O filme é uma bosta? É sim. Mostra um Kevin Smith tentando ser uma pessoa melhor? Ah, isso mostra sim. Mas é verdade esse negócio de que eu chorei vendo o filme? MAS NÃO TENHA A MENOR DÚVIDA DISSO.
Antes de falar a respeito do filme em si, preciso fazer aqui duas ressalvas que ajudam a dar contexto – a primeira delas é que, à exceção talvez de Procura-se Amy, eu nunca achei o Kevin Smith um grande cineasta. Ele é um cara que gosta de cinema e que sabe fazer uns filmes divertidos (outros nem tanto), o que é muito diferente de ser um mestre da Sétima Arte. Na real, acho inclusive o camarada melhor como roteirista de quadrinhos (sua passagem maravilhosa pelo Arqueiro Verde que o diga) do que como diretor.
Vem aí então o segundo ponto, que é a resposta que dou quando me perguntam “tá bom, vai, fora Procura-se Amy, que outro filme do Kevin Smith você considera seu favorito?”. E quem apostaria que eu responderia “Barrados no Shopping” por conta de toda a coisa ~NERD~, errou feio. Tô aqui falando de Menina dos Olhos, aka Jersey Girl. Lembro que, quando vi a primeira vez, numa exibição pra imprensa praticamente vazia, me acabei de chorar. E choro rigorosamente TODA VEZ que vejo. Justamente porque é um filme fora do “universo” que o Smith criou, sem Jay, sem Silent Bob, sem autorreferências. É uma história doce, fofa, simpática e que me mexeu DEMAIS com o meu lado pai.
Muito que bem. Acho que estas duas ressalvas devem ajudar a entender o impacto que Jay & Silent Bob Reboot teve em mim quando vi a bagaça.
Que eu iria assistir a este filme, mas vocês não tenham a menor dúvida. Já contei aqui, aliás, sobre como eu e o parça caiçara Paulo Martini assumimos as personas da dupla criada pelo Kevin Smith no nosso primeiro site de entretenimento, o finado e saudoso PutaQuePariu.com. Só pelo aspecto nostálgico, portanto, eu já estaria na primeira fila (virtual) pra parada. Só que teve muito mais. Porque este filme me acertou EXATAMENTE da mesma forma que Menina dos Olhos.
Bom, sejamos honestos aqui — o filme é UMA BOSTA. Assim, enquanto cinema, saca? É mais do que uma enorme e gigantesca bobagem, mas sim o ápice do Kevin Smith falando para iniciados da obra do Kevin Smith. As sacadas, as brincadeiras, as referências, óbvio, fazem sentido de fato para quem já viu minimamente alguma coisa já estrelada pela dupla chapada, tornando parte da trama quase insondável para o coitado do espectador eventual.
Algumas brincadeiras com cultura pop de maneira mais ampla, especialidade de Smith, podem ajudar a salvar o dia ao pintar um cenário mais reconhecível, com um pouco de Star Wars aqui, um tantinho de Marvel acolá, enfim (o pequeno diálogo inicial com o fanático por gibis Brodie vivido por Jason Lee é MARAVILHOSO, diga-se de passagem).
O ponto é que a ideia da trama no geral até que é promissora, com boas doses de metalinguagem enquanto Jay e Silent Bob voltam pra Hollywood quando descobrem que o filme baseado na HQ inspirada neles tá ganhando um reboot. Considere que eles vão parar no meio de uma convenção tipo San Diego só que focada nos dois personagens, cheia de colecionáveis e cosplayers, e, voilà, habemus dezenas de piadas prontas. Junte a isso as muitas participações especiais, da Supergirl Melissa Benoist ao Val Kilmer, passando até por uma sacada bem legal com o Chris Hemsworth (que aliás já mostrou que tem um ótimo timing cômico), e a coisa talvez estivesse bem encaminhada. Mas não está.
Só porque, no geral, tanto para fãs quanto para não-fãs, Jay & Silent Bob Reboot é uma imensa coleção de piadas meio óbvias e em grande parte sem graça sobre peido, arroto, maconha e demais assuntos relacionados que o Smith tanto ama. Quando ele zoa a própria indústria do cinema, ôpa, legal, boas gargalhadas à vista. Mas isso é bem menos do que poderia e teria real potencial. Nas mãos de um cineasta mais tarimbado, todavia, como queríamos demonstrar...
Só que, e aí talvez esteja o GRANDE ponto deste filme, temos um novo Kevin Smith aqui. Tem piadas esdrúxulas até a tampa, isso é óbvio, mas também tem o sujeito que se tornou uma celebridade digital olhando para o mundo ao seu redor e pensando “caraio, pera, de que forma dá pra eu ser menos babaca?”. E por mais BESTEIROL que a película seja, dá pra enxergar claramente o cineasta / roteirista se questionando pelo meio do caminho da mesma forma que ele vem se questionando nas redes sociais, por exemplo. Machismo, racismo e outras escrotices defendidas pela turma do “politicamente incorreto” são derrubadas sem dó, em especial por uma turma de jovens adolescentes cheias de atitude que cruzam o caminho dos dois velhos traficantes.
Embora Smith interprete o próprio Silent Bob e, pra completar, ainda coloque a ele mesmo, Kevin Smith, diretor, como parte da história (e sendo impetuosamente zoado por todos os pontos que eu mesmo levantei acima, é bom que se diga), o que dá claramente pra sacar é que, desta vez, a sua PERSONA no filme é o Jay. É na pele do loiro cabeludo e que simplesmente não para de falar que ele faz uma verdadeira declaração de amor para a filha, a atriz Harley Quinn Smith, que no filme interpreta uma filha de Jay que ele nunca soube que existia.
É na relação entre os dois que o paizão Kevin discute sua própria maturidade, um quase cinquentão que todo mundo enxerga como uma eterna criança mas que descobre um amor que não esperava sentir e uma responsabilidade que não sonhava carregar. O mundo mudou. E finalmente este homem olha para si mesmo e percebe que, não, não precisa se tornar algo que simplesmente não é, o executivo de terno e gravata, enfim. Mas que algumas de suas atitudes são verdadeiras relíquias, ah, isso são. E que não tem problema nenhum crescer. E amadurecer.
E entre vários blocos de piadas de gosto duvidoso, Jay & Silent Bob Reboot conseguiu me fazer chorar não apenas uma, mas DUAS vezes. No diálogo decisivo entre pai e filha, é claro. Mas também na delicada conversa entre Jay e Holden McNeil, o quadrinista de Procura-se Amy vivido por Ben Affleck que agora também tem uma filha — uma garotinha linda curiosamente vivida pela filha de Jason Mewes, o intérprete de Jay. Ali, Smith faz uma amarração certeira do final de Procura-se Amy, de um jeito adulto e que foge da obviedade do “final feliz”. É um final e, de certa forma, até que é feliz, embora não seja o que ele ou a gente esperasse. E a vida real é assim mesmo, não?
Então, Kevin Smith mirou no nerd fã e acertou no pai. BINGO.
É uma merda de filme? É sim. Mas tem um baita coração. Decida aí se isso é o suficiente pra te fazer assistir. ¯\_(ツ)_/¯