Todo o falatório sobre Corrente do Mal, filme de David Robert Mitchell, é mais do que merecido. É JUSTÍSSIMO, aliás.
A música do Public Enemy já dizia, com todas as letras: don’t believe the hype. Eu costumo concordar com ela na maior parte dos casos. Mas, quando se trata de um filme como Corrente do Mal, esqueça os versos de Chuck D. Não tenham quaisquer dúvidas: o hype a respeito de “terror indie sexual”, que estreia finalmente nos cinemas brasileiros nesta quinta-feira depois de ser adiado por duas vezes (inclusive por causa de A Forca, só lamento), é nada menos que justificado.
A produção do jovem diretor David Robert Mitchell (preste bastante atenção nesse sujeito!) é simplesmente um dos melhores filmes de terror dos últimos anos, QUIÇÁ um dos melhores da década, junto com os não menos incríveis The Babadook e Starry Eyes. E, provavelmente, será o único dos três que terá a sorte de ver a luz do projetor de uma sala de cinema aqui no país.
O barulho foi ganhando cada vez mais força desde que o filme foi exibido pela primeira vez em Cannes no ano passado, cresceu no burburinho, recebeu diversas críticas elogiosas pelos festivais que passou, caiu no gosto do público, avaliações positivas de impressionantes 96% no Rotten Tomatoes e faturou mais de 14 milhões de dólares só na bilheteria doméstica, contra seu pequenino orçamento de 2 milhões.
Mas por que esse bafafá todo? Porque, com o perdão do exagero de um velho gato escaldado que tem visto tanta porcaria sendo feita no gênero atualmente, ele é simplesmente genial em todos os seus níveis. Mais do que isso, é uma verdadeira aula de terror simples, bem orquestrado, que exala cinema independente pelos poros e funciona como uma tremenda homenagem ao horror do final dos anos 70 e 80, aquele tipo que Mitchell, assim como eu e talvez você, cresceu assistindo e amando.
Corrente do Mal inverte o status quo do cinema de terror adolescente e funciona como uma espécie de slasher às avessas por trazer à tona uma preocupação um tanto deixada de lado, mas que fazia parte da cartilha a ser seguida para se tornar uma vítima nesse subgênero de tanto sucesso entre os jovens naqueles anos 80 que parecem nunca ter terminado: o sexo.
Entre as regras criadas por John Carpenter para se sobreviver aos slasher movies em seu seminal Halloween lá em 1978, uma delas era NÃO FAZER SEXO. Os assassinos mascarados apareciam de forma punitiva para eliminar jovens libidinosos com hormônios em ebulição bem antes que quaisquer posíveis DSTs fizesse isso por eles.
No caso do longa de Mitchell, uma entidade maligna sem aparência fixa ou forma determinada, irá te seguir em todo lugar até a morte, e isso é assustador pra cacete – daí vem o título original It Follows, cujo significado se perdeu completamente na péssima adaptação em português. O lance é que a tal entidade é “contraída” após o ato sexual. Sim, Corrente do Mal inaugura o termo EST: encosto sexualmente transmissível! :)
A única forma de quebrar essa, hã, corrente do mal (...), é trepando com outra pessoa, pois dessa forma o espírito então ficará na bota dela. O problema é do outro dali para frente, reflexo da sociedade egoísta e individualista desse novo século. Mas há um porém aí: se o parceiro não transar com outro indivíduo e passar a maldição adiante dentro de um determinado período de tempo, ambos acabarão sendo mortos de forma impiedosa.
Numa Detroit decadente que poderia ser uma fotocópia desgastada da vizinhança na qual Sam Raimi, Robert Tapert e Bruce Campbell brincavam quando crianças, conhecemos nossa protagonista de 19 anos, Jay, papel da ótima Maika Monroe. Ela foge completamente do estereótipo da garota colegial popular e tampouco se aproxima da heroína virginal tradicional.
A menina é muito bonita, porém retraída, insegura, vive o drama da separação dos pais, possui uma turminha de amigos nerds que assistem à sci-fi P&B na televisão, e quando começa a se envolver mais a sério com seu futuro pretendente, descobrimos que o camarada está no barato de ONE NIGHT STAND. No caso, para transferir a terrível maldição – e o espírito passa a seguir a menina no colégio, na praia, em sua própria casa.
Corrente do Mal não se preocupa em aprofundar a origem da maldição, daquela forma didática que o cinema de terror mainstream adora. Ela está ali e pronto. Basta. Tudo é bem straight-forward e traz um frescor absurdo para o gênero ao ignorar por completo o fetiche pelo jump scare e afetações típicas de outros filmes de espíritos, preferindo uma entidade maligna que de forma sutil e implacável lhe segue impiedosamente, como um VOYEUR, um stalker que irá alcançá-la ao dobrar a esquina, aos moldes do bom e velho Michael Myers munido de seu facão.
Isso sem contar a atmosfera e ritmo impostos por Mitchell, dando preferência a apenas algumas cenas comedidas de ação em contraponto a diversas sequências arrastadas, diálogos melancólicos e momentos de silêncio e introspecção.
Há no final das contas um artifício raso do roteiro, com o grupo de adolescentes se unindo para investigar e confrontar de forma física a maldição, que segue certos moldes e padrões da indústria hollywoodiana. Mas eu entendo. Afinal, por mais independente que o filme seja, precisa se pagar no final das contas e colocar pão e leite na mesa de todos os envolvidos...
E a última cena... Ah, aquela última cena na qual você deve prestar MUITA atenção, serve para atestar em definitivo a verdadeira pérola que é Corrente do Mal.
Um deleite pra quem vive com saudade do Terror de outros tempos
Mais do que um ótimo filme, o que fica para o fã do horror é o alento em saber que uma nova leva de boas produções vem surgindo no gênero. E, acima de tudo, vale o exercício interessantíssimo de observar essa nova safra de cineastas que estão finalmente chegando à cadeira de diretor e que trazem em sua bagagem uma penca de influências, crias dos Carpenters, Romeros, Cravens, Fulcis e Argentos da vida.
Mitchell fez isso em seu Corrente do Mal, assim como Ti West em A Casa do Diabo, James Wan em Invocação do Mal, Simon Barret, Barry Wingard e toda a patota em V/H/S e Ted Geoghegan em Ainda Estamos Aqui, entre outros. Para deleite dessa minha geração cansada dos enlatados e que vive num loop saudosista quase infinito do bom e velho cinema de horror daqueles tempos — e para salvação das próximas, claro.