.

Hannah, Marnie, Shoshanna, Jessa e seus coadjuvantes Adam, Ray, Elijah, Desi e até os parentes deles, os casos, os chefes e companheiros de trabalho entraram desse jeito na minha vida, numa noite aleatória de quarta-feira, e eu ri, sofri, me irritei, gargalhei, fiquei putaço e chorei muito, mas muito, putaquepariu, eu chorei pra caralho ao longo dessas seis temporadas, que vi durante cinco semanas ou algo assim. Lembrei de quando cheguei a São Paulo sem absolutamente um real, ganhando um salário de 500 mangos por mês, conformando minha revolta com a bolsa da faculdade, que não incluía verba para passes de ônibus e metrô, com o namoro que eu tinha desde a adolescência indo pro espaço, lidando com o deslumbre com as pessoas novas que conhecia quase todo dia, as garotas que pareciam vir de outro planeta, túneis, drogas, fast food e todas as formas de prazer, medo e canalhice que conheci desde que vim pra cá.

No entanto, no presente, aos poucos me peguei cozinhando janta, voltando a bater uma máquina de roupas, passando aspirador na casa, tudo isso entre um episódio e outro. Fui catando milho, me segurando em uma tarefa de cada vez, sempre contando com a segurança de que havia uma história nova ou uma continuação para ver assim que terminasse o que estava fazendo.

Fiquei preocupado quando me vi no Adam, naquele desequilíbrio entre amor e brutalidade. Aquela linhazinha que pode não suportar uma alma humana sambando, ou duas bebendo vinho, quebrando as taças e fodendo por toda casa, como diz a música linda do Baco Exu do Blues. Me assustei assim que me vi na Hannah, uma menina de apenas 24 anos, que queria ser escritora e que afundava sempre nas próprias merdas existenciais quando parecia estar fazendo algo que tinha sentido em uma vida, mesmo que ela durasse pelo menos só até o dia seguinte.

A sensação mais louca bateu quando aconteceu essa cena aí embaixo e, véio, eu já não sabia mais se era Hannah ou Adam, entrei naqueles dois corpos, que na verdade são feitos de matéria de ficção, e me materializei na cena. Ali, eu fui todo mundo, fui tudo, os dois, a cama, o edredom, o celular, os degraus do metrô, o suor, a lágrima, o beijo, o colo, o resgate e o resgatado.

Hoje em dia voltou uma moda brega — como toda moda — que era bem popular nos anos 90. Esse lero de evolução, aprendizado, autoconhecimento, superação, e daí você puxa a cordinha e vem o budismo, a meditação, a yoga, a alimentação saudável, o surrado horóscopo e todo tipo de coisas que vão fazer você se sentir um fracasso por ainda não ter chegado no passo seguinte. Sim, sempre tem um passo seguinte, mas a matemática não varia muito. Se for pensar bem, essa busca é tão vazia quanto a de um moleque que trabalha gastando e ganhando dinheiro dos outros na bolsa de valores, tudo isso para comprar o próximo carro I-RA-DO de merda, que vai levar ele a um lugar FO-DA de merda para se encontrar com outras pessoas LIN-DAS de merda. Seja qual for o caso, uma constante se mantém, por mais que se tente fugir dela: a geografia da vida é absolutamente furada e sempre termina no mesmo lugar.

Cada uma das minas de Girls segue seu caminho nesse mundo, entre não se importar absolutamente nada com a saúde e buscar a magreza “limpa” que a alimentação higienizada de hoje propõe; entre a cocaína e a reabilitação; entre o casamento furado com o cara de alma artística autodeclarada, cheio de bravatas existenciais, e que a deixa relaxada para transar, e o cara mais velho que ama e espera por ela, mas cujo sentimento e disposição é tão real, que a assusta e endurece; entre tentar se reconectar com a família negligente que nunca soube lidar com sua presença e começar uma nova família com os amigos que fez nas curvas da estrada; entre a próxima festa irada em um pedaço abandonado da cidade e a maternidade; entre o já conhecido caos da vida urbana e a prometida paz do interior. E por aí vai.

Sim, Girls é uma série sobre garotas brancas na cidade mais incrível do mundo, e é justamente isso que define Lena Dunham, sua brilhante criadora e protagonista. É importante lembrar que, por mais aparentemente batido que seja o tema, aqui ainda vale a máxima atribuída a Lév Tolstói: “Seja universal, fale de sua aldeia”.

A mensagem que ficou dessa jornada de seis temporadas é a que me trouxe algum tipo de tranquilidade em meio ao caos. Estamos todos tentando fazer o nosso melhor. E isso é cansativo. A vida é cansativa. Tudo é divino e maravilhoso, mas tudo também é perigoso. Ver e não ver. Ficar e não ficar. Pedir pra ficar e não pedir. Amar e se deixar levar.

A gente tem medo o tempo todo. A gente não sabe se vai ou se fica. A gente ama demais. A gente trabalha demais. A gente pensa demais. A gente deseja demais. A gente sofre demais. A gente judia demais. A gente sente sono demais. A gente corre demais. A gente foge demais. A gente busca demais. A gente esquece demais.

A gente é feito pra acabar.

Quando tu se manca dessa ideia, só sobra a aventura de estar andando sobre esta Terra que um dia há de nos comer, e isso, às vezes, é o suficiente.