Cineasta morreu neste domingo aos 77 anos e deixou uma contribuição inestimável não só para o cinema de terror, como para toda a cultura pop
Se hoje você adora The Walking Dead ou iZombie, joga Resident Evil, já dançou a coreografia de Thriller de Michael Jackson, vai em alguma Zombie Walk da vida, ou até mesmo acompanhou a estreia da nova temporada de Game of Thrones e viu o exército dos Outros marchando para a Muralha, o responsável pela porra toda foi George A. Romero, que nos deixou neste domingo, aos 77 anos, após perder a batalha contra um câncer de pulmão.
O conceito dos corpos putrefatos comedores de carne humana foi criado por ele no seminal A Noite dos Mortos-Vivos, pedra-angular do gênero, lá em 1968, considerado nada menos que “o filme que fez nascer o terror norte-americano da era moderna”, segundo Jamie Russell, autor do livro Zumbi – O Livro dos Mortos.
Não só contente em reinventar a mitologia da criatura, que antes era só um ser autômato trazido a vida por conta de vodu haitiano, Romero foi o responsável por injetar uma dose cavalar de crítica velada, travestindo-o de metáfora sociocultural e colocando como objeto representativo de nós mesmos, dos nossos medos, ansiedades, conflitos e paranoias, trazendo o cinema de terror cada vez mais perto do nosso cotidiano.
Tudo isso começou quando o cineasta independente, baseado em Pittsburgh, juntou seis amigos e fundou a Image Ten Productions no final dos anos 60, ganhando a vida produzindo comerciais. Romero dividia a sala com o roteirista John Russo e, juntos, decidiram produzir um filme de terror de baixíssimo orçamento que não fosse basicamente uma peça gótica, como as enxurradas de produções de Drácula ou Frankenstein da Hammer, ou estreladas por Vincent Price e dirigidas por Roger Corman que chegavam aos cinemas aos borbotões, e nem qualquer tipo de inseto gigante vitaminado por radiação que dominou as telas na década anterior. Queriam ser assustadoramente fiéis aos conceitos de suas próprias realidades naqueles tempos, como a Guerra do Vietnã e os conflitos raciais de Watts, em Los Angeles, por exemplo.
Com um dinheiro de PINGA de 114 mil dólares, saído do próprio bolso, o filme foi rodado em preto e branco e com severas limitações para maquiagem dos zumbis, mas mesmo assim, principalmente para o público mediano daquela década, algumas cenas eram simplesmente chocantes, como as dezenas de braços atacando as portas e janelas da fazenda onde sobreviventes tentavam se refugiar de uma praga sem explicação nenhuma, ou os zumbis devorando os pedaços do pobre casal caipira após uma frustrada tentativa de fuga. Romero usou entranhas de animais compradas em um açougue, como corações de porcos e intestino de ovelhas, para dar o efeito autêntico e conseguiu encontrar figurantes loucos o suficiente para comê-los. É o cinema DIY em todo seu esplendor!
A Noite dos Mortos-Vivos foi um tremendo sucesso financeiro, faturando cerca de 12 milhões de dólares nos EUA e outros 30 milhões ao redor do mundo. Romero estava pronto para faturar uma nota preta, mas para seu azar, os royalties não geraram receita nenhuma, e muito menos todas as dezenas de cópias em DVD, VHS, Blu-Rays e exibições públicas nestes quase cinquenta anos, já que o filme entrou em domínio público devido a um erro grotesco quando o distribuidor original não adicionou uma indicação de direitos autorais nas cópias.
Apesar disso, a década de 70 parecia prolífica para o diretor, mas também não foi tão bom assim, como diria Lulu Santos. Seus três filmes seguintes não foram bem aceitos pelo público, que ansiava por um desenrolar da hecatombe zumbi, e são pouquíssimos conhecidos de sua filmografia: There’s Always Vanilla, Season of the Witch e O Exército do Extermínio, que vale uma menção muito especial. Aqui, Romero volta sua metralhadora crítica cinematográfica para o descontrole militar, medo da guerra biológica e os fantasmas que ainda rondavam os americanos com o fracasso da luta contra os vietcongues.
Mas a verdade é que pode sair o zumbi, mas a paranoia humana e o estado de selvageria e necessidade básica de sobrevivência, egoísmo, racismo e xenofobia, sentimentos típicos que ficam enraizados em boa parte dos seres humanos e afloram quando colocados numa situação limítrofe, continuam ali. Ou seja, pior que um morto-vivo devorador de cérebro, ficamos entre uma cidade inteira vítima de uma epidemia que os transforma em maníacos insanos assassinos e o exército truculento que declara lei marcial, coloca o local em quarentena e não mede o uso de força para impedir que o vírus se espalhe, nem que isso implique em metralhar civis sem dó nem piedade. E pronto, está costurado o emaranhado político social tão impresso em sua filmografia marginal e independente de guerrilha vista em início de carreira.
Porém, antes que Romero pudesse nos presentear com a continuação de seu maior clássico e entregar o apocalipse zumbi definitivo em 1978, dez anos depois, eis que um vampiro hipster cruzou seu caminho.
Martin, lançado dois anos antes, traz o drama de um vampiro existencialista numa época em que vampiros existencialistas não existiam, que vem recheado – mais uma vez – das famosas metáforas de situações humanas, onde um jovem que não sabemos ao certo se é uma criatura das trevas ou sofre de algum tipo de patologia ou psicose, luta para encaixar-se socialmente, contra a timidez e busca aceitação, se expressando em um mundo caótico cheio de preconceito e intolerância, tentando levar uma vida “normal”, enquanto combate a necessidade esporádica de se alimentar de sangue.
Causou estranheza naquela década de 70 e tornou-se outro flop de bilheteria que viria a se tornar um cult somente anos depois. Sem saída, na pindaíba e com uma série de filmes rejeitados pelo público, coube a Romero, mais uma vez, por opções financeiras e não artísticas, voltar a atenção para os zumbis e nos presentear com a sua obra-prima: Despertar dos Mortos, incalculável para o cinema de horror do século XX, e, principalmente, para as produções italianas da década de 80.
Quanto não houver mais espaço no inferno, os mortos andarão sobre a Terra e Romero esfregará na nossa fuça que os zumbis somos nós e vice-versa, dessa vez colocando uma lupa de aumento sobre o consumismo, a alienação em massa, o tédio das relações interpessoais e a completa falência das relações sociais. Tudo com um forcinha de Dario Argento, pois quando chegaram até a Itália os rumores que estava escrevendo uma continuação para A Noite dos Mortos Vivos, o produtor Alfredo Cuomo recebeu uma versão incompleta do roteiro, na esperança de encontrar parceiros que quisessem investir no filme e entregou nas mãos de seu amico Argento, que foi o responsável pela distribuição do filme na Europa, fazendo sua própria montagem, com oito minutos a menos, acentuando um pouco mais o humor cartunesco e destacando ainda mais a trilha sonora da sua banda fetiche, Goblin, do brasileiro Claudio Simonetti.
Despertar dos Mortos faturou 55 milhões de dólares nas bilheterias, revelou a genialidade da maquiagem de Tom Savini para o mundo, e pavimentou o caminho para o final de sua, até então trilogia com o Dia dos Mortos, lançado em 1985. Mas, nesse INTERIM, ele entregou mais dois filmes, Cavaleiros de Aço e Creepshow – Show de Horrores, antologia escrita por outro mestre do terror, Stephen King, baseada nos quadrinhos da EC Comics que ambos cresceram lendo.
Dia dos Mortos escancara um niilismo gritante, num tom muito mais desolador e soturno, algo que a audiência já não estava muito bem preparada para digerir, tratando-se da afetação dos anos 80, e muito por conta da figura do zumbi ter virado motivo de chacota por conta dos comedores de miolos piadistas de A Volta dos Mortos-Vivos e os cadáveres dançarinos do clipe de Thriller.
Resultado: não agradou o público e nem crítica, principalmente por sua intensa deliberação sobre as mazelas humanas e o papel dos cientistas e militares na nova sociedade, seu ritmo lento e sua mensagem extremamente depressiva. Com orçamento de três milhões de dólares, diversas dificuldades durante as filmagens e por ter sido lançado em um período em que o cinema de terror era descompromissado, “for fun” e nem um pouco crítico, o longa afundou nas bilheterias domésticas faturando somente 5 milhões de dólares e tendo um resultado só um pouco melhor no mercado internacional.
O fracasso retumbante enterrou sua carreira por um tempo, que nunca mais conseguiu dirigir nada de relevante depois: Instinto Fatal, filme sobre uma macaca ciumenta e assassina que deveria ajudar um tetraplégico; um dos segmentos de Dois Olhos Satânicos, inspirado nos contos de Edgar Allan Poe; A Metade Negra, mais uma dobradinha com Stephen King; e A Máscara do Terror, onde um sujeito acorda um belo dia com uma máscara branca sem expressão no lugar do rosto. Romero ainda roteirizou Creepshow 2 e escreveu e produziu a decentíssima refilmagem de A Noite dos Mortos-Vivos em 1990, dirigido por Savini, e por muito pouco não escreveu e dirigiu também a adaptação de Resident Evil para os cinemas. Levaram vinte anos até que ele finalmente lançasse a última parte que completaria sua tetralogia: Terra dos Mortos.
Em pleno 2005 foi a vez de botar o dedo na ferida da luta de classes, corrupção, ganância, corporativismo e a política externa americana da Era Bush e seu combate ao terrorismo. Foi a primeira produção do diretor com um grande orçamento e lançado por um estúdio, a Universal Pictures, algo só possível por conta da retomada do zumbi desde o início do século, primeiro com o sucesso de Extermínio, de Danny Boyle, e depois as excelentes bilheterias de Todo Mundo Quase Morto de Edgar Wright e Madrugada dos Mortos, remake de Despertar dos Mortos do VISIONÁRIO Zack Snyder (e ambos distribuídos pela Universal), além dos filmes de Resident Evil e seus novos capítulos nos videogames, a publicação de The Walking Dead de Robert Kirkman nos quadrinhos e o best-seller Guia de Sobrevivência aos Zumbis, de Max Brooks. Tudo influência diretíssima do que Romero criou.
Apesar de seu pacto faustiano com Hollywood, o diretor não perdeu a essência, manteve sua marca registrada, abusou de cenas brutais e gore, assinadas por Robert Kurtzman, Greg Nicotero e Howard Berger, responsáveis pelos impressionantes zumbis de TWD anos mais tarde, e ainda conseguiu concluir, da forma que imaginava, seu conto sobre o colapso social humano, com os mortos-vivos apenas de pano de fundo e sendo um espelho social.
Romero ainda tentou emplacar uma nova repaginada ao universo zumbi, com Diário dos Mortos, precursor do found footage moderno e um tapa na cara na sociedade do espetáculo em busca de cliques e views, que já estava anos luz de distância da qualidade e importância de seus demais filmes, e A Ilha dos Mortos, o último que dirigiu, de 2009, espécie de versão zumbi do conflito Hatfield vs McCoy sobre disputa de terras, encerrando sua carreira por trás das câmera de forma até triste, com esses dois fracassos.
Romero se foi, mas como seus zumbis, não ficará morto, e viverá para sempre como um dos principais diretores autorais do cinema, responsável por deixar um imenso legado para a cultura pop.